RESUMO
O artigo “Anunciação Silenciada: o apagamento da Umbanda na história do município de São Gonçalo” discute o processo de invisibilização da Umbanda em sua cidade de origem, mesmo sendo considerada uma religião genuinamente brasileira. Tomo como marco inicial o dia 15 de novembro de 1908, quando Zélio Fernandino de Moraes, incorporado pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, fundou oficialmente a prática. Apesar de sua relevância, esse acontecimento não é preservado nem valorizado no município.
Argumento que esse apagamento resulta de três fatores centrais: o racismo religioso, que estigmatiza as religiões de matriz africana; a disputa de espaço, que privilegia manifestações católicas e evangélicas em detrimento da Umbanda; e a estrutura de poder, que manipula a memória coletiva para beneficiar grupos majoritários. A negligência em relação a espaços de preservação, como o Marco Zero da Umbanda, e a violência contra terreiros reforçam essa lógica de exclusão.
Resolva exercícios e atividades acadêmicas
Ao mesmo tempo, destaco que os povos de terreiro resistem. Projetos como o Museu da Umbanda, a preservação de documentos históricos e a atuação de lideranças religiosas demonstram a luta constante contra o silenciamento. Concluo que preservar a memória da Umbanda é também um ato de resistência, reafirmando sua importância como patrimônio cultural e religioso do Brasil.
Palavras – chave: Umbanda. Memória. Apagamento.
Abstract
Encontre o professor particular perfeito
The article “Silent Annunciation: the erasure of Umbanda in the history of São Gonçalo” examines the invisibilization of Umbanda in its city of origin, despite being recognized as a genuinely Brazilian religion. I take November 15, 1908, when medium Zélio Fernandino de Moraes, incorporated by Caboclo das Sete Encruzilhadas, officially founded the practice, as its starting point. Despite its significance, this milestone is neither preserved nor celebrated in São Gonçalo.
I argue that this erasure results from three main factors: religious racism, which stigmatizes African-based religions; the dispute over space, which favors Catholic and Evangelical manifestations over Umbanda; and the structure of power, which manipulates collective memory to privilege dominant groups. The neglect of preservation sites, such as the “Marco Zero da Umbanda,” and the violence against terreiros reinforce this systematic exclusion.
At the same time, I highlight the resilience of Umbanda practitioners. Projects such as the Umbanda Museum, the preservation of historical documents, and the activism of religious leaders demonstrate the ongoing struggle against silencing. I conclude that preserving Umbanda’s memory is an act of resistance, reaffirming its role as cultural and religious heritage of Brazil.
Keywords: Umbanda. Memory. Erasure.
"Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado."
George Orwell.
1.INTRODUÇÃO
A Umbanda, religião originalmente brasileira, teve seu marco inicial no bairro do Neves, hoje no município de São Gonçalo. O médium Zélio Fernandino Moraes incorporado pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, inaugura o início da prática religiosa. Este evento ocorreu no dia 15 de novembro de 1908 e é considerada por muitos como o início da religião como conhecemos hoje. Apesar desse acontecimento ser discutido, pois manifestações religiosas com elementos da Umbanda já aconteciam antes da anunciação(NOGUEIRA, 2008. HAENISCH, 2022), o ponto inicial de uma religião é um marco importante para qualquer crença. Segundo Michael Pollack em seu artigo para a revista Estudos Históricos define que “A memória coletiva [...] define o que é comum a um grupo e o que diferencia dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de pertencimento e as fronteiras socioculturais (POLLAK,1989, p.3)” As narrativas sobre o êxodo dos hebreus do Egito, a iluminação de Sidarta Gautama, a migração de Maomé de Meca para Medina, a ressurreição de Cristo além de serem marcos, criaram tradições, locais de peregrinação e, por consequência, identidades culturais e sociais, além de espaços de preservação de memória. Porém no município de São Gonçalo o marco inicial da Umbanda não foi preservado e é, deliberadamente, apagado do cotidiano da cidade.
O livro História e Memória, a memória é definida como um objeto da história e base da construção identitária das sociedades, além de ser um instrumento de poder social (LE GOFF,1992) . Logo negar a memória de um povo é o mesmo que negar sua importância ou até sua existência, o que é agravado com os espaços físicos de preservação de memória são negligenciados ou até destruídos. Um bom exemplo disso é o caso do Cemitério dos Pretos Novos, na Gamboa , cidade do Rio de Janeiro. Por décadas o espaço destinado a desova de cativos que não sobreviveram à travessia do Atlântico foi soterrado por casas de família, sendo descoberto apenas quando um morador realizou uma reforma, trazendo à tona diversos restos mortais humanos. Hoje o espaço se transformou em um museu, Museu dos Pretos Novos, dedicado a preservação da memória do período escravagista. O caso do Museu dos Pretos Novos diz muito sobre a postura da sociedade brasileira em relação aos marcos de memória que devem preservados e aqueles que podem ser esquecidos. LeGoff diz que “ a distinção passado/presente (futuro) é maleável e está sujeita a múltiplas manipulações”(LE GOFF, 1992, p.183), logo se uma sociedade é excludente essa característica se manifestará na sua relação com o passado e como ela impacta o presente.
Neste contexto, o caso da origem da Umbanda se assemelha muito ao caso do Cemitério dos Pretos Novos, pois no município de São Gonçalo, onde o marco inicial da religião teria acontecido, a importância desse evento é ignorada sistematicamente. Espaços ligados à origem e a história da Umbanda são vítimas de descaso, vandalismo e da especulação imobiliária. Eventos do calendário oficial do município ligados à Umbanda são pontuais ou pouco divulgados, a origem da crença não é ensinada nas salas de aula do município e nem escolas municipais possuem nomes relacionadas à religião. Um dos poucos espaços de preservação oficial, o Marco Zero da Umbanda em Neves, não possui sinalização, pontos de informação e precisa de obras de conservação. Em contrapartida, São Gonçalo já possuiu uma praça dedicada aos livros da bíblia protestante e, também, tem a tradição de fechar ruas no centro da cidade para a confecção dos tapetes de Corpus Christi.
Este artigo tem como objetivo jogar luz sobre a história obscurecida da Umbanda no município de São Gonçalo e explicar como a resistência dos povos de terreiro tem combatido as tentativas de apagamento. Para isso o artigo de divide em 3 partes: a primeira dará um panorama geral da história da Umbanda, sua relação com o município de São Gonçalo e seu apagamento; segunda apontará os possíveis motivos desse pagamento acontecer e por último ; como os praticantes da Umbanda resistem e seguem preservando sua memória , apesar das diversas tentativas de apagamento.
- A ANUNCIAÇÃO SILENCIADA
Segundo o Instituto Imazon, o município de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, ocupa a quarta posição no ranking dos 10 piores municípios com mais de 500 mil habitantes do país (IMAZON,2025). A pesquisa mediu o índice de Progresso Social dos municípios do Brasil, dado apurou os itens importantes para o desenvolvimento de uma cidade como necessidades humanas básicas, bem estar e oportunidades, sendo esse último item bem interessante pois leva em consideração a existência de ações para direitos de minorias. No censo de 2022, 2,83% dos gonçalenses se declararam praticantes de Candomblé e/ou Umbanda, estando a frente apenas daqueles que praticam tradições indígenas e dos que não declararam ou não souberam opinar (IBGE,2023). O interessante é perceber que os praticantes da Umbanda são colocados no mesmo grupo dos praticantes de Candomblé pelo próprio IBGE. A correlação desses dados ajudam a entender o descaso da Umbanda no município de São Gonçalo.
A Praça Zélio Fernandino de Moraes, nome oficial da praça de Neves, ganhou esse nome em homenagem ao médium que no dia 15 de novembro de 1908 serviu de canal para o anúncio de uma religião nova. Diversas manifestações religiosas ligadas a tradição afro já haviam sido observadas desde o período da colônia porém os elementos que construíram a Umbanda são únicos. Tradição católica, religião oficial do país durante anos, elementos de matriz africana, vindos com os escravizados e a influência do kardecismo , em ascensão no início do século passado, montam uma crença totalmente nova.
“A Umbanda é uma religião brasileira, nascida no meio urbano, que reuniu elementos do catolicismo, do espiritismo kardecista e dos cultos africanos, criando um sistema religioso original, profundamente enraizado na cultura nacional (PRANDI, 2005, p. 83).”
A anunciação teria acontecido próximo da praça, em uma casa onde funcionou a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, primeiro centro espírita de Umbanda. Apesar da sua importância histórica, o local foi demolido em 2011.
Em entrevista cedida para a construção desse artigo, Waguinho Macumba, Pai de Santo, ativista religioso e um dos idealizadores do projeto Marco Zero da Umbanda, conta que o “batismo” da praça só foi possível porque, oficialmente, o local não tinha nome. Essa foi a brecha para conseguirem homenagear o nascimento da sua crença. A inauguração do espaço ocorreu no início de 2020, com direito a banner e placas de sinalização. A lei que nomeou o espaço pode ser acessada no site oficial da prefeitura de São Gonçalo, porém se o usuário não tiver o conhecimento prévio sobre o caso é difícil identifica-la pois há poucas informações em seu texto. O espaço do Marco Zero da Umbanda seria o primeiro passo de diversos eventos e locais que contribuiriam com a valorização e a preservação da religião nascida no município, porém o projeto que contava com um museu dedicado a história da Umbanda está engavetado desde então. Hoje se você visitar a praça não encontrará nenhuma sinalização que remeta ao nome oficial, sendo um espaço descaracterizado e deserto.
Essa não é primeira vez que o poder público demonstra descaso em relação aos praticantes da Umbanda. Historicamente, o chamado “espiritismo de Umbanda” e outras religiões de matriz africana sofreram não só preconceito mas também repressão do Estado. Em seu artigo Transe Ameaçado: Cultura visual religiosa afro-brasileira e repressão policial dura nas primeiras décadas do século XX, Arthur Valle explica:
As frequentes batidas, prisões e apreensões de objetos de culto conduzidas muitas vezes sem o respaldo de um mandado legal se embasavam em artigos do Código Penal de 1890 que puniam os chamados "crimes contra a saúde pública," especialmente o Art. 157 (que incidia sobre o espiritismo, a magia e os sortilégios) e o Art. 158 (que incidia sobre a prática do curandeirismo)(2018,p.197)
Durante boa parte do século XX os casos de batidas policiais em terreiros, culminando em apreensão de objetos sagrados e prisões de líderes religiosos, eram comuns. Milhares de itens sagrados apreendidos nessas batidas ficaram confiscados no Museu da Polícia até pouco tempo, sendo transferidos para o Museu da República em 2020 e ainda são alvos de imbróglio entre o grupo que liderou o movimento de devolução dos itens e a direção do museu. Uma vindoura exposição da coleção já foi adiada oito vezes.
Com o passar do tempo e as mudanças da legislação, principalmente com reafirmação do Estado Laico na Constituição de 1988, as batidas à terreiros acabaram mas não a violência e o preconceito por parte do Estado. A diferença é que essa violência se tornou inação. Segundo o II relatório de intolerância religiosa: Brasil, América Latina e Caribe, durante o ano de 2021, duzentos e trinta e cinco casos de intolerância religiosa no estado do Rio de Janeiro foram atendidos pelo Disque 100. Sessenta e uma dessas denúncias são de casos ligados à religiões de matriz africana. Segundo o mesmo relatório, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa recebeu, também em 2021, quarenta e sete denúncias vindas do estado do Rio de Janeiro e desses quarenta e três casos foram direcionados à religiões de matriz africana. A região metropolitana lidera o ranking do estado e o município de São Gonçalo tem dois lugares nesta lista. Um dos casos partiu da administração municipal, que direcionaria verbas para a elaboração de três museus ligados à religiões. Os museus evangélico e católico receberiam um milhão de reais cada e o museu da Umbanda apenas dez mil. O detalhe é que apenas o museu da Umbanda possuía projeto pronto, esperando verba.
Pouco se fala sobre a origem da Umbanda nas escolas municipais de São Gonçalo, mesmo com a lei 10.639 vigorando desde 2003. Das escolas municipais, dez escolas possuem a palavra “Pastor” no seu nome oficial, duas possuem cargos ligados à Igreja Católica na nomenclatura, sem falar dos nomes que referenciam santos. Nenhuma escola possui em seu nome nada que remeta a Umbanda. Não há feriado municipal a ligado a Umbanda e há poucas homenagens oficiais a líderes ou pessoas influentes da religião. Os casos aqui listados exemplificam como existe um tratamento diferenciado pela administração municipal gonçalense quando se refere à religiões de matriz africana, mesmo que uma dessas religiões tenha nascido em seu território.
- POR QUE SILENCIAR?
Vimos no segmento anterior que o município do São Gonçalo quase não conserva indícios da presença da Umbanda em seu território. Seus terreiros são afastados do grande centro, suas festividades são escanteadas, seus louvores silenciados, sua história apagada. A pergunta que surge é: Por que silenciar?
Ao definir a história oficial de um território também definimos quais grupos são influentes e, por consequência, quais grupos serão excluídos e marginalizados. Segundo LeGoff:
Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva (1992, p. 368)
Sempre houve um esforço dos intelectuais da Umbanda de tornar a religião relevante para a história oficial, criando a narrativa da religião cem porcento brasileira e, por consequência, preservar sua existência. Um exemplo desse movimento é a própria data da anunciação que coincide com a proclamação da república além de muitos terreiros possuírem nomes de santos católicos.
A Umbanda nascente retrabalhou os elementos religiosos incorporados à cultura brasileira por um estamento negro que se diluía e se misturava aos brancos pobres na constituição das novas classes sociais numa cidade, então a capital federal, que era branca, mesmo quando proletária, era culturalmente européia... Tratava-se de “limpar” a religião nascente de seus elementos mais comprometidos com a tradição iniciática secreta e sacrificial, tomando por modelo o kardecismo. (PRANDI, 1998, p. 157).
Porém esse esforço não impediu as tentativas de apagamento e isso se deve a três elementos, o primeiro deles é o racismo religioso.
3.1 Racismo religioso
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Figura 1 Manchete do Jornal "O Fluminense" de 05/03/1970. |
O racismo religioso pode se apresentar de diversas maneiras, mesmo que atualmente a discussão sobre a intolerância esteja na pauta, nada impede que atos velados aconteçam. Muito se deve ao fato que parte da população não conhece os ritos e crenças de religiões de matriz africana, e toda informação ligada aos seus praticantes esteja envolta de estereótipos, por vezes anedóticos.
Ao pesquisar os termos “Umbanda”, “Candomblé” em jornais fluminenses de arquivos públicos encontramos várias manchetes relacionando – os com vitórias de times devido a “trabalhos” realizados ou com festas de rua/ rodas de samba e até colunas ligadas a música e manifestações culturais. Esse fato por si só não é ruim porém cria uma imagem limitada. Quando os termos pesquisados são “terreiros” e “macumba” as manchetes policiais tomam conta dos resultados, com casos de reclamações de barulho, batidas policiais a terreiros e até “assassinatos ritualísticos”.
A visão construída em torno da religião é de misticismo, baderna e criminalidade. Essa visão persiste até os dias atuais. Outro fato que contribui para esse quadro é o discurso sincrético que correlaciona figuras divinas da Umbanda com demônios. Geralmente, o termo sincretismo religioso é associado à figuras católicas que foram anexadas a cultos de origem africanas porém o conceito define toda fusão de elementos culturais, religiosos e ideológicos dando origem à uma nova expressão ou crença, mantendo características das fontes originais. Como Ortiz define
“O sincretismo é o processo pelo qual elementos culturais distintos entram em contato e se combinam, produzindo novas formas simbólicas e religiosas sem que desapareçam completamente as tradições originais”(ORTIZ,1978,p.15).
Em algumas igrejas evangélicas, sobretudo em igrejas neopentecostais, orixás e guias são entendidos como demônios, o mal a ser combatido. Logo, o discurso de ódio direcionado a Umbanda é justificado pela “batalha do bem contra o mal”. Discurso esse que foi amplamente utilizado em campanhas políticas nas últimas eleições municipais em São Gonçalo, garantido vitórias eleitorais (MENDEL, 2023, p.9) . Em contrapartida, historicamente, a Umbanda passou por um “branqueamento” na tentativa de ter maior aceitação na sociedade. O próprio médium Zélio Fernandino de Moraes é entendido como uma figura legitimadora, já que este era branco e parte da classe média, o que simbolizava um processo que buscava tornar a Umbanda mais aceitável às elites urbanas (PRANDI,1998, p.151-167).
3.2 Disputa de espaço
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Figura 2 Figura 1 Praça Zélio Fernandino de Moraes, "Marco Zero da Umbanda". Visita realizada em 20 de junho de 2025. |
O segundo elemento que contribui para o apagamento da Umbanda é a disputa de espaço. São Gonçalo é conhecida por ter o maior tapete de Corpus Christi da América Latina, durante sua confecção diversas ruas da cidade ficam interditadas e o mesmo ocorre durante a procissão. O município possui inúmeros templos de variadas denominações evangélicas, grandes catedrais que recebem centenas de fiéis semanalmente e até incentivos fiscais políticos. No último Censo (IBGE,2022) , as pessoas que se autodeclaram evangélicas é de 35,59%, já os católicos contam com 35,21% dos gonçalenses. Suas tradições, festas e espaços de culto são respeitados. Porém, para os 2,83% da população que se autodeclarou praticante de Umbanda ou Candomblé, não há dados separados para cada religião, a realidade é bem diferente. Os casos de violência e depredação contra terreiros são inúmeros. Tem se tornado comum ameaças de grupos “narcopentecostais”, traficantes convertidos à denominações evangélicas, que proíbem a existência de terreiros dentro das suas comunidades .
Poucos espaços ligados à origem da religião estão conservados, a casa onde foi anunciada e onde Zélio morou foi demolida em 2011 por conta da especulação imobiliária. À época, o espaço foi vendido pelos seus representantes legais e a prefeitura, apesar de dizer reconhecer a importância do lugar, não desapropriou o lugar, preferindo construir a “Praça da Bíblia”. Essa praça foi feita em parte da Praça Chico Mendes e contava com vários banners dedicados aos livros da bíblia cristã protestante. Em poucos meses o local já estava danificado, se mantendo assim até recentemente, quando passou por um processo de revitalização. Esses acontecimentos exemplificam bem o que Michael Pollack define como a memória oficial molda o que deve ser lembrado e celebrado:
“A memória comum serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas também as oposições irreduzíveis (POLLAK,1989,p.5).”
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Figura 3 Comparação do Marco Zero da Umbanda: a primeira foto é de 2022 e a segunda foto é de 2025. Aos poucos a praça foi se descaracterizando. |
O Marco Zero da Umbanda no bairro de Neves, praça cujo projeto visa transforma – lá em um espaço de preservação, está parado há anos e o lugar está descaracterizado. O local foi escolhido pois era próximo da Tenda Nossa Senhora da Piedade, primeiro terreiro de Umbanda da história. O lugar é pouco movimentado, sem sinalização indicando o seu nome e em frente a praça há uma Igreja Universal. A ideia da criação de um espaço físico, um museu dedicado à Umbanda existe porém pouco avançou.
Para Le Goff:
O monumento tem como características o ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva) e o reenviar a testemunhos que só numa parcela mínima são testemunhos escritos.
Logo a disputa de espaço é também uma disputa de memória, uma sociedade é entendida ao observarmos quais espaços são preservados e quais são negligenciados. Quais grupos sociais podem ocupar espaços e quais tem esse direito negado. Qual história pode ser contada e qual deve ser esquecida, quem merece existir e quem merece ser apagado. E na falta de um registro formal, as práticas religiosas, rituais e memórias orais tornam – se lugares de memória. Segundo Pierre Nora:
“Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, redigir testamentos, porque essas operações não são naturais. Sem a vigilância comemorativa, a história os varreria. Eles são bastiões sobre os quais se ancoram as lembranças (NORA, 1993, p. 13).”
São nesses espaços, materiais e simbólicos, que a comunidade guarda, recria e transmite sua história, resistindo ao esquecimento institucional.
3.3 Racismo Institucional
O terceiro elemento que contribui para o apagamento da Umbanda em São Gonçalo é o racismo institucional. Cida Bento define racismo institucional como “(...) ações em nível organizacional que independentemente da intenção de discriminar acabam tendo impacto diferencial e negativo em membros de um determinado grupo (BENTO, 2022, p.77)”. A autora também explica que “O racismo institucional, às vezes, se refere a práticas aparentemente neutras no presente, mas que refletem ou perpetuam o efeito de discriminação praticada no passado (BENTO, 2022, p.78).” Já para Pollak “O trabalho de enquadramento da memória é indispensável para superar a simples montagem ideológica; ele visa manter a coesão social, mas também pode servir à dominação (POLLAK, 1989, p.6)”. Ao impedir o acesso de certos grupos a estrutura institucional, negando seus direitos e representatividade no poder, o apagamento se concretiza além de perpetuar preconceitos.
Nesse quadro o grupo que é marginalizado acaba tendo que recorrer à representantes que sejam simpáticos a suas demandas, o que nem sempre dá certo. Em entrevista, Waguinho Macumba, líder religioso local, defende que a ocupação de espaço político é essencial para o combate ao racismo religioso. Nas últimas eleições municipais candidatos usaram os templos evangélicos como palanque político, reproduzindo a narrativa de “batalha espiritual pela alma da cidade”. Diversos candidatos ao legislativo foram eleitos sob essa plataforma. O resultado desse movimento é a promulgação de leis como o dia municipal do padre, dia municipal da esposa de pastor, música gospel e cultura evangélica como patrimônio imaterial do município. Todas essas leis foram publicadas nos últimos 5 anos e podem ser consultadas no portal da Câmara dos Vereadores. Ao pesquisar o termo Umbanda no mesmo portal o resultado obtido é apenas um a criação da Semana da Umbanda, diversas atividades que visavam trazer visibilidade para a religião. Essa lei foi publicada em 2020, mesmo ano da criação do Marco Zero da Umbanda , que só encontramos através de uma pesquisa por termos específicos. A escolha de omitir a criação de um espaço permanente não parecer ser uma escolha aleatória , além de que os últimos eventos oficiais do município durante a Semana da Umbanda aconteceram em 2023. Esses fatores demonstram que o governo municipal, propositalmente ou não, negligencia a preservação da história da Umbanda. Além de que as poucas iniciativas que beneficiam os praticantes ganham pouca ou nenhuma visibilidade.
Como vemos, a conjunção desses fatores contribuem para que a história da Umbanda, que está intrinsicamente ligada a história de São Gonçalo, seja escanteada e, com o passar do tempo, seja esquecida. A noção de memória coletiva e de esquecimento é fundamental para compreender como práticas e saberes da Umbanda foram invisibilizados. Le Goff (LE GOFF, 1992, p.424) discute a memória como um campo de disputas, em que determinadas vozes são privilegiadas enquanto outras são silenciadas. Esse ponto de vista é essencial para entender a forma como o Estado, a Igreja e a elite intelectual promoveram a marginalização das religiões afro-brasileiras, transformando a história oficial em um instrumento de exclusão. Porém, segundo Pollak, “A história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à ‘memória oficial’(POLLAK,1989,p.4)”. Nesse caso, se lembrar é um ato de resistência.
- MEMÓRIA E RESISTÊNCIA
Apesar de todos os fatores que estão contra e as tentativas sistemáticas de apagamento, a memória da Umbanda ainda resiste. Para Pollak
“Essas lembranças proibidas, indizíveis ou vergonhosas são zelosamente guardadas em estruturas de comunicação informais e passam despercebidas pela sociedade englobante(POLLAK, 1989, p.8).”
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Figura 4 Encerramento da Semana da Umbanda no Teatro Municipal de São Gonçalo. O evento aconteceu dia 14/11/2025 com apoio da Secretaria Municipal de Cultura. |
A festa de São Cosme e Damião é uma tradição bem forte, com distribuição de doces e festas em centros por toda a cidade. Os santos católicos foram sincretizados a práticas religiosas africanas, associados aos Ibéjis, se tornando uma grande celebração para o povo de terreiro, que ocorre todo dia 27 de setembro. Projetos como o Museu da Umbanda, preservam documentos e artefatos que ajudam a contar a história da religião. O acervo de documentos cedidos pelo neto do fundador da Umbanda estão disponíveis ao coletivo e que, por diversos fatores, ainda não possui um espaço físico definido. O acervo inclui a Carta de Anunciação da Umbanda, documento que “oficializa” a fundação da Umbanda. Apesar das dificuldades financeiras, Pai Fernando D’Oxum tem tocado o projeto, conseguindo vitórias importantes como o reconhecimento da Secretaria de Cultura como museu social. Ele, que atualmente é o Conselheiro Municipal de Cultura e atua na Comissão de Intolerância Religiosa da ALERJ , defende que além dos documentos e artefatos, o patrimônio imaterial da Umbanda deve ser preservado. A criação de um espaço físico, gerido parte pelo Estado e parte pela comunidade da Umbanda, ajudaria no combate ao racismo religioso, além de ter um potencial turístico e econômico enorme. O contato com manifestações como jongo e maculelê em um ambiente acadêmico, valorizaria a cultura afro-brasileira, combatendo o racismo religioso em sua raiz.
Na opinião de Waguinho Macumba, a resistência também perpassa na representação política. Segundo ele, por mais que um político tenha empatia pelos desafios enfrentados pelos povos de terreiros, só alguém que tem a vivencia pode defender seus interesses de forma plena. Para ele, ocupar espaços, físicos ou políticos é essencial para a luta contra a descriminação. Ocupação essa que deve ser feita em todas as esferas (municipal, estadual e federal). Essa ideia corrobora com o pensamento de Pollak (1989,p.6), a ausência de representação pública é resultado de um processo de silenciamento que impede a conversão da memória em poder social. Infelizmente, Waguinho não pode ver suas ideias em prática pois faleceu durante a produção deste artigo. Atualmente, a ausência de representação das religiões de matriz africana no legislativo municipal de São Gonçalo (2021-2028) reflete a força da estrutura de poder hegemonicamente cristã, evidenciada, por exemplo, na pouca visibilidade dada a candidaturas como a de Waguinho Macumba, nas eleições de 2020.
- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluo que o processo de apagamento da história da origem da Umbanda no município de São Gonçalo não é aleatório, mas sim sistemático. Vários elementos contribuem para esse fenômeno, atuando de forma concatenada.
O primeiro é o racismo religioso, que estigmatiza a religião a partir do ponto de vista cristão-branco-eurocêntrico. Esse estigma se manifesta na “lógica da batalha espiritual pela alma da cidade” (MENDEL 2023, p. 130), que justifica a violência e a desqualificação das práticas afro-brasileiras.
O segundo elemento é a disputa de espaço, que marginaliza e encobre os espaços ligados à Umbanda, como o Marco Zero, em detrimento do favorecimento de outras crenças. Como alerta Adriani Almeida, “as práticas religiosas e culturais afro-brasileiras são constantemente invisibilizadas, alvos de perseguições e identificadas como atrasadas” (ALMEIDA, 2017, p.9).
Por fim, o racismo institucional, que, através da negligência e inação do Estado, fortalece o silenciamento. Essa ausência estatal demonstra que a “não presença do Estado revela-se como um projeto político, deixando brechas no direito à liberdade religiosa” (MENDEL, 2023, p. 129), apagando a existência e relevância de todo um povo.
Apesar de toda dificuldade imposta por esse sistema, o povo da Umbanda resiste. Essa resistência não se limita à preservação de documentos, mas é uma “luta cotidiana, política e ideológica” (MENDEL, 2023, p.13), que reafirma a cada dia a importância da Umbanda como patrimônio histórico, cultural e religioso, tanto para o município de São Gonçalo quanto para a identidade nacional.
- REFERÊNCIAS
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BENTO, Cida. O pacto da branquitude. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). Hemeroteca Digital Brasileira: pesquisa sobre os termos "Umbanda" e "Macumba" em jornais do estado do Rio de Janeiro (1920–2000). Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, [2025]. Pesquisa documental. Disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acesso em: 07 jun. 2025.
HAENISCH, Paula Roberta Libanori. Uma história pública da Umbanda: a quem serviu (e ainda serve) o mito fundador sobre a origem dessa religião? Caliandra, ANPUH-GO, 2022. Disponível em: https://anpuhgoias.com.br. Acesso em: 25 mar. 2025.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Demográfico 2022: resultados gerais da amostra. Rio de Janeiro: IBGE, 2023. Disponível em: https://censo2022.ibge.gov.br/. Acesso em: 28 ago. 2025.
INSTITUTO DO HOMEM E MEIO AMBIENTE DA AMAZÔNIA – IMAZON. Índice de Progresso Social (IPS) Brasil: qualidade de vida e desempenho socioambiental dos 5.570 municípios brasileiros. Belém: Imazon, 2025. Relatório. Disponível em: https://imazon.org.br/wp-content/uploads/2025/05/Relatorio_IPS-Brasil2025-web.pdf. Acesso em: 10 set. 2025.
ISAIA, Arthur Cesar. Religião e magia na obra dos intelectuais de Umbanda. Projeto História, São Paulo, n. 37, p. 195-214, dez. 2008.
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