Há Liberdade na Internet?
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Por: João L.
27 de Junho de 2022

Há Liberdade na Internet?

Como a série “Batalha Bilionária” expõe as contradições das redes.

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Há pouco tempo, a série ‘Batalha Bilionária: O Caso Google Earth’ estreiou na Netflix. Nela, conhecemos a história de Juri Müller e Carsten Schlüter, os criadores do TerraVision, que lutam para serem reconhecidos como os inventores do Algoritmo utilizado pelo famoso software Google Earth.

A série se inicia em 2014, algumas semanas antes do julgamento do processo de violação de patente. Os advogados os preparam para as perguntas que enfrentarão no tribunal. A resposta deles vai nos transportando, então, para a Berlim do início dos anos 90, marcada pela queda do muro de Berlim e pelo desenvolvimento de novas tecnologias computacionais.

Cartaz da série na Netflix. Reprodução[1].

A série é curta, são quatro episódios, totalizando um pouco mais de 4 horas de intrigas, reviravoltas e boas reflexões. É importante ressaltar que, embora seja uma obra inspirada em dados históricos, trata-se de uma obra ficcional. Os produtores do filme deixaram claro que não tiveram consultoria nem do Google nem da Art+Com, a empresa de Juri e Carsten.

Para Oliver Ziegenbalg, um dos roteiristas da trama, embora a série ‘Batalha Bilionária’ também fale do vale do Silício e dos desenvolvimentos tecnológicos dos anos 90, ela oferece uma perspectiva narrativa bem diferente à de “Redes Sociais”, por exemplo, justamente por não trabalhar com a história dos vencedores[2]. Algumas críticas apontam, ainda, para a tensão bíblica de “Davi e Golias”, ao trazer a história de uma dupla de desenvolvedores lutando contra uma gigante da tecnologia[3].

Particularmente, penso que, para além do drama pessoal de Juri e Carsten e do relato do tribunal, essa série tem um papel importante por nos fazer refletir sobre os sentidos, limites e rumos da Internet no século XXI.

Um manifesto pela liberdade

Para aqueles dois personagens, a internet é um grande oásis democrático. Para convencer seus amigos do ‘Chaos Computer Club’ a participarem do projeto, Juri lê, da parede, alguns dos princípios e valores que norteiam a chamada “ética hacker”: “Computador muda a vida para a melhor. Informação deve ser livre. Tornar o mundo acessível a todos.”. Boa parte dos diálogos entre Juri e Brian McClendon, considerado o co-criador do Google Earth, giram em torno da mesma temática. Ao longo de todo o filme vemos como esse ideal é muito presente para todos aqueles jovens.

Essas frases, lidas por Juri, não são, no entanto, invenção dos roteiristas. Segundo o site oficial do Chaos Computer Club, estes são alguns dos princípios éticos do hacker, amplamente inspirados pelo livro ‘Hackers’ de Steven Levy e pelo MIT Railroad Club[4]. Podemos considerar, portanto, que esses diálogos entre Juri e Carsten simbolizam o pensamento de uma geração.

Para o pesquisador bielorusso Evgeny Morozov[5], a internet foi propagandeada como uma grande marcha pela liberdade, construindo um mundo sem fronteiras. No contexto de derrocada do regime soviético, a internet vinha como uma conquista tecnológica que representava a ascensão da democracia. Até hoje, aliás, a censura da internet é vista como um sinal de totalitarismo pela comunidade internacional.

Mas, como aponta Morozov, o entusiasmo pela internet era tão grande nos anos 90, que não havia qualquer espaço para se pensar que uma “terra sem lei” pode também ser problemática:

“Os primeiros teóricos da influência da Internet na política não conseguiram abrir espaço para o estado, muito menos para um estado autoritário brutal, sem tolerância pelo império da lei ou opiniões divergentes. Qualquer que seja o livro colocado na mesa de cabeceira ciberutópica no início de 1990, certamente não era o Leviatã de Hobbes. (Morozov, p. xiv)”.

Hobbes e o Contrato Social

Capa da primeira edição de “Leviatã”, de Thomas Hobbes (1651)[7].

O que Morozov quer apontar com a sua crítica ao trazer em consideração o Leviatã? Seria bom entendermos, um pouco mais, a respeito do livro de Thomas Hobbes.

Para o filósofo inglês, que publicou seu livro em 1651, o ser humano é um egoísta. Segundo ele, se pudéssemos observar um ser humano em seu “estado natural”, ou seja, fora de qualquer interferência da sociedade, nós encontraríamos uma pessoa egocêntrica, insegura, naturalmente competitiva e disposta para a glória e o poder. É nesse sentido que ele se compreende e populariza a frase do dramaturgo Plauto: “O homem é o lobo do homem”[6].

A consequência sócio-política deste estado de natureza é a guerra sem fim, que traz um sentimento de incerteza, medo e perigo constantes. É nesse momento – dirá Hobbes – que surge a necessidade de se buscar um ambiente mais seguro, em que possa haver paz para exercermos as nossas atividades.

Como conseguir esse ambiente de paz? Conferindo a força e o poder a um homem só – ou a um conjunto de homens, que representaria de modo unívoco a vontade popular. Cria-se, então, o governo. De um lado, os cidadãos deste governo abrem mão de certas prerrogativas para serem representados por ele. De outro, recebem a segurança e a proteção necessárias para continuarem vivendo.

Há liberdade nas redes?

Com a aposta voltada sempre para as utopias democráticas, pouco se pensou sobre como a internet poderia ser um terreno de violência e estímulo aos autoritarismos. Há, nesse sentido, uma dinâmica dupla: em primeiro lugar, percebe-se que uma tendência autoritária e populista, insuflada pelas redes sociais, coloca em perigo a ciência, a democracia, a vida e a liberdade em diversas regiões do mundo. Em segundo lugar, a própria internet se deslocou do espaço de liberdade e gratuidade de informação para um pequeno oligopólio.

A recente denúncia de Frances Haugen[8] é, com toda certeza, uma afirmativa claríssima desse movimento, mas não é o primeiro nem será o último escândalo envolvendo as redes. Há uma clara compreensão, hoje, que algumas empresas digitais possuem mais poder do que muitos governos pelo mundo. O que não é claro, contudo, são os métodos e os processos dessas empresas. Elas interferem e agem sobre o debate público, erigindo ou destruindo governos. Mas o seu caráter privado não permite que elas mesmas sejam entes democráticos.

É nesse sentido que a trama de “Batalha Bilionária” é inspirador. Para onde queremos que a internet caminhe neste século? Ela poderá retomar as suas origens de liberdade e democracia, ou poderá avançar para um ambiente cada vez mais autoritário e perigoso. Será, mais uma vez, uma luta de Davi contra Golias.


Referências

[1] Disponível em: https://occ-0-1068-1723.1.nflxso.net/dnm/api/v6/X194eJsgWBDE2aQbaNdmCXGUP-Y/AAAABRMuPChO3ambYA_ASAR0EuZAbXCMbnJuXtzfBuHsOl0XjOo-H_klP397dSz4AfaD07AHuLUZi4XIuWN6EH5vDjNn_0XGEBTA36yAQ_mkwoofu6FFaeuFsK3ud_2htg.jpg?r=809. Acessado em 10/10/2021

[2] Disponível em: https://olhardigital.com.br/2021/10/07/cinema-e-streaming/batalha-bilionaria-o-caso-google-earth-conta-historia-dos-perdedores/. Acessado em 10/10/2021.

[3] Disponível em: https://www.dw.com/en/the-billion-dollar-code-the-battle-over-google-earth/a-59433376. Acessado em 10/10/2021.

Disponível em: https://medium.com/coadjuvante/a-curiosa-batalha-bilion%C3%A1ria-o-caso-google-earth-ca696f91b548. Acessado em 10/10/2021.

[4] Disponível em: https://www.ccc.de/de/hackerethik. Acessado em 10/10/2021.

[5] Evgeny Morozov. The net delusion: the dark side of internet freedom. Public Affairs, 2011.

[6] https://pt.wikipedia.org/wiki/Homo_homini_lupus. Acessado em 10/10/2021

[7] Wikimedia Commons. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Leviathan_by_Thomas_Hobbes.jpg. Acessado em 10/10/2021.

[8] Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-58801259. Acessado em 10/10/2021

Publicado originalmente aqui: https://prensa.li/@jp.luzneto/ha-liberdade-na-internet-como-a-serie-batalha-bilionaria-expoe-as-contradicoes-das-redes/

João L.
João L.
Curitiba / PR
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