Era Vargas
Por: Flávia R.
18 de Junho de 2020

Era Vargas

O início da Era Vargas e a valorização do trabalho como característica da exclusão e controle social

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O início da Era Vargas e a valorização do trabalho como característica da exclusão e controle social

 

Flávia de Matos Rodrigues[1]

 

Na década de 1920 a política baseada no liberalismo perdeu força diante da crise mundial aberta com a Primeira Guerra e com a queda da Bolsa de Nova Iorque. Estes acontecimentos levaram ao aparecimento de novas formas políticas e ao surgimento de novos sujeitos no cenário mundial. No caso brasileiro, ocorreu também um redimensionamento da balança do poder político. O fim do que se convencionou chamar de República Velha, não erradicou as elites oligárquicas, mas abriu espaço para os projetos da elite urbana industrial e comercial, que passaram a ter maior participação nas decisões políticas.

A partir de 1930, após um golpe que impediu a posse do presidente eleito Julio Prestes, o Governo Provisório, imposto sob o comando de Getúlio Vargas, trouxe um projeto de modernização política e econômica de cunho autoritário e corporativista (ARAÚJO, 1998). A intenção era, segundo os defensores do golpe, submeter interesses particulares, individuais e de grupos regionais aos interesses nacionais e, assim, promover o desenvolvimento econômico.

A Constituição de 1891 foi suspensa, o Congresso Nacional, as Assembleias Estaduais e Câmaras Municipais dissolvidos e todas as funções executivas e legislativas ficaram concentradas no chefe do executivo que governou mediante decretos-leis até a promulgação de uma nova Constituição em 1934. Por meio do fortalecimento do poder central, um sistema de intervenção nos estados e nomeação de prefeitos substituiu as eleições diretas. Municípios e estados não tinham mais autonomia para decidir sem a prévia autorização do governo central. Esta situação foi resultado da instituição, por parte do governo federal, de conselhos consultivos nos estados, no Distrito Federal e nos municípios, em substituição às Assembleias. Para que tivessem seus projetos e verbas aprovados e liberados, os prefeitos nomeados deveriam enviar relatórios aos Conselhos Consultivos de Municipalidade do recém-criado Departamento Administrativo das Municipalidades. Como o conselho cumpria a função da Câmara Municipal, dependia dele a aprovação e liberação da verba.

A centralização do governo federal e diminuição da autonomia dos estados provocou o crescimento de oposição a Getúlio Vargas e uma forte reação por parte da elite oligárquica do Estado de São Paulo, desencadeando revoltas. Com a justificativa de defesa dos direitos constitucionais, suprimidos com a anulação da Constituição de 1891 e, portanto, pelo restabelecimento da autonomia estadual, os paulistas entraram em conflito militar contra o governo federal em julho de 1932. Enfraquecidos por não obterem apoio dos outros estados e cercados pelas tropas do governo, acabaram derrotados.

Apesar da derrota, a revolta da velha oligarquia paulista contra o governo federal, durante a Revolução Constitucionalista de 1932, reforça a ideia que o princípio do decênio de 1930 até 1937, foi “dominado ainda por conflitos e negociações, violentos e delicados, conformadores de uma ‘incerteza’ só cessando quando as forças vitoriosas definiram que ‘entre o povo e o governo’ não haveria mais intermediários” (GOMES, 1998, p. 515)[2]. Havia, naquele momento, insatisfação e tensões entre diversos setores da sociedade como jovens tenentes, classe média urbana, industriais, oligarquias e trabalhadores em geral. A instabilidade, conflitos e incertezas expandiam-se às gestões estaduais e municipais.

Após o encerramento do conflito de 1932, foi convocada uma Assembleia Nacional Constituinte para a elaboração da nova Constituição. Promulgada em 1934, a nova Carta Nacional continha medidas presentes na anterior, de 1891. Mantinha a nação como uma República Federativa, a separação dos poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário e o uso de eleições diretas para escolha dos membros dos poderes Executivo e Legislativo. A nova lei eleitoral, prevista na Constituição, permitiu a adoção do voto secreto e direto para todos maiores de 21 anos, incluindo as mulheres. Somente os analfabetos, soldados, padres e mendigos não poderiam ter direito ao voto. Todavia, cerca de 75% da população era analfabeta, conferindo à carta um caráter excludente.  Não houve, portanto, grande alteração na participação eleitoral.

Nas questões trabalhista e social, a Carta ampliou leis relativas à distinção salarial baseada em critérios de sexo, idade, estado civil e/ou nacionalidade e proibiu o uso da mão de obra de jovens menores de 14 anos. Além disso, estabeleceu o salário mínimo e a redução da carga horária de trabalho para 8 horas diárias dentre outros benefícios ao trabalhador que, na prática, quase não foram concretizados diante da resistência dos empregadores.

Outro aspecto a considerar refere-se ao fato de que, apesar das características democráticas, a Nova Carta determinava que suas leis não valiam para escolha do primeiro presidente. Dessa forma, Getúlio Vargas foi indiretamente eleito pela Assembleia Constituinte que estabeleceu um mandato de mais quatro anos. Ao final deste período, Vargas deveria ser substituído.

Tanto após o golpe quanto depois da promulgação da nova Constituição, diversas tensões continuaram a ocorrer no cenário nacional. Desde o início do século XX, inúmeras greves, sabotagens e conflitos ocorriam em todo o Brasil exigindo, por exemplo, a jornada de oito horas, melhores salários e, também, a regulamentação do trabalho feminino e de menores. Ao mesmo tempo, ideias reformistas, nem sempre identificadas umas às outras, caracterizavam as primeiras décadas do século XX, tais como aquelas ligadas ao fim do federalismo, à modernização, ao nacionalismo, às políticas higiênicas e sanitárias.

Neste sentido, o golpe ocorrido em 1930 não teria sido apenas uma crise de hegemonia provocada pelo colapso da política das elites oligárquicas, principalmente de Minas Gerais e São Paulo, como afirmam alguns estudiosos (FAUSTO, 1990; CARVALHO, 2001), assim como o Estado não teria sido o único sujeito político e agente histórico. Houve um conjunto de fatores e ideias, anteriores a 1930, que contribuíram para desencadeamento do processo. De acordo com Castro Gomes (1998), o Estado centralizado, presente a partir de 1930, não teria surgido devido a uma crise hegemônica, consequência de uma suposta fragilidade civil. Foi um projeto, amadurecido durante os anos de 1920, de proposta autoritária, corporativista e que enxergava que não havia democracia sem a presença forte do Estado. Uma nova relação público-privado, ausente de princípios individualistas, era necessária para solucionar as tensões da relação Estado-sociedade.

Diante deste cenário, a insatisfação da classe média urbana, que crescia em importância econômica - porém, não em representação política - e a revolta da população diante da falta de atendimento às questões sociais, da carestia de alimentos e de habitação e da repressão do governo tornaram-se alguns dos fatores para o ocorrido em 1930. Revoltas, já historicamente identificadas em livros didáticos, como a Greve de 1917, as Revoltas da Vacina, da Chibata, do Contestado e o Cangaço, por exemplo, aparecem como emblemáticas no contexto histórico do período. Entretanto, tais manifestações não ficaram limitadas a década de 1920.

Greves e outras manifestações em favor de melhores condições de vida permaneceram no pós 1930, ao contrário do que desejavam os idealizadores do golpe. Corroborando as afirmações de Ângela de Araújo e Ângela Castro Gomes a respeito de conflitos existentes no período, Pinheiro (1991) afirma que foram frequentes e violentas as greves durante os primeiros anos da década de 1930, destacando paralisações no setor de serviços como o de transportes. São acontecimentos que reforçam a tese de que não ocorriam mudanças significativas para a maioria da população e, tampouco, o avanço de direito sociais e políticos, mesmo depois da promulgação da Nova Constituição em 1934.  

Os estudos que tratam da busca de indícios de como poderia ter sido a atitude da população frente ao governo e sistema político no período em questão, reforçam essa interpretação. São perspectivas que, por meio do uso de fontes como cartas enviadas a periódicos e processos criminais, destacam expressões populares cotidianas [de resistência e/ou submissão] que superam as correntes historiográficas que enfatizam somente greves e protestos públicos como formas de luta por melhores condições de vida (SILVA, 1988; ARAÚJO, 2007; DUARTE, 1999).

Após 1934 a radicalização política permaneceu nas manifestações de insatisfação e oposição a Getúlio Vargas. Enquanto jovens tenentes tentavam, em vão, mobilizar as classes médias urbanas a favor de uma revolução contra o governo federal, membros da oposição e de apoio a Getúlio fundavam, respectivamente, a Aliança Nacional Libertadora – ANL sob a liderança de Luiz Carlos Prestes e a Ação Integralista Brasileira (AIB), de Plínio Salgado. Ao mesmo tempo, trabalhadores e o restante da população continuavam a manifestar-se, dado que as transformações desejadas não ocorriam.

Estas manifestações, muitas vezes omitidas e/ou descartadas por parte de algumas correntes historiográficas, eram constituídas por diversos tipos de manifestantes com variadas características. Podem ser identificadas em movimentos sindicalistas autônomos de trabalhadores nas greves que lutavam para escapar da oficialização instituída pelo Decreto 19.770 de 1931 (ARAÚJO, 1998)[3] ou na submissão [e/ou resistência] às formas de controle estabelecidas em troca de reconhecimento e inclusão nos novos moldes propostos pelo governo federal, a partir dos quais poderiam ter suas reivindicações atendidas (DE DECCA, 1990). 

Erick de Assis Araújo (2007, p.68) afirma que “O presidente procurou, em cada Estado, um conchavo entre representantes da ‘velha política oligárquica’ e grupo novos de poder”. Antes do golpe em novembro de 1937, Vargas minava seus opositores à esquerda e à direita por meio de uma prática de negociação com as forças perdedoras. Percebemos que, em se tratando da questão social, desde o início da década de 1930, o Estado passou a atuar de maneira a controlar, mediante diversas formas de regulação, os conflitos e manifestações provocados pelas desigualdades sociais.

Além disso, o contexto de radicalização política no início de 1930 teria sido fator primordial para que, em 1935, fosse promulgada a Lei de Segurança Nacional – LSN. Esta lei definia crimes contra a ordem política e social, dentre eles: a greve de funcionários públicos, incitação de ódio entre as classes sociais, a propaganda subversiva, organização em associações e partidos não permitidos por lei. A LSN tornou-se um dos instrumentos para o endurecimento do governo de Vargas e para a implantação do regime ditatorial do Estado Novo a partir de 1937.

As agitações políticas e sociais ocorridas, antes e depois de 1930, eram, segundo a política do Estado, sintomas da perda do sentido da nação e de ordem no país (ARAÚJO, 2007). Os conflitos e oposições, principalmente, após o levante de 1935 liderado por Luís Carlos Prestes, serviram de desculpa para a criação do discurso em prol da segurança, paz nacional e contra o comunismo. Assim, após a promulgação da LSN, em 1936 foi instituído o Estado de Guerra no qual os direitos civis foram suspensos. Momentaneamente interrompido, devido à proximidade das eleições presidenciais, o Estado de Guerra foi novamente decretado em outubro de 1937, às vésperas da escolha do novo presidente, baseado em um plano de ação comunista forjado pelo próprio governo [Plano Cohen] e arquitetado, segundo ele, para promover a discórdia e desunião na sociedade.

Um mês após o decreto, Getúlio Vargas anunciou à nação o início de uma nova era, determinando o fechamento do Congresso e outorgando uma nova Constituição que lhe conferia o controle dos poderes Legislativo e Judiciário. Em seguida, decretou o fechamento dos partidos políticos. Entre 1937 e 1945, Vargas deu continuidade à estruturação do Estado orientando-se cada vez mais para a intervenção estatal na economia e para o nacionalismo econômico, tendo como instrumentos principais de sustentação a censura e a propaganda política.

A fim de consolidar a identificação com o local de origem, iniciou-se um processo para eliminar as multiplicidades internas da sociedade projetando a imagem de unidade, indivisão e harmonia, típica da multidão que deveria caminhar nas ruas da cidade grande. A nação esboçaria, a partir de então uma transformação em busca do desenvolvimento industrial, a intensificação da urbanização e a modificação do sistema político e de gestão pública. O Estado passou a movimentar-se como interventor político e econômico e mediador da adesão da sociedade à nova ordem social assim como dos processos de confinamento a determinadas temáticas e sujeitos sociais.

A Constituição de 1937 e o discurso de Getúlio Vargas a respeito do novo homem brasileiro promoveram uma noção de cidadania definida pelo trabalho e pela ocupação. A construção do cidadão no Estado Novo, vinculada ao discurso de Vargas, conferia raízes ao povo brasileiro e visualizava uma igualdade de oportunidades que, contudo, deveria passar pelas necessidades e capacidades de cada um. Dessa forma, mais do que estar aptas para as mudanças, as pessoas deveriam ir buscá-las, movimentar-se. O trabalho assumia a importância de único meio de ascensão social e cidadania.

Por meio de um imaginário homogêneo de comunidade nacional, criado pela reconstrução da história oficial da nação e pela difusão da ideologia em meios culturais como músicas, rádio e revistas e estruturados em instituições e órgãos governamentais, surge a proposta de humanização do trabalho aliado do bem-estar comum da sociedade. O Estado Novo corroborava a invenção da noção de cidadão trabalhador e de um contrato social – entre cidadão e chefe da Nação - no objetivo de fundar o bom convívio na sociedade, que deveria ser pacífica e harmoniosa. Ao mesmo tempo, acima de todas as características necessárias para a formação do cidadão, tais como honestidade, saúde, coragem, determinação e inteligência, a cidadania do Estado Novo passava necessariamente pela regulação trabalhista. O trabalho, após a Constituição de 1937, tornou-se um dever social. A dignificação e integração do homem, elaborado pelo Estado, só seria possível por intermédio do trabalho.

A partir de então, vemos a importância dos órgãos de Segurança Pública no desenvolvimento da classificação e de métodos de distinção entre aqueles que não cumpriam seu dever para com a nação e da carteira profissional como identidade nacional. Centrada na figura do trabalhador da cidade registrado em carteira, a cidadania regulada excluía, portanto, aqueles que viviam do meio rural, autônomos e domésticos do meio urbano. Além destes, outras atividades e formas de vida, consideradas prejudiciais à ordem e moral da nação também seriam reprimidas ou tornadas “invisíveis”, a exemplo das prostitutas, dos ébrios e das pessoas com deficiência. Tornavam-se pré-cidadãos todos cuja ocupação a lei desconhecesse.

 

Referências bibliográficas

 

ARAÚJO, Ângela M.C. A construção do consentimento: corporativismo e trabalhadores nos anos trinta. São Paulo: Scritta, 1998.

ARAÚJO, Erick Assis de. Nos labirintos da cidade: Estado Novo e o cotidiano das classes populares em Fortaleza. Fortaleza: INESP, 2007.

CARVALHO, José Murilo. “Marcha acelerada (1930-1964)”. In: Cidadania no Brasil – O longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. pp. 89-153.

DE DECCA, Edgar. O Silêncio dos Vencidos. 2ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.

DUARTE, Adriano Luiz. Cidadania e exclusão: Brasil 1937-1945. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 1999.

FAUSTO, Boris (org.) História geral da civilização brasileira. Tomo III, 2º vol. São Paulo: Bertrand, 1990.

GOMES, Ângela de Castro. “A política brasileira em busca da modernidade: as fronteiras entre o público e o privado” In: NOVAIS, Fernando A. (Org). História da vida privada no Brasil: Contrastes da intimidade contemporânea. v.4. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. pp. 489-558.

PINHEIRO, Paulo Sérgio. “Frentes populares para a revolução” In: Estratégias da ilusão. A revolução mundial e o Brasil, 1922-1935. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, pp. 276-278.

SILVA, Eduardo. As queixas do povo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

 

[1] Mestra em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo; Bacharel e Licenciada em História pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.

[2] Outros processos podem ser encontrados também no já citado trabalho de Ângela M.C. Araújo, onde são examinadas as greves de 1930, 1931 e 1932, com participação de sapateiros, vidreiros, padeiros, tecelões, ferroviários. São movimentos que, além da luta por melhores condições de vida e trabalho, buscavam escapar da oficialização instituída pela Lei de Sindicalização de 1931. Ver também o estudo de ZAMBELLO, Marco Henrique. Ferrovia e Memória: estudo sobre o trabalho e a categoria dos antigos ferroviários da Vila Industrial de Campinas. Dissertação. (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humana (USP), São Paulo, 2005.

[3] O Decreto 19.770 de 1931 instituiu a Lei de Sindicalização, a qual tinha como objetivo geral fazer com que as organizações sindicais de empresários e trabalhadores tivessem sua função principal fundamentada e regulada por órgãos de colaboração do Estado. Além de movimentos contra a Lei da Sindicalização, Ângela Araújo identifica forças do movimento de trabalhadores que contribuíram na efetivação da nova estrutura sindical. Por outro lado, a autora destaca que o atendimento de algumas reivindicações históricas também teria auxiliado na troca de reconhecimento e na submissão às formas de controle estabelecidas.

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