Um Longo Arabesco
Por: Jacquelyne O.
21 de Janeiro de 2020

Um Longo Arabesco

resumo

Teoria da Dança Aulas Teóricas

“Um Longo Arabesco”

Corpo, subjetividade e transnacionalismo a partir da dança do ventre



Essa matriz de movimento é considerada nativa de países de maioria

muçulmana, sendo compreendida, assim, como uma tradição de origem árabe. A ampla difusão de sua prática, todavia, garantiu transformações profundas e generalizadas em sua estrutura. A dança do ventre é atualmente praticada como um hobby, uma terapia e uma profissão por mulheres em escala global. Para a compreensão deste fenômeno, faz-se necessária a análise dos fluxos culturais e políticos globais. No caso desta dança, consideramos a colonização do Egito primeiramente pelos franceses e posteriormente pela Inglaterra como o marco para sua difusão. (P. 3)

 

O antropólogo e historiador da dança norteamericano

Anthony Shay, juntamente com a estudiosa do teatro e da dança Bárbara

Sellers-Young (2005), consideram que, sob a ampla sombrinha da matriz de movimento popularizada como “dança do ventre”, concentram-se danças variadas:

Uma vez estabelecido no imaginário público, o termo “dança do ventre” foi adotado por nativos e não-nativos para denotar todas as formas de dança solo do Marrocos ao Uzbequistão e envolvam ondulações, vibrações, círculos e espirais de quadris, torso, braços e mãos1 (p.01). (P. 12)

 

O nome da dança é, em si, um reflexo de sua complexa política: de

danse du ventre, primeira alcunha européia, a propostas como dança árabe, dança egípcia, dança da serpente, dança oriental ou seu correspondente na língua árabe, raqs sharqi – literalmente, dança oriental –, a escolha do epíteto acaba cedendo ao apelo da tradução da primeira alcunha. Dança do ventre é como a maioria das pessoas chama 1 Once established in the public imagination, the term ‘belly dance’ was adopted by natives and nonnatives

to denote all solo dance forms from Morocco to Uzbekistan that engage the hips, torso, arms and hands in undulations, shimmies, circles, and spirals. Shay & Sellers-Young, 2005:1.

13 essa matriz de movimento que é presente no imaginário popular, mas que também é praticamente desconhecida em sua estrutura e história. (P. 12- 13)

 

Presente no Brasil como opção de entretenimento para não-árabes desde

meados dos anos 1970, a dança do ventre começou a se difundir de modo mais concreto no início dos anos 1990. Sua popularidade alcançou o ápice nos anos 2000, com o sucesso da novela “O Clone”, produzida e veiculada pela Rede Globo, em cuja trama figuraram incontáveis cenas de dança em ricos cenários e figurinos exuberantes. Contrariando as expectativas para os modismos da televisão, como o sucesso da lambada e, mais recentemente, com as danças indianas, a popularidade da dança feminina árabe no Brasil foi sedimentada e atualmente um grande número de mulheres de diferentes faixas etárias e classes sociais busca a dança como uma opção de exercício físico e diversão.

 

A construção da dança do ventre como uma performance moralmente

“desaconselhável” perdura ainda hoje. As representações da dança no ocidente preservam

o padrão do hipererotismo, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. Produções

cinematográficas hollywoodianas e marketing televisivo que retratam a bailarina árabe não

raro o fazem com base na estereotipia, chamando mais atenção para o figurino

(minimalista, no mais das vezes) do que para a técnica coreográfica; valorizando

excessivamente a interação – exagerada e intrusiva – com o público do que aos momentos

de introspecção da artista, observados nas apresentações profissionais da dança. Tais

representações incomodam grande parte das praticantes. [...] (1997). (P. 20)



Entretanto, o número de praticantes parece seguir crescente, acompanhando as estatísticas de maior independência financeira e social da mulher urbana. Há um consenso quanto ao recorte de gênero da dança, ou seja, para grande parte das praticantes, trata-se de uma dança praticada exclusivamente por mulheres – a prática por homens é debatida, mas, em sua maioria, desconsiderada, com raras exceções. As praticantes crêem ser essa uma arte

performática feminina em potencial, é dizer, uma das raras danças de estrelato

unicamente feminino. (P. 21)

Narrativas sobre “resgate” do feminino são freqüentes. Apoiando-se em um determinado imaginário sobre a estética árabe, atribui-se à dança um caráter de universalidade, em que toda mulher, independentemente de suas disposições físicas, é bem-vinda. Portar um “ventre” – entendido pela praticante

como o útero – passa a ser o único pré-requisito para o início da prática da dança, o que se reflete em salas de aula cheias de mulheres de diferentes faixas etárias e configurações corpóreas.

 

O aprendizado da dança envolve, em primeiro lugar, o desejo de dominar

aquela nova linguagem, transpor para o próprio corpo os movimentos vistos nos corpos de outrem.[...] O ensino da dança do ventre no Brasil, consequentemente, costuma ser realizado em salas de aula, sob orientação direta de uma professora e repetição de exercícios, diferindo em grande parte do modo como as egípcias aprendem a dança. (P. 57)

 

Em seu “O Beco do Pilão”, de 1947, o escritor egípcio Naguib Mahfuz descreve o ambiente de aulas de dança através da personagem Hamida, uma moça pobre e ambiciosa que, em seu processo de transformação em

cortesã de luxo, adota o nome artístico de Titi:

- Tente não parecer tímida nem temerosa. Sei que é uma moça audaciosa e que não tem medo de nada...

Aquele aviso a fez recobrar os sentidos. Lançou-lhe um olhar hostil e ergueu a

cabeça com arrogância. Sorrindo, ele disse:

- Esta é a primeira classe da escola... o departamento de dança árabe.

Abriu a porta e entraram. Ela deparou com uma sala de tamanho médio,

elegante, de chão de madeira encerado. Estava praticamente vazia, à exceção de algumas cadeiras empilhadas à esquerda e de um lugar para guardar casacos num canto. Havia duas moças sentadas em cadeiras uma ao lado da outra e, no centro da sala, via-se um jovem com uma jilbab branca de seda e uma faixa na cintura. (...) Farag Ibrahim disse com voz enérgica, mostrando sua autoridade:

- Bom dia... essa é minha amiga Titi.

As duas moças fizeram um aceno de cabeça e o jovem respondeu numa vozinha afeminada:

- Bem-vinda, tolinha...

Titi retribuiu-lhe o cumprimento com um certo espanto, olhando, admirada,

para o estranho jovem. Estava com quase quarenta anos, apesar de não parecer. Tinha traços sem graça, era vesgo e enfeitava o rosto com maquiagem feminina, com kohl, ruge e pó-de-arroz. O cabelo brilhava com vaselina. Farag Ibrahim apresentou-o a ela:

- Este é Sussu, o instrutor de dança.

Sussu preferiu apresentar-se à sua maneira. Piscou o olho para as moças e elas começaram a bater palmas em uníssono. O instrutor começou então a apresentar uma dança com muita graça e agilidade, deslizando como uma serpente, a ponto de Hamida pensar que ele tinha um corpo sem ossos nem articulações ou que fosse um pedaço de borracha eletrificada. Movia todas as partes do corpo sem parar... as nádegas...os quadris...o peito...o pescoço...as sobrancelhas...e ficava o tempo todo olhando com uma expressão lânguida e um sorriso imprudente, mostrando seus dentes de ouro. Finalmente concluiu a apresentação com um tremor abrupto. (...) Virou-se

para Farag Ibrahim e perguntou:

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- Aluna nova?

Ele virou-se para Titi e disse:

- Acho que sim.

- Nunca dançou antes?

- Não, nunca.

Sussu parecia encantado.

- Melhor ainda, senhor Farag. Se ela não sabe dançar, posso moldá-la como

quiser. As moças que aprendem princípios de dança errados são muito difíceis de ensinar (MAHFUZ, 2003:236-237). (P. 62-63)

 

Diferentemente do balé, a dança do ventre não se estrutura sobre um

repertório coreográfico estanque e tampouco há consenso quanto à nomenclatura. Observa-se a repetição de um grupo pequeno de movimentos básicos que podem ser desconstruídos, combinados e recombinados a outros movimentos, originando novas unidades coreográficas que, à medida que vão sendo compartilhados pelas praticantes, compõem um leque de movimentos elaborados e importantes – agregados aos básicos – para o desenvolvimento e valorização da bailarina. Para além desse repertório que podemos chamar de “clássico”, não há grandes limitações a movimentos originários de outras formas coreográficas, como o balé, as danças folclóricas e populares brasileiras ou estrangeiras: são incorporados à dança do ventre sem pudores contanto que expirem a intenção da Dança e que sejam incorporados por personagens relevantes da dança no Brasil ou alhures.

Neste mesmo espírito, no Brasil, os nomes dos movimentos são formados a

partir do compartilhamento: a professora ou uma bailarina de grande repercussão utiliza um nome e este é adotado pelas praticantes, mas não há garantia de entendimento entre grupos diferentes. Deste modo, se, por exemplo, um grupo chama determinado passo de “suheir”, outro pode chamá-lo de “soldadinho”, outro terceiro grupo pode adotar o termo “maya quebrado” e o reconhecimento do passo fora daquele grupo só é feito a partir de demonstração física ou de uma descrição minuciosa, como procuraremos realizar adiante neste capítulo. (P. 66)

 

O preparo do corpo para a prática da dança não guarda mistérios em sua

semelhança com o de diversas outras danças: coluna alongada, calcanhares alinhados com quadris e ombros, ombros relaxados, joelhos relaxados – e não fletidos ou estirados –, abdômen contraído na base e quadris “encaixados”. (P. 67)

 

O principal problema está no que muitas vezes chamamos relação de ‘encaixe e desencaixe’, a báscula do quadril. O ponto de partida não pode ser um quadril encaixado (como se estivéssemos sentadas) nem ‘empinado’ (lordótico). À semelhança do que falamos sobre joelhos soltos, manter o quadril no ponto neutro requer uma pesquisa corporal, um estudo para ampliar a consciência da postura (XAVIER, s/d, p.8). (P. 67)

 

Entende-se, portanto, que os quadris não podem estar projetados à frente ou

para trás; devem permanecer “encaixados” – ou neutros - de modo a responderem aos movimentos da maneira esperada e a se permitirem maior mobilidade.

A postura é um aporte para o movimento e não um elemento isolado na dança.

Como ponto de partida, é necessariamente “natural”: a partir dela poder-se-ia dançar samba, forró ou valsa. (P. 68)

 

Como o termo sugere, chamo de melódicos os movimentos em linha contínua, sem pausas abruptas, associados à ondulações, círculos e curvas de um modo geral. Na leitura musical, são geralmente utilizados na tradução de instrumentos como violino, acordeom e alaúde. Os movimentos percussivos constituem-se de batidas e interrupções em geral. São naturalmente associados à percussão, mas também podem acontecer em um solo de

qanoum ou nas interpretações em staccato de violino ou qualquer outro instrumento musical. Os dois universos podem ainda ser sobrepostos, permitindo uma leitura musical mais apurada, unindo vibração e suavidade, como em um oito tremido, que nos sugere a imagem de uma linha pontilhada. (P. 69)

 

Ventre e quadris

Icônico na dança, o ventre é a parte do corpo que gera o menor número de

passos específicos. Ainda que o figurino contemporâneo evidencie a barriga ao deixá-la exposta, os movimentos originados na musculatura abdominal são, no repertório básico,

apenas três: a ondulação, a batida abdominal e uma variação de tremido (resultante da vibração muscular abdominal ou do diafragma).

O protagonismo corporal é, indubitavelmente, dos quadris, responsáveis pela

maior parte da técnica específica da dança do ventre. As danças ocidentais de certo modo silenciam os quadris. No balé, o quadril é coadjuvante, como se, ao invés de comandar, apenas respondesse aos movimentos das pernas. Na dança do ventre, pensa-se o movimento a partir dos quadris para que, dali, possa-se focar na atuação dos joelhos, por exemplo.

São os quadris que capturam o olhar do expectador e que desenvolvem os

movimentos de base, ainda que alguns destes se originem nas pernas. Como ponto focal da dança, os quadris figuram ainda como índice de qualidade da dança. É muito comum ouvir, em conversas informais entre colegas, que tal bailarina é boa, “mas não tem quadril”, indicando que faz pouco uso das técnicas mais apreciadas da dança. Outra afirma: “ela só tem efeito, não tem quadril”, para julgar uma bailarina exuberante em cena, mas que explora pouco as técnicas específicas da dança do ventre. (p. 70)

 

Oitos

O símbolo do infinito é a maior referência dentre os movimentos melódicos da

dança do ventre e está presente em vários passos, inclusive na movimentação de braços. Os quadris desenham-no em quatro direções e em dois planos.

No pano horizontal, o símbolo é imaginado projetado no chão e as praticantes

executam o “oito para frente” e o “oito para trás”: com maior ou menor grau de

isolamento da bacia em relação ao tronco superior, os quadris desenham o oito infinito no plano horizontal de trás para frente (chamado também de “oito egípcio”) ou da frente para trás (também conhecido como “oito americano”). Em ambos os passos, o quadril desloca-se para a lateral, afastando-se assim do eixo e permitindo que o peso do corpo pouse majoritariamente sobre um dos pés; executa-se uma torção do quadril – para frente ou para trás, a depender do tipo de “oito” que se deseja executar – e troca-se o peso para que tudo se repita e complete a figura do oito infinito. O movimento deve ser contínuo e os ombros devem permanecer mais ou menos estáticos, a depender da intenção da bailarina. De fácil execução, é muitas vezes o primeiro movimento ondulatório ensinado à estudante de dança do ventre.

No plano vertical, a referência – o símbolo do oito infinito – está à frente da

praticante, que executa o movimento de cima para baixo (“oito pra baixo” ou “oito maya”) ou de baixo para cima (“oito pra cima” ou “maya invertido”). Não há torção envolvida nestes passos. O quadril desliza para um dos lados – levando o peso para este lado –, sobe ou desce e transfere-se o peso para o outro lado, cruzando o movimento. No maya, a seqüência de movimentos é a seguinte: desliza-se o quadril para a direita, alonga-se joelho e projeta-se o quadril direito para cima; baixa-se o quadril trocando peso para a esquerda; repete.

O maya é considerado pelas praticantes como um dos movimentos de mais

difícil compreensão e execução. Todos os movimentos devem ser executados, em sua forma básica, com os pés planos no chão, sem elevação de calcanhares. No maya, portanto, os joelhos e a bacia são responsáveis pelo desenho do movimento.

Redondos

Os círculos, muito presentes na dança do ventre, são evocados na execução de diversos movimentos. Como figuras básicas, apresentam-se em três desenhos relacionadas à sua amplitude: pequeno, médio e grande.

O redondo médio é o mais simples e o mais facilmente reconhecido pelas

mulheres: trata-se do movimento que os quadris fazem ao brincar com um bambolê. O quadril desloca-se do eixo básico do corpo moderadamente, desenhando um círculo em volta do corpo. Os pés estão levemente afastados, sem diferenciação da postura básica.

A versão em menor escala deste movimento envolve uma rotação completa do

quadril em seu próprio eixo e os pés estão geralmente unidos. Algumas professoras evocam danças brasileiras pra mostrar às alunas a importância de manter as pernas fechadas durante a execução deste passo; para muitas, manter as pernas afastadas e os quadris desencaixados enquanto fazem um redondo pequeno “transforma a dança em axé”.

No Brasil executam-se dois redondos pequenos que se diferenciam pelo

trabalho de encaixe de bacia e pela lateralização. O “redondo equilibrista” é executado com menos ênfase no encaixe pélvico: ao passar pela frente, o desencaixe é ajudado pela projeção de abdômen; nas laterais, os quadris são projetados para os lados, como no oito maya. No redondo pequeno tradicional, o quadril é enfatizado com encaixes e desencaixes marcantes: a trajetória costuma ser lado-encaixe-lado-desencaixe. Em um vídeo, a coreógrafa egípcia Raqia Hassan chama este movimento de brazilian hip circle,

indicando que se trata de uma adaptação brasileira. Nos Estados Unidos, porém, este mesmo movimento é conhecido como omni.

Movimento de alto impacto visual, o redondo grande envolve também o tronco

superior. As pernas são afastadas, formando um “A”, e o quadril executa o movimento circular bastante distanciado do eixo. O tronco comporta-se de maneira coordenada, mas oposta aos quadris: enquanto o quadril projeta-se pra a direita, o tronco alonga-se para a esquerda; quando o quadril está ao fundo, o tronco está à frente. A bailarina pode executá-lo com rotação de cabeça, chamando atenção para os cabelos. Suas variações

incluem agachamentos, mudanças de direção e conexões com giros.

Camelos

Trata-se da ondulação de todo o tronco e quadris, em padrão serpenteado (no

estilo libanês) ou da ondulação do tronco inferior, com concentração nos quadris e ventre (no estilo egípcio). Registrei três modos de ensino e execução deste movimento, que passo a descrever:

a) O movimento se inicia com o desencaixe de quadris; projeta-se o peso para

a ponta dos pés, encaixam-se os quadris e retorna-se o peso para os calcanhares, desencaixando ao final. A ondulação produzida é delicada, consistente com o estilo egípcio.

b) O movimento se inicia a partir do busto, que se encontra “desencaixado”,

i.e., projetado à frente. O busto abaixa, contrai-se estômago, seguido do abdômen (com isso se produz o encaixe dos quadris) e levam-se os quadris para trás, produzindo o desencaixe. Este movimento produz uma ondulação grande, característica da dança libanesa.

c) O movimento se inicia com desencaixe de quadris e é executado como no

primeiro modelo aqui apresentado, mas sua ênfase é na musculatura abdominal. Produzse assim uma ondulação muito pequena, bastante utilizada em deslocamentos rápidos.

Este camelo ficou conhecido como “ondulação Farida” após ter sido assim denominado por Lulu Sabongi, a mais célebre bailarina brasileira. Ela homenageia Farida Fahmy, bailarina egípcia que fez parte da Firqat Reda, companhia folclórica da qual falaremos com mais detalhes no capítulo seguinte.

Na apostila em que apresenta seu método de ensino, Cínthia Nepomuceno

relata sua impressão da associação do movimento camelo ao animal:

Antes de ir ao Egito e montar um camelo eu não entendia porque o movimento tinha essa denominação. Para mim, se parecia mais com os movimentos de uma serpente. Mas, para manter-me equilibrada enquanto o camelo dava suas passadas oscilantes, automaticamente meu quadril passou a ondular para frente e para trás, no movimento

de oito descrito acima (NEPOMUCENO, s/d: 20).

O camelo invertido ou “ondulação contrária” se refere ao mesmo movimento

executado primeiro com os quadris desencaixados e projeção do ventre à frente. Muito utilizado como movimento de transição entre quadris e tronco superior.

Movimentos percussivos

Batida lateral

Executado em plano horizontal, trata-se de um dos primeiros movimentos ensinados nas aulas. Com a ajuda dos joelhos e com troca de peso entre os pés, os quadris se deslocam para a direita ou para a esquerda, produzindo uma batida. A depender da intenção, os pés podem ou não sair do chão e pode-se permitir maior ou menor reverberação da batida dos quadris para o tronco. É a base para diversos outros movimentos e passos, como o “shimmy em L”. Ao ensiná-lo, as professoras referem-se a este movimento como “aquele que fazemos ao dar aquela batidinha a mais para fechar a porta do carro”.

Básico egípcio

O “básico egípcio” é um dos passos mais conhecidos da dança do ventre e não

raro é o adotado por não-conhecedores da dança para parodiá-la. De natureza vertical ou diagonal, o movimento, como descrito antes neste capítulo, é percebido em apenas um dos quadris. O peso se concentra em uma das pernas (perna de base), que está com o joelho relaxado, enquanto a outra se posiciona flexionada, com pé em ponta (perna de efeito); o quadril desta perna deve ser elevado. O quadril da perna de efeito bate para baixo, retorna e bate novamente, deixando o movimento reverberar para a perna, que se estende, permitindo que o pé “escorregue”.

A mesma batida sem o efeito das pernas é também chamado de “básico egípcio” ou, muitas vezes, simplesmente “básico”. Este passo recebe inúmeras

variações, como múltiplas batidas, reverberação da batida para o tronco superior e cabeça, floreios com a perna, deslocamentos etc. 

Suheir

O termo “Suheir” homenageia a prestigiosa bailarina egípcia Suheir Zaki, que

adotava este movimento em todas as suas apresentações, tanto em momentos estáticos quanto dinâmicos da dança. O movimento passou a carregar essa alcunha após a difusão de um VHS didático em que Soraia Zaied a adota. É também conhecido como “maya quebrado”, “soldadinho” ou “batida maya”.

Sua execução é vertical. Os quadris, com troca de peso, deslocam-se para um

dos lados e para baixo e o movimento se repete para o outro lado. O movimento é executado com quadris e joelhos, mas muitas artistas e estudantes utilizam também os calcanhares para facilitar a execução. Há profissionais que não admitem o uso dos calcanhares. Pode ser utilizado em meia-ponta, estático ou em deslocamentos e exige o isolamento dos quadris em relação ao tronco superior.

Twist

É a torção dos quadris, semelhante ao movimento de uma máquina de lavar.

Exige completo isolamento dos quadris em relação ao tronco superior. Utilizado em deslocamentos ágeis ou na composição de outros movimentos.

Tremidos e shimmies

As vibrações constituem o conjunto de movimentos mais notável da dança do

ventre. É um dos aspectos coreográficos mais presentes em descrições da dança feitas por viajantes, que expressam sua estranheza e abismamento diante dessa expressão delicada e impactante.

Ainda que as palavras pareçam aludir a um mesmo fenômeno, no Brasil as

professoras apontam suas diferenças: enquanto os tremidos são “puros”, resultados de um movimento vibratório intencional, os shimmies são movimentos combinados que produzem vibração.

Há diversos tipos de tremidos, produzidos de maneiras diferentes. Os mais

comuns são os tremidos produzidos com a flexão alternada ou concomitante dos joelhos, com ou sem participação de quadris (tremido solto) e as vibrações produzidas pela contração muscular, em geral de quadríceps – nos Estados Unidos utilizam também um tremido gerado pela contração de glúteos. Estas vibrações são chamadas de tremido preso ou de tensão.

Os shimmies – do inglês shimmer, que traduz o tremeluzir da luz38 – são, para

algumas profissionais entrevistadas, movimentos combinados que, executados

rapidamente, dão a ilusão de tremido. O “shimmy em L” acontece quando se combina batida lateral e elevação de quadril: o quadril direito bate lateralmente; quadril esquerdo sobe, com elevação de calcanhar. Em seguida, o calcanhar e o quadril descem e o Do Aurélio, bruxuleio. quadril esquerdo bate lateralmente. No processo contínuo e com velocidade acelerada, o resultado é um tremor. Diversos outros movimentos combinados produzem shimmies.

Batida pélvica e batida abdominal

A batida pélvica envolve o encaixe e o desencaixe da bacia. Pode ser súbita,

com um desencaixe imediatamente seguido do encaixe, ou dividida: encaixe ou

desencaixe. A batida abdominal é puramente muscular, produzida por contração e relaxamento. Os dois movimentos podem também ser combinados, resultando em outro passo, com maior impacto.

Ombros, braços e mãos

Os ombros traduzem sons melódicos e percussivos. Podem realizar batidas

para cima, para baixo e para frente, além de ondulações sutis e vibrações. Um exemplo é o “shimmy de ombros”, produzido, na verdade, pela alternação de movimentos das espáduas.

Os braços são extremamente ativos e as alunas iniciantes encontram neles o

maior desafio: coordenar os delicados desenhos e molduras enquanto controlam os quadris. Há algumas posições básicas de braços, como se pode perceber nas imagens

abaixo:

1. Braços levemente estendidos na diagonal à frente. A altura pode variar, mas é geralmente relaxada, com cotovelos na altura dos seios. É um posicionamento básico, relaxado, utilizado todo o tempo em sala de aula durante os exercícios de quadril. Em apresentações, é priorizado quando a bailarina executa movimentos muito elaborados de quadril enquanto se posiciona de frente para o público.

2. Braço que corresponde à perna de base erguido, braço da perna de efeito alongado na lateral ou diagonal. Em sua variação, o braço da perna de base permanece flexionado, com a mão na cabeça. É utilizado quando a bailarina está em diagonal ou de perfil para

o público.

3. Braços erguidos sobre a cabeça. É um posicionamento comum quando a bailarina está de costas. Sublinha isolamentos de quadris ou deslocamentos.

A egípcia Samia Gamal

3. Braços abaixados, emoldurando quadris. Posição muito utilizada durante a execução de shimmies e tremidos.

Ondulação de braços

Formando um ângulo de 90º com o cotovelo (antebraço para baixo), o braço

sobe até a altura dos ombros, desfaz o ângulo e desce novamente. Usado alternado com o outro braço ou como parte de outro movimento. É também conhecido como “braços de serpente”.

Tórax

As comumente chamadas batidas de peito podem ser realizadas em todas as

direções para a marcação percussiva da música. No campo dos movimentos

ondulatórios, o tórax executa rotações. No plano vertical, são executados os redondos de peito, em que o tórax é projetado à direita, para cima, para a esquerda e para baixo. No plano horizontal, menos utilizado na dança brasileira e bastante comum entre as artistas estadunidenses, o peito vai à lateral, atrás, lateral e projeção à frente. Há variações, como a emulação dos oitos, compostos por dois círculos (de orientação vertical ou horizontal).

Na dança egípcia, o uso das marcações toráxicas é reduzido, diferentemente do cenário libanês, em que os movimentos de peito repetem-se inúmeras vezes em uma mesma apresentação.

Cambrées

O termo, vindo do francês utilizado no balé clássico, indica que o movimento

consiste em uma curvatura do corpo. Na dança do ventre, utilizam-se dois cambrées básicos a partir dos quais são feitas variações. No cambrée para trás, o quadril se projeta à frente e o arqueamento do tronco. No cambrée lateral, o quadril permanece encaixado e a curvatura é feita para o lado.

Pernas (deslocamentos)

Os movimentos amplos ou específicos de perna, característicos de danças

ocidentais, como o balé e o sapateado, não eram tão comuns na dança do ventre profissional egípcia, tampouco na brasileira, até o início dos anos 2000.

Tradicionalmente, as pernas são usadas em chutinhos (como complemento do

movimento do torso) ou em poses. No primeiro caso, arrematam movimentos como o básico egípcio. Nas poses, as pernas estão paradas e são evidenciadas com movimentos de mãos ou de quadris (como oitos ou tremidos). Acredita-se que os deslocamentos foram desenvolvidos com a criação das salat, como a Casino Opera de Badi’a Masabni:

“Badi’a afirma ter introduzido novos movimentos na raqs sharqi tradicional (...) para torna-la mais interessante de se assistir, ‘pois as danseuses egípcias costumavam dançar apenas tremendo a barriga e as nádegas39” (DOUGHERTY, 2000:170).

De fato, as memórias de viajantes europeus descrevem a dança como

eminentemente estática. Mesmo nas acelerações, a bailarina parece manter-se fixa em seu espaço cênico, como se depreende dessa descrição da dança da almeh Hasné pelo francês Paul Lenoir:

A artista não esperou ser chamada; ao primeiro som do derbaque, Hasné plantou-se firmemente no meio da tenda (...). De início lenta e cadenciada em seus movimentos, a danseuse quase não se movia de seu lugar ao qual parecia colada pelos pés; então, o ritmo da música se acelerando um pouco, imperceptíveis e ligeiros se sucederam a incríveis inflexões de seu corpo e aos movimentos quase convulsivos que formama a base das danças das Almehs40 (LENOIR, 1872:104-5).

Lois Ibsen al-Faruqi destaca que os movimentos intrincados de torso

constituem uma das principais características dessa dança, em detrimento dos saltos e 

413. Os acessórios e as formas folclóricas

No Brasil são muito apreciados os acessórios cênicos, entendidos pelas

praticantes como parte essencial da prática da dança do ventre. No Egito, todavia, sua utilização é limitada aos snujs e ao bastão em performances folclóricas; muito raramente utiliza-se o véu, ainda assim de modo bastante rudimentar. O candelabro, por exemplo, era bastante utilizado até os anos 1980, mas não é visto com freqüência na atualidade.

3.1. O Véu

O véu é o acessório mais estudado pelas brasileiras, ensinado desde as

primeiras aulas. Trata-se de um retângulo de tecido leve e translúcido (musseline, gazar, seda etc.) com aproximadamente dois metros e vinte de largura por um metro e quarenta de altura. É utilizado principalmente na entrada da bailarina, que, numa rotina clássica, desfila pelo espaço de show e não deve fazer muitas elaborações com os quadris até que abandona o véu para iniciar uma interpretação mais profunda da música. Nieuwkerk sugere que esse acessório foi introduzido nos anos 1920, acompanhando as mudanças

no figurino da dança, que foi se “orientalizando” à medida que se difundia: “The veil, preeminently ‘Oriental’, was introduced to heighten the mysterious vamp image of the dancers” (1995:42).

Diversas inovações com o véu foram inseridas na dança nos últimos dez anos,

como o véu duplo, o véu wings – que consiste em dois triângulos de véu com varetas nas pontas, seguradas pela artista para elaborar desenhos –, o fan veil – um leque com véus nas pontas – e o véu poi – parecido com malabares, que dão efeito de distância entre o acessório e a bailarina. Para quem assiste, o véu “faz [a bailarina] parecer uma fada, uma princesa”, segundo uma professora entrevistada.

3.2. A espada

Acessório mais solicitado em contratações particulares, a espada evoca no

espectador imagens de poder, perigo, habilidade e força. O contraste entre o instrumento de guerra, masculinizado, e o modo suave – feminizado – como a artista o manipula estimula o imaginário do espectador. Esse acessório não é utilizado atualmente no Egito, apesar de haver relatos de equilíbrio de sabres, entre outros objetos, em festas de santos no século XVIII (NIEUWKERK, 1995:27).

Azulejo egípcio (séc. XIX)

A bailarina trabalha a espada equilibrando-a na cabeça, seios, quadris e

ombros, além de fazer evoluções com o acessório em punho. Tais evoluções podem ser abstratas ou fazerem referência direta ao combate. Menos comum, essa última linha interpretativa tem ganhado espaço no Brasil na medida em que a dança do ventre começa a percorrer um caminho mais artístico e teatral.

3.3. Os snujs e o pandeiro

São os únicos instrumentos musicais utilizados pela bailarina enquanto dança,

mas têm status de acessórios. Os snujs são pequenos pratos de metal utilizados nos dedos polegar e médio de ambas as mãos. São mais conhecidos como sagat (Egito) e zills (EUA).

3.4. O candelabro e as tacinhas

A agora tradicional dança do candelabro – el raqs el shamadan – foi, segundo

Karin van Nieuwkerk, introduzida na dança pela famosa dançarina Shafia il Ibtiya nos anos 1920 (NIEUWKERK, 1995:43). Bailarinas brasileiras, em artigos informais disponíveis na internet, afirmam que era uma dança utilizada pelas artistas em festas de casamento, para iluminar o trajeto dos noivos ao longo das ruas e associam o ritmo zaffa – que designa a procissão de casamento – ao acessório. Não encontrei, todavia, confirmação dessa história em artigos científicos.

Pouquíssimo utilizada atualmente devido às limitações de teatros e à própria

dificuldade de execução da dança, a raqs el shamadan ganhou uma outra versão, mais leve e fácil: a dança das tacinhas. Nessa versão, as bailarinas dançam com duas taças de vidro nas mãos, dentro das quais são alocadas pequenas velas. Em geral, são danças executadas ao som de taqsim, o improviso melódico da música árabe. Com a proibição do uso do fogo na maioria dos teatros, algumas artistas substituem as velas de parafina por versões de LED. O efeito, como se pode imaginar, não é o mesmo, e as bailarinas têm evitado seu uso. Atualmente, quase não se vê, no Brasil, apresentações com esses acessórios.

3.5. As “danças folclóricas”

Integram o corpus coreográfico obrigatório da bailarina do ventre algumas

modalidades consideradas folclóricas. As mais populares e que são correntemente ensinadas nos estúdios de dança são o saidi, o khaligi, a dança do jarro (fallahi) e o melah laff.

Popularmente chamada de saidi, a raqs el assaya (literalmente, dança do

bastão) é uma versão feminina da dança-luta masculina Tahtib. No tahtib, praticado no sul do Egito – região chamada de saidi, termo que também alcunha o ritmo que comanda a dança – os homens elaboram seqüências de ataque e defesa. Na versão feminina, a dança consiste em saltos e manobras com o bastão.

O termo khaligi significa “golfo” e nomeia uma versão popular de uma dança

do Golfo Pérsico. Dançada com longas batas, o khaligi enfatiza movimentos de cabeça e cabelos, que são jogados para os lados e girados. O ritmo de base é o soudi. 

A dança do jarro é uma representação da vida camponesa egípcia (fallahi). A

versão popularizada por Mahmoud Reda apresenta bailarinas vestidas com galabyas (camisolões) longas e largas. O topo da cabeça é coberto com um véu que deixa aparecer longas tranças. Na representação das bailarinas brasileiras, a dança retrata a busca pela água e a amizade entre mulheres da mesma vizinhança.

A dança do meleah laff (literalmente, pano amarrado) é, na verdade, a

teatralização de uma paisagem urbana. Até recentemente, a maioria das mulheres baladi do Cairo usavam o meleah, que é um pano preto escuro e pesado, para sair de casa. É o maior exemplo de “tradição inventada”, tendo composto os espetáculos da Firkat Reda, companhia que será foco de nossa atenção no capítulo seguinte. (P. 70- 86)

 

A relação da brasileira com a dança do ventre egípcia contemporânea é eminentemente afetiva, balizada principalmente pela afinidade estética em detrimento da reprodução mecânica da cena cairota. (P.111)

 

Trajes e elementos de adorno utilizados na dança variam temporalmente,

assim como a moda em geral. Por mais que a dança seja entendida pelas praticantes e por leigos como uma tradição antiga e forte, os adornos, cortes da saia e bordados utilizados podem caracterizar a bailarina como mais ou menos inserida no meio da dança profissional. O figurino das artistas do século XIX, conhecidos através de gravuras de viajantes consistia, como vimos nas imagens do primeiro capítulo, em uma saia longa (sem fendas) ou calça ampla (sem fendas), com camisa de manga longa, colete, lenço de quadril e longas fitas de tecido atadas ao cós da sobressaia, tudo sem os bordados intrincados e brilhantes que vemos hoje. Para Anthony Shay e Leona Wood (1976), o abandono desse padrão de vestimenta relaciona-se com a colonização britânica e o gradual esfacelamento dos padrões culturais turco-otomanos. Os autores observam que, além do fato de o Egito ter sido dominado diretamente pelos otomanos durante séculos, Constantinopla exportou tendências não apenas no mundo árabe, mas também para todo o leste europeu. Shay e Wood sugerem ainda que o figurino moderno pode ter sido influenciado também por outras tradições: (P. 111 – 112)

 

Mesmo não sendo possível precisar a evolução do figurino até o desvelamento do ventre, sabemos que já em fins de 1930 passou-se a utilizar amplamente a bedlah, ou seja, o conjunto de saia, sutiã e cinturão. Para Donna Carlton, a ópera Salome, escrita por Oscar Wilde, pode ter sido a principal influência para a nova moda. Planejada para estrear em 1894, a ópera foi censurada pela determinação de Lord

Chamberlain, que proibia a encenação de dramas com personagens bíblicos. Em 1905, a atriz canadense Maud Allan estreou a peça em Londres com grande sucesso. Seu figurino consistia em uma saia de tecido fino, cinturão e sutiã bordados: (113)

 

Nos anos 1970, franjas muito longas eram aplicadas no sutiã

e no cinturão; as saias tinham pouco volume e ostentavam fendas ainda mais profundas. Na década seguinte podiam-se ver bailarinas com cabelos curtos (como nos anos 1950) e cacheados em figurinos carregados de paetês e lantejoulas, mas não se mostravam mais os umbigos; saia e sutiã eram unidos por uma telinha. No início dos anos 1990, era moda usar franjinha nos cabelos (muito longos e pretos) e muitas franjas no cinturão; as saias eram preferencialmente de corte godê. Nos anos 2000, todavia, os figurinos sofreram radical alteração no Egito. Desapareceram as franjas e modelos curtos

começaram a ser adotados. 

 

Por concentrar grande parte de sua técnica nos quadris, como vimos no

segundo capítulo desta tese, e pela languidez dos movimentos de braços e ombros, a dança do ventre é considerada um código corporal de forte apelo erótico. Todavia, a noção de que a dança do ventre é uma dança erótica incomoda as praticantes. Em um formulário submetido a um grupo de discussão via internet em 2002 e respondido por vinte e nove praticantes de todo o Brasil (entre profissionais e estudantes) apontaram a erotização como o aspecto da dança que mais as incomoda92. Ou seja, praticamente a metade das que responderam (44,8%) sente-se perturbada com a associação entre sensualidade e erotismo. Nas respostas selecionadas abaixo pode-se perceber que o preconceito contra a dança por sua associação com práticas eróticas é

motivo de desconforto para praticantes de diversas partes do Brasil: (P. 157)

 

Conclui-se desses dados que as mulheres optam por aprender e praticar a

dança do ventre tendo por horizonte a fruição de seus próprios corpos e subjetividades.

Todavia, os dois principais estímulos, quais sejam, a busca pela feminilidade e a busca pela dança em si (“sempre achei linda”) dispõem uma dialética à dança (P. 163)

 

Elevado ao estatuto de centro das atenções nas últimas décadas do século

XX, o corpo é, a um só tempo, reflexo e objeto da cultura em geral e da cultura de massas em particular. A mudança do modo de exibir e expressar o corpo na mídia – de veículo para a venda de produtos, como nos comerciais de xampu a veículo da venda de valores associados ao corpo em si, num looping vertiginoso – impacta pesadamente na construção da subjetividade de todos e das mulheres em particular, por terem as imagens mais expostas na mídia e serem consequentemente mais cobradas na vida particular. (P. 163)

 

A mulher contemporânea se insere em uma rotina atribulada composta por

tarefas envolvendo trabalho-filhos-academia de ginástica. Sente-se, porém, frustrada por se ver tomada pelo cansaço do esforço cotidiano e ser cobrada a se apresentar socialmente com o frescor feminino que a modelo de propaganda exibe. Essa defasagem, resultado, por um lado, da pouca materialidade dos corpos pesadamente mediados por tratamentos estéticos e tecnológicos exigidos no mundo comercial e, por outro, do embaçamento entre o que é mercadoria e quem é o público que a consome (Bauman, 2007), resulta na percepção da mulher como sendo “menos feminina” em relação àquele modelo de mulher que vê na revista e na televisão. A dança do ventre,

conhecida pelo protagonismo feminino e celebrada pela delicadeza, complexidade e sinuosidade de seus movimentos, é identificada, então, por essa mulher como uma espécie de bóia de salvação para seu feminino “ameaçado”. (P. 163)

 

Ao mensurar o gênero, que é um dado sócio-cultural indivisível (mais

feminino versus menos feminino), e atribuir à dança do ventre o estatuto de fonte de feminilidade, a praticante nos oferece uma leitura da dança do ventre como uma “dança de significado”, isto é, uma construção cultural fechada, com uma função paralela, senão igual, ao sagrado. Dotada de sentido próprio e estável, a dança seria, então, uma fonte de referência para a praticante, a exemplo das danças rituais. Desse modo, não importa a dança em si, mas o sentido que essa dança é capaz de oferecer para a melhor

vivência de feminino da praticante. (P. 163 – 164) 





A dança do ventre, por sua vez, oferece à praticante uma

possibilidade de se inscrever artisticamente no mundo e de subverter os padrões de comportamento e beleza tradicionais.

O sofrimento mental e físico das mulheres para transformarem seus corpos de

acordo com os pressupostos em voga é inegável. Na contemporaneidade, com a ampliação e popularização dos meios modernos de comunicação, em que as mulheres são submetidas cotidianamente a apelos pela transformação corporal maciça, a obsessão pela imagem perfeita atinge extensão assombrosa. Mais do que nunca, um número maior de mulheres volta seus esforços para o redesenho de seus corpos; o modelo, no mais das vezes, representa um tipo físico diferente da maioria da população feminina mundial. Para a feminista Naomi Wolf, essa frustração e conseqüente submissão a um sistema doloroso são conseqüências do poder do mito da beleza:

A reação contemporânea é tão violenta porque a ideologia da beleza é a última

das antigas ideologias femininas que ainda tem o poder de controlar aquelas

mulheres que a segunda onda do feminismo teria tornado relativamente

incontroláveis. Ela se fortaleceu para assumir a função de coerção social que os mitos da maternidade, domesticidade, castidade e passividade não conseguem mais realizar (1992:13).

As noções de beleza, como toda construção social, variam cultural e

historicamente. Todavia, a disseminação de padrões que apoiariam o controle em massa sobre o corpo feminino pode ser creditada ao desenvolvimento tecnológico do século XIX. (P. 167)

 

As aulas de dança do ventre figuram, assim, como uma espécie de território

livre onde as mulheres podem fazer um exercício físico de baixo impacto enquanto aprendem movimentos e posturas que a fazem sentir bonita e exercer sua sexualidade de acordo com os princípios que acha melhor. A elevação da auto-estima é a grande promessa da dança do ventre e, de fato, muitas mulheres se acham mais bonitas enquanto dançam ou depois que começaram a praticar a dança. Uma professora resume a sensação das praticantes da seguinte maneira: “O meio da dança (...) é recheado de vaidade. Nenhuma mulher que dança se acha feia, uai. Não é? Ta ali, se olhando no

espelho toda cheia de pose, com os movimentos que valorizam o corpo feminino (Luana Neves)”.

A dança do ventre circunscreve um mundo onde a moldura dos corpos é

menos agressiva do que a exigida na prática do balé, em particular, e na imagética feminina comercial contemporânea. A cultura da dor, entendida como uma conseqüência da entrega completa e irrestrita à arte não encontra lugar na dança do ventre. Muitas vezes, mais que uma conseqüência, a dor aparece como uma espécie de prêmio, um fenômeno que coroa a ballerina como uma verdadeira intérprete da dança clássica. Na dança do ventre, a dor é um sinal de alerta e não é estimulada: a prática deve ser prazerosa e leve, ainda que ensaios exaustivos componham o cotidiano das equipes que atuam profissionalmente.

A partir do balé romântico, com a adoção das sapatilhas de ponta e a

idealização da figura feminina como etérea, feérica, imaterial, o controle sobre o corpo de quem atua profissionalmente se intensificou ampla e generalizadamente. A ballerina que se pretendia profissional precisava dominar não apenas a técnica, mas também determinados requisitos da estética corporal ideal. Além de magra e longilínea, a ballerina precisa apresentar um corpo com poucas curvas e, especificamente, bacia estreita.

Trata-se de uma estrutura corporal que dificilmente corresponde aos perfis

étnicos de grande parte das brasileiras – e também contradiz o das egípcias. A dança do ventre, por sua vez, não exige um cultivo metódico do corpo. O signo feminino na dança do ventre é mais transmutável: diferentes atributos são igualmente aceitáveis.

Desse modo, os corpos podem ser tônicos ou alongados e, principalmente, os quadris podem ser estreitos ou amplos. Todos os corpos carregam o potencial de executar os movimentos da dança e, a partir deles, desenvolver harmonicamente as criações coreográficas. (P. 170-171)

 

 

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