Uma história de xadrez e gênero
Foto de Kelly O.
Por: Kelly O.
03 de Abril de 2022

Uma história de xadrez e gênero

Para quem eu preciso provar que sou capaz? Como lidar com o descrédito constante num esporte tão "masculinizado?

Xadrez

Eu tinha 10 anos. Notas excelentes, uma aluna dedicada. Estudava de manhã e tinha faltado no dia da prova de matemática por questões médicas, então a professora perguntou se eu consegui fazer a prova no fundo da sala enquanto ela dava a aula. Eu aceitei, sabia que faria a prova em uns 20 minutos.

 

Eu havia começado a prova há menos de 8 minutos e um professor de educação física entrou na sala e pediu para fazer um convite, a professora permitiu e ele começou:

 

- Então, terá um campeonato de xadrez em alguns meses e eu quero montar uma equipe. O xadrez é um jogo de lógica, raciocínio matemático...- Eu amava matemática, lógica, competição... pensei: quero isso!

Ele continuou:

 

- Eu quero montar uma equipe forte e por isso quero saber quem aqui tem interesse e habilidade para participar desta competição; então vou propor um desafio para vocês: como a primeira habilidade importante para jogar xadrez é boa memória e inteligência espacial, eu vou montar o tabuleiro aqui uma vez – ele tinha um tabuleiro de lousa e começou a montá-lo – vou deixar por alguns segundos e quem conseguir remontar, vai poder participar da competição de classificação que irei organizar. Algum interessado?

 

Nesse momento algumas pessoas levantaram as mãos e eu estava entre elas. Um dos alunos gritou: a Kelly não pode, ela está fazendo prova.

 

- Bom, então ela não participa. – disse o professor de educação física.

 

Eu respondi apressada e confiante:

 

- Não! Eu quero participar! Já estou terminando o teste.

 

- Mas você vai acabar não concentrando no tes... – começou o professor.

 

Minha professora de matemática segurou no ombro dele e disse: ela consegue. Ela vai participar.

 

O primeiro menino levantou e o professor cronometrou o tempo que ele levou. O segundo e o terceiro levantaram e não conseguiram fazer mais rápido. Todos já sabiam jogar xadrez e tinham, portanto, familiaridade com a disposição das peças.

 

O primeiro menino disse, presunçoso e orgulhoso: ninguém consegue fazer mais rápido que eu.

 

- Eu quero tentar! – eu disse, eu já havia terminado a prova e estava pronta para a minha vez.

 

Ele deu uma gargalhada e falou:

 

- Até parece que você tem chance, você nem sabe jogar, nunca nem viu isso.

 

- Bom, então você não tem nada a temer.

 

Eu me levantei, fui até a lousa. “valendo”, disse o professor e acionou o relógio. Eu montei as peças em metade do tempo do primeiro menino, que ficou atônito e bravo.

 

O professor sorriu, contente que o desafio dele tinha gerado o interesse dos alunos:

 

- Quer uma revanche? – ele propôs ao primeiro menino, que aceitou.

 

Ele montou um pouco mais rápido que da primeira vez, mas ainda assim não foi mais rápido que eu.

 

- Não valeu - ele disse – ela tem que fazer de novo também, é uma nova rodada. – eu aceitei e ele embaralhou as peças para dificultar.

 

Eu montei as peças em 2/3 do meu tempo inicial. Foi um desafio bobo, eu sabia que isso não provava nada sobre minha capacidade de jogar xadrez, mas fiquei contente porque significava a chance de jogar.

 

Eu estudei as regras, fui nas duas aulas de iniciação dadas pelo professor para preparar os alunos para a competição. Mas, para a minha surpresa, no dia da competição, o professor não me deixou participar.

 

Primeiro a justificativa foi a de que eu era muito nova, verifiquei que tinha um menino mais novo que eu e então a justificativa foi a de que eu sido a última, então tinham pessoas na minha frente em uma suposta fila para ter direito de participar, mas então um dos meninos ficou doente e não poderia participar e ele colocou um menino que nem tinha pedido para participar do desafio, nem pedido para participar da classificatória.

 

- Mas você disse que quem conseguisse montar poderia participar, esse menino nem participou como ele está na minha frente – disse eu inconformada.

 

- Sim, olha, eu sei o que eu disse, mas você não sabe jogar e temos candidatos fortes.

 

- Pois então me deixe jogar, se eles forem fortes mesmo, eu irei perder.

 

- Deixar você participar é perda de tempo, terei que fazer jogo a mais.

 

Eu perguntei quais eram os três jogadores mais fortes e, determinada a provar meu valor, desafiei cada um antes da classificatória, que era em uns 3 dias. Ganhei de todos.

 

Com isso, pensei, o professor não vai mais considerar uma perda de tempo que eu participe. Então fui novamente falar com ele para contar o que tinha acontecido. Mas a reação dele não foi a que eu esperava:

 

- Olha, você ter ganhado deles não muda nada, eles deixaram você ganhar.

 

- E por que eles fariam isso?

 

E cada um deles fundamentou o porquê de supostamente ter me deixado vencer:

 

- Bom, eu não queria magoá-la, sabe? Garotas são sensíveis – disse um.

 

- Eu não estava jogando sério, ela é uma menina, não tem como ganhar de mim sério, por que eu gastaria energia?

 

O Mateus foi o único que afirmou que eu de fato ganhei, então o próprio professor justificou o dele:

 

- Ele está apaixonado por você, por isso te deixou ganhar.

 

Eu sabia que tinha ganhado, pois cada um deles quando eu ganhei ficava atônito e ficava bravo por ter perdido para uma menina, eles não se colocariam nessa situação de propósito. Desafiei todos de novo, para desta vez jogar “sério”, uma que ninguém admitia minha vitória. Jogamos e eu ganhei e nada mudou.

 

Foi então que eu entendi, não era sobre minha idade, experiência ou habilidade, era sobre meu gênero. Todos da classificatória, os mais de 20, eram meninos, eu era a única garota.

 

Cheguei em casa desolada. E fui contar à minha mãe o que aconteceu:

 

- Eu me sinto impotente. Se fosse sobre minha idade, uma hora eu iria crescer, se fosse sobre minha experiência, eu praticaria mais, e se fosse sobre ter habilidade eu estudaria o dobro. Mas o que eu posso fazer a respeito de ser uma mulher? Eu não posso mudar isso.

 

 - Não, não pode. Mas você pode mudar essa proibição de que mulheres não podem jogar.

 

- Mãe, eu tentei...

 

- Não, você tentou provar para eles que você é boa. – Ela parou segurou meu ombro e olhou nos meus olhos marejados – Filha, você é boa?

 

- Sim, eu sou boa.

 

- Você realmente ganhou daqueles meninos considerados mais fortes?

 

- Sim, eles estavam criando desculpas.

 

- Então não se importe se eles enxergam isso ou não. A versão deles não pode ser mais importante para o seu coração do que a sua própria.

 

- Mas eu não sei o que fazer, não tem nada que... – eu queria desistir, me sentia fraca e impotente.

 

- Eu sei que é difícil – a voz dela estava mais grave, o tom sério, quase em uma bronca, mas ainda gentil – Mas vai ficar muito pior. Você vai passar por isso muitas vezes na sua vida. Você não pode desistir no primeiro obstáculo, principalmente quando o obstáculo é um homem te dizendo o que você pode ou não fazer. Você sabe por que disso?

 

- Não – eu disse chorando muito.

 

- Porque isso vai ser o primeiro obstáculo, todas as vezes. E se você parar nele todas essas vezes, você não vai chegar a lugar nenhum. Eu sei que é difícil, mas é o mais difícil. Quando você vencer esse obstáculo, terá percorrido o mais difícil, entende?  Eu não sei como você vai fazer isso, mas desistir não é uma opção.

 

Eu não desisti. Fui ao campeonato como substituta e ainda assim tive o melhor resultado de todos os envolvidos, sendo a única classificada para a próxima etapa.

 

Depois disso, eu me desenvolvi cada vez mais no xadrez, ganhei muitos campeonatos. O descrédito em mim, em razão do meu gênero, ainda é real. Mas a minha mãe ter me ensinado a acreditar em mim mesma tornou a descrença dos outros irrelevante. 

 

Porque em qualquer objetivo da vida que se tenha não é sobre provar para os outros do que sou capaz ou que eu mereça, é sobre me tornar mais capaz a cada dia.

Kelly O.
Kelly O.
São Paulo / SP
Responde em 20 h e 54 min
Identidade verificada
1ª hora grátis
5,0
nota média
1
avaliação
R$ 125
por hora
Graduação: Direito (Pontíficia Universidade Católica de São Paulo (PUC))
Xadrez, Xadrez iniciante, Xadrez - Finais típicos
Professora de xadrez e de inglês. Posso te ajudar a alcançar o nível que deseja tanto no xadrez quanto no inglês. Você se divertirá com estrangeiros.

Aprenda sobre qualquer assunto