CRASE
em 17 de Novembro de 2024
A VOZ DOS EXCLUÍDOS NA LITERATURA: VIDAS SECAS E A HORA DA ESTRELA
Em A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, a personagem Macabéa, marginalizada pela sociedade, é representada psicologicamente no romance, através da voz do narrador. Semelhante recurso já havia sido utilizado na obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, em que os membros da família de retirantes nordestinos, quase sem linguagem própria, adquirem a humanidade que lhes falta pelo método narrativo. No entanto, Macabéa, transportada para o meio urbano, evidencia ainda mais o processo de exclusão cultural no Brasil, que muda seus meios, mas não sua essência.
Fabiano (Vidas Secas) e Macabéa (A Hora da Estrela), que vivem “na aridez do sertão nordestino” e “no anonimato da vida urbana”, são personagens desajustados na sociedade. Fugindo de idealizações românticas ou exotismos regionalistas, as duas obras expõem a situação de miséria e exploração dos migrantes nordestinos no Brasil, duramente; uma situação que não muda, apenas se transforma com o tempo, tornando-se cada vez mais sutil e cruel.
A família de retirantes de Vidas Secas vivencia o drama da falta: de um lar, de um futuro, de uma linguagem. A constante ameaça da seca lhes impõe uma vida nômade, sem perspectivas, guiada pelo instinto de sobrevivência.
Por isso, são eternos peregrinos, em um mundo em que não há lugar para eles. Fabiano, o patriarca, é “um vagabundo empurrado pela seca” (RAMOS, 1938, p.19). No entanto, quando a seca chega, devastadora, todos se igualam, todos perdem tudo, diferentemente do que acontece na cidade grande, em que os mais preparados, bem instruídos, espertos levarão vantagem na luta pela sobrevivência (do que, de fato, num plano mais ou menos profundo, sempre se trata a vida).
No sertão, o inimigo é a natureza; na cidade, o inimigo é o próprio homem.
Em A Hora da Estrela, Macabéa, alagoana que se muda já adulta com a tia para o Rio de Janeiro, causa pena, repulsa e revolta nos outros personagens, no narrador e no leitor. Feia e desajeitada, alimenta-se de cachorro-quente com Coca-Cola, por ser barato, ganha menos que um salário mínimo e seus pequenos luxos consistem em pintar as unhas de vermelho e ir ao cinema uma vez por mês. Sua condição de penúria é evidente, menos para si mesma:
E acontece que não tinha consciência de si e não reclamava nada, até pensava que era feliz (LISPECTOR, 1977, p. 69).
Nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável. (IBID, p. 29)
Macabéa é vítima da manipulação alienante da mídia, pela Rádio Relógio, propagadora de cultura inútil, e pelos anúncios que coleciona, de produtos que não tem condições de comprar. No meio urbano, o processo de marginalização é mais nítido e se utiliza de mecanismos mais sofisticados: há uma promessa ilusória de futuro, de melhoria de vida, como a premonição da cartomante.
Fabiano e Macabéa, nordestinos, “bichos da mesma espécie”, sofrem, de modos distintos, a violência de uma existência invisível: “apesar de viverem em ambientes diferentes, caminham para o mesmo destino: criaturas anônimas, subumanas; condenadas a viver à margem do mundo que as cerca”.
E são conformados: não contestam nada, por não saber como nem a quem e acham natural a exploração que sofrem.
[…] seria aquilo mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos brancos, quase uma rês na fazenda alheia. (RAMOS, 1938, p. 24)
[…] tudo que acontecia era porque as coisas são assim mesmo e não havia luta possível, para que lutar? ” (LISCPETOR, 1977, p. 40)
Mas A Hora da Estrela vai além da denúncia social para uma questão mais ampla, de ordem transcendente: Macabéa representa, no fundo, a miséria inerente a todo ser humano, que nunca é completo; há uma carência essencial que o define: “[…] todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro — existe a quem falte o delicado essencial. ”
Para expressar a situação equivalente de seus personagens, Graciliano Ramos e Clarice Lispector fazem uso de diferentes recursos expressivos.
Primeiramente, se a linguagem de Vidas Secas é seca como as vidas que retrata, econômica e regionalista, em A Hora da Estrela a palavra é pulsante, o discurso, verborrágico e fluido: “Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira. ”
Os dois narradores são cultos e culpados, aproximam-se e afastam-se de seus personagens progressivamente, procuram compreendê-los e sentem-se impotentes diante de sua situação: “Ambos os narradores enfrentam a difícil constatação: a mesma palavra utilizada para narrar a história de suas personagens é a mesma que angustia Macabéa e Fabiano: dois seres condenados ao silêncio. ”
A posição do narrador de Macabéa é ainda mais imprecisa: ele a ama e a despreza simultaneamente, se opõe e se espelha nela.
Ela me incomoda tanto que fiquei oco. Estou oco desta moça. […] Só eu a vejo encantadora. Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela. ((LISPECTOR, 1977, p. 26-27)
Rodrigo S.M., narrador personificado, pseudoautor da história, é um escritor atormentado, que capta no “olhar perdido” de uma nordestina, em meio à massa urbana, a essência de sua protagonista. Ele se sente na obrigação de escrever sobre ela, criatura quase desumana, que, no entanto, “tinha o que se chama de vida interior e não sabia que tinha”. Aos poucos, essa vida interior de Macabéa vai sendo desvendada, tanto para o narrador quanto para o leitor, que participa ativamente da construção da trama. O narrador conversa com o leitor, faz suposições sobre ele, provoca-o, convida-o a compartilhar de suas reflexões.
Enquanto Vidas Secas apresenta um único enredo, ainda que fragmentado, em que o narrador acompanha a trajetória cíclica da família nordestina com um olhar distante e observador, em A Hora da Estrela podem-se identificar três enredos, que se misturam, se complementam e se fundem numa narrativa entrecortada: a história de Macabéa, as inquietações do narrador e o próprio processo da escrita. A trama é interrompida a cada momento para explicações e questionamentos, sempre pertinentes, que ampliam a experiência de leitura.
Voltando a mim: o que escreverei não pode ser absorvido por mentes que muito exijam e ávidas de requintes. Pois o que estarei dizendo será apenas nu. Embora tenha como pano de fundo – e agora mesmo – a penumbra atormentada que sempre há nos meus sonhos quando de noite atormentado durmo. (LISPECTOR, 1977, p. 16)
Sendo assim, a metalinguagem e a ironia são peças-chave no desdobramento do texto. Rodrigo S.M. discute o papel do escritor e da escrita, explicitando o processo de construção da obra; no fundo, um processo de autodescoberta.
A ironia é retirada da própria vida, e Macabéa é o mais evidente exemplo: tem uma vida nula e uma morte glorificada. A morte é sua hora da estrela, o que dá sentido à sua existência parca. A morte é seu renascimento, e, com ela, o texto nasce e renasce, refaz-se e desfaz-se.
Rodrigo se responsabiliza por Macabéa e consegue enxergar-se nela. No entanto, ele faz parte da sociedade que a reprime e usufrui dos confortos que ela não tem; portanto, não pode igualar-se a ela, o que não o impede de construir seu destino em paralelo ao dela.
Evidentemente, a realização de todo processo narrativo só é possível graças à palavra. Matéria-prima do pensamento e das ideias, a palavra constrói mundos humanos. O narrador, dominador do discurso em ambas as obras analisadas, manipula a palavra para dar vida a seus personagens, que, em contrapartida, não sabem se expressar. Por isso, nem parecem humanos: assemelham-se a animais, objetos, seres inanimados; vivem num “estado permanente de reificação[1]”. Fabiano é “bicho”, Macabéa é “capim”, nenhum dos dois consegue desenvolver um pensamento e refletir sobre as coisas do mundo.
Pensar era tão difícil, ela não sabia de que jeito se pensava. (LISPECTOR, 1977, p. 54)
Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas. (RAMOS, 1938, p. 84)
Isso contribui para a índole passiva dos personagens, que, sem a linguagem, ficam também sem mecanismo de defesa. Então, o narrador propõe-se a defendê-los, a expor sua humanidade escondida por trás do véu da ignorância. Afinal, são humanos: sentem e sofrem, mesmo que calados.
O desajuste se faz presente mais uma vez por meio da inadequação da linguagem. Fabiano e sua família quase não falam, comunicam-se por gestos, sons, ruídos. Quando ele tenta reproduzir um falar mais culto, imitando Seu Tomás da bolandeira, acaba articulando frases soltas e sem sentido: “– Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme. ”
Macabéa, por sua vez, ou é calada demais ou fala demais, sempre fora de contexto, sem conseguir dizer o que quer e fazer-se entender: “– Você sabe se a gente pode comprar um buraco? ” (LISPECTOR, 1977, p.49)
Ironicamente, Macabéa é datilógrafa e lida dia-a-dia com as palavras que não domina. Ela escreve como fala e possui um vocabulário limitado, por isso é uma funcionária medíocre. Admira, porém, as “palavras difíceis”, que a deixam curiosa, mesmo que não compreenda seu significado.
Glória, sua colega, é estenógrafa, recebe um salário superior ao dela e posteriormente ainda rouba seu namorado. Por possuir uma situação mais confortável (família, moradia, comida, conhecimento), Glória tem mais recursos para conseguir se virar nesse mundo-cão em que Macabéa perece.
Para Olímpico, o namorado em questão, rude e ambicioso, Glória representa certa ascensão social: ela é “material de qualidade” enquanto Macabéa é “subproduto”. Numa sociedade capitalista, onde as pessoas são julgadas por aquilo que possuem e por sua produtividade, quem não tem voz para argumentar é esmagado pelo sistema.
Macabéa e Olímpico mantêm diálogos incoerentes e confusos. Na verdade, tão ignorante quanto ela, o paraibano nunca sabe respondê-la e a impossibilidade de comunicação transforma-se em violência psicológica. Incapaz de compreendê-la, ele a maltrata, a ofende, impiedosamente: “– Você, Macabéa, é um cabelo na sopa. Não dá vontade de comer. ” Fabiano também se impressiona com a linguagem que não alcança, atribuindo a São Tomás da bolandeira o saber culto.
O patriarca não consegue reivindicar um salário mais justo, sabendo que o patrão rouba nas contas, assim como não consegue matar o Soldado Amarelo, personificação da figura de poder do governo, então se limita a obedecer. Ele põe inclusive em questão o valor da palavra naquele meio agreste em que se encontra:
Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas. (RAMOS, 1938, p. 20)
Para Fabiano, bastava saber lidar com os animais, saber o seu serviço, estar pronto para qualquer desventura, ser forte, “duro como tatu”. Ele não tem tempo para pensamentos elaborados.
Por isso vive inconsciente de si, como Macabéa. A linguagem traz a consciência e a falta dela, o vazio. Somente os narradores têm consciência de si e de seus personagens. Mas não podem salvá-los, não podem educá-los, não podem emprestar-lhes sua palavra, senão numa tentativa de desvendar sua humanidade latente e representá-la para o leitor.
Além de lhe faltarem recursos para reivindicar condições melhores, Macabéa e Fabiano não sabem a quem reclamar. Afinal, quem é o responsável pela situação desses nordestinos sofridos? A natureza, o governo, a sociedade, a vida, Deus, os próprios personagens ou ninguém? Impossível encontrar os culpados diretamente. Por isso, talvez essa seja a grande questão que permeia, sutilmente, as duas obras.
A Hora da Estrela, em que o processo narratológico é mais explícito, pode mesmo ser considerado um livro-pergunta. Rodrigo S.M. escreve em busca de respostas para suas reflexões e devolve essa responsabilidade para o leitor, que deve preencher o espaço deixado pela narração e pelos personagens.
Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública. Trata-se de livro inacabado porque lhe falta a resposta. Resposta esta que espero que alguém no mundo ma dê. Vós? (LISPECTOR, 1977, p.10)
Até Macabéa “não fazia perguntas” porque “adivinhava que não há respostas”. Essa é, na verdade, a aterradora conclusão: não há respostas; as palavras, o silêncio, nada é capaz de responder aos questionamentos do narrador.
Fabiano responsabiliza, então, o próprio destino: “Nascera com esse destino, ninguém tinha culpa de ele haver nascido com um destino ruim. ” (RAMOS, 1938, p. 96)
Sem reação, sem acusações e sem respostas, essa realidade se perpetua, e as perguntas continuam em aberto.
Fabiano, patriarca da família de Vidas Secas, um “bruto, sim senhor” num meio desfavorável em que “tudo na verdade era contra ele” e Macabéa, protagonista de A Hora da Estrela, nordestina de “alma rala” e “vida murcha” que vive “fracas aventuras […] numa cidade toda feita contra ela” (LISPECTOR, 1977, p. 15) são metáforas da miséria evidentemente exposta sem eufemismos na literatura de Graciliano Ramos e Clarice Lispector. A sociedade tenta silenciá-los, mas os narradores lhes dão voz. Ambos são parte de uma realidade que incomoda como uma “dor de dentes”.
Porém, “tudo começou com um sim” (LISPECTOR, 1977, p. 11).
Tudo começou com a quebra do silêncio e “[…] o desafio é dizer sim com Clarice Lispector, para continuarmos inventando o mundo”.
Durante o processo de leitura, envolvido pela densidade da trama, o leitor também constrói a realidade desses personagens. Mas, depois do fim, o que virá? Novamente o esquecimento? O leitor provavelmente deixará o livro de lado e prosseguirá sua “vida massacrante da média burguesia” (LISPECTOR, 1977, p. 31). Algo mudou nesse processo ou Fabiano e Macabéa permanecem na mesma condição, sentenciados ao silêncio e ao esquecimento?
“Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim. ”
E o silêncio se restabelece, indefinidamente.
[1] [Filosofia] Para o marxismo, processo inerente às sociedades capitalistas que supervaloriza a produção, em detrimento das relações humanas e sociais, podendo ocasionar a perda da subjetividade, da autonomia e da autoconsciência, atribuindo ao ser humano uma natureza inanimada e automática, como coisas ou mercadorias.