"Embora": fique atento a esta pegadinha!
em 23 de Dezembro de 2021
Eu sempre faço uma relação involuntária (mas não imotivada) entre a primeira estrofe do Hino Nacional Brasileiro e a pintura “Independência ou Morte”, de Pedro Américo (veja em https://pt.wikipedia.org/wiki/Independ%C3%AAncia_ou_Morte_(Pedro_Am%C3%A9rico)). Nesta, Dom Pedro I está ao centro, acompanhado por uma comitiva e rodeado de militares, proclamando a independência do Brasil com um grito. A imagem retrata a reação dos presentes, a maioria com espadas ou chapéus erguidos, parecendo responder ao brado de libertação. Acho que não é difícil entender por que esse quadro me vem à mente quando canto o “Ouviram do Ipiranga...”.
Já éramos velhos conhecidos – o hino, a pintura e eu – quando uma dúvida me assaltou: quem é o sujeito da primeira estrofe do Hino Nacional? Quando me fiz esse questionamento, não tinha uma fonte em que pudesse consultar a letra do hino. Preciso confessar que também não tinha na memória a redação exata, nos seus mínimos detalhes. Isso seria necessário, pois a dúvida estava baseada em um mínimo detalhe.
Repare as duas redações abaixo:
“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo heroico o brado retumbante”;
“Ouviram do Ipiranga às margens plácidas de um povo heroico o brado retumbante”.
Viu a diferença? Pequena, não é? No entanto, ainda que pequena, ela altera a definição do sujeito da oração.
Na primeira redação, “as margens plácidas do Ipiranga” são o sujeito da oração. As margens do famoso rio são personificadas e ouvem o grito histórico de Dom Pedro I e sua turma. Em ordem direta, eliminando os rebuscamentos do poeta, temos que “as margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico”. Nesta construção, destaca-se o sujeito, ou seja, quem “ouviram”.
Na segunda redação, a expressão “às margens plácidas do Ipiranga” não pode funcionar como sujeito. A preposição “a” juntada ao artigo “a” (resultando em “à”) lhe tira essa possibilidade. Ela funciona, então, como locução adverbial de lugar. Fazendo novamente o exercício de mudar a ordem em que a oração é escrita, temos como resultado: “ouviram o brado retumbante de um povo heroico, às margens plácidas do Ipiranga”. Nesta redação, quem é o sujeito? Trata-se de um caso de sujeito indeterminado. Note que o verbo na terceira pessoa do plural não especifica quem “ouviram”. A construção linguística não quer dar destaque a quem ouviu, diferentemente da primeira redação.
Para solucionar o problema, só mesmo consultando a redação oficial do Hino Nacional Brasileiro. Em momento oportuno, consultei o site do Planalto (veja em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/hino.htm), e verifiquei que a redação do hino é:
“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heroico o brado retumbante”.
Tendo agora certeza sobre a letra correta, não resta dúvida de que “as margens plácidas do Ipiranga” são o sujeito da oração. Elas são, provavelmente, as margens fluviais mais perigosas do Brasil. Afinal, se ouviram o brado retumbante da independência, ouviram também as juras de amor, as fofocas, os desabafos e as negociações espúrias que as tiveram como cenário. Ah, se essas margens falassem!
Obs.: no site do Planalto, o Hino Nacional ainda apresenta a palavra “heróico” grafada com o acento agudo, em dissonância com o Novo Acordo Ortográfico.
Ola, fiquei curiosa pra ver o escrito original, porque no site do planalto nós temos a versão digitalizada. E se alguém cometeu um erro e transcreveu sem a crase? O correto seria checar o arquivo original. Outra dúvida que me ocorreu: na época em que foi escrito o hino já existiam as regras de crase? Eram como hoje? Fiquei pensando sobre isso.