Estava tentando montar a seguinte frase:
"Sobre o evento de abertura do programa, não poderei participar"
Ao ler a frase senti falta de algo (um pronome talvez), referenciando "o evento", como:
"Sobre o evento de abertura do programa, não poderei participar DELE"
Gostaria de saber se existe alguma forma de substituir a palavra "dele", para que exista uma referencia à "o evento".
Obrigada!
"Sobre o evento de abertura do programa, não poderei participar DO MESMO "
A primeira frase está correta, não há necessidade de um termo. Pode ficar redundante.
Caríssima Gabriela,
Infere-se (pelo emprego da preposição “sobre”) que você vinha discorrendo acerca de outros pontos ou itens, e, ao chegar ao do evento, surgiu a dificuldade reportada. A frase não está ininteligível nem a compreensão da mensagem, por conseguinte, comprometida. A sua consulta se dá, presume-se, apenas por questão de zelo ou exigência pessoal.
Assim sendo, apresento-lhe, a título de sugestão, as construções abaixo:
1. Quanto ao (ou relativamente ao, no tocante ao) evento de abertura do programa, dele não poderei participar, por motivo de (em virtude de, por problema de, em razão de, devido a, em decorrência de)...
2. Quanto ao (ou relativamente ao, no tocante ao) evento de abertura do programa, informo que não poderei participar...
3. Quanto ao (ou relativamente ao, no tocante ao) evento de abertura do programa, informo que dele não poderei participar...
4. Quanto ao (ou relativamente ao, no tocante ao) evento de abertura do programa, informo da impossibilidade de minha participação...
---------------------
A propósito, julgo pertinente postar aqui como apêndice duas matérias interessantes (pena que o programa não tenha, aqui, opção de anexar arquivo). A primeira, relativa ao emprego inadequado (portanto, a evitar) de o mesmo, de autoria da renomada professora e filóloga catarinense Maria Tereza de Queiroz Piacentini; a segunda, sobre as partículas de transição e palavras de referência (objeto de sua consulta), de autoria do saudoso professor e filólogo Othon Moacyr Garcia, em sua obra de referência Comunicação em Prosa Moderna.
1. EMPREGO INDEVIDO DE O MESMO
Não é recomendável o uso de “o mesmo” no lugar dos pronomes pessoais, sejam do caso reto (ele/ela, dele/dela) ou do caso oblíquo (o/a, lhe), por indicar pobreza de linguagem ou falta de familiaridade com os pronomes pessoais. É mais uma questão de estilo do que de gramaticalidade.
Digamos então que fica ruim, ou não convém, escrever da forma abaixo:
Em melhor português se diria assim:
2. PARTÍCULAS DE TRANSIÇÃO E PALAVRAS DE REFERÊNCIA
A ordem de colocação é, assim, indispensável à coerência; mas não é suficiente. Urge cuidar também da transição entre as ideias, da conexão entre elas. Palavras desconexas são como fragmentos de um jarro de porcelana. É preciso "colá-las", interliga-las para se obter uma unidade de comunicação eficaz.
É certo que na língua falada ou escrita, quando se traduzem situações simples, a inter-relação entre as ideias pode prescindir das partículas conectivas mais comuns. Ao tratarmos da justaposição (1Fr., 1.4.2), mostramos como o liame entre orações e períodos muitas vezes se faz implicitamente, sem a interferência desses conectivos: uma pausa adequada, uma entonação de voz podem ser suficientes para interligar e inter-relacionar ideias:
Estou muito preocupado. Há vários dias que não recebo notícias de minha filha.
Temos aí dois períodos justapostos. A pausa e o tom da voz mostram que o segundo indica o motivo ou a explicação do primeiro. A ausência da conjunção explicativa (pois, porque) não impede que se perceba nitidamente essa relação.
Mas, em situações complexas, a presença dos conectivos e locuções de transição se torna quase sempre indispensável para entrosar orações, períodos e parágrafos.
Quanto mais civilizada é uma língua, quanto mais apta a veicular o raciocínio abstrato, tanto maior o acervo desses utensílios gramaticais. Alguns são legítimos conectivos: os intervocabulares, como, ocasionalmente, as conjunções aditivas e, sempre, todas as preposições; e os interoracionais, como todas as conjunções, os pronomes relativos e os interrogativos indiretos. Outros seriam mais apropriadamente chamados palavras de referência: os pronomes em geral, certas partículas e, em determinadas situações, advérbios e locuções adverbiais. (Em sentido mais amplo, até mesmo orações, períodos e parágrafos servem de transição no fluxo do pensamento.) A uns e outros englobamos aqui na dupla designação de partículas de transição e palavras de referência, que, na sua maioria, têm valor anafórico (quando no texto relacionam o que se diz ao que se disse) ou catafórico (quando relacionam o que se diz ao que se vai dizer).
Tal é a importância desses elementos, que muitas vezes todo o sentido de uma frase, parágrafo ou página inteira deles depende. Dois enunciados soltos, isto é, duas orações independentes e desconexas como "Joaquim Carapuça costuma vir ao Rio" e (ele) "Ganha muito dinheiro em São Paulo" assumem configuração muito diversa, conforme seja a conexão que entre eles se estabeleça:
Joaquim Carapuça costuma vir ao Rio |
quando enquanto porque se embora |
ganha muito dinheiro em São Paulo (ganhe)
|
Omitam-se as expressões de transição de um parágrafo ou de uma série deles, e o sentido se desfigura:
As linhas pontilhadas correspondem a partículas ou expressões de transição (inclusive uma oração reduzida do infinitivo) que encadeiam de maneira coerente os cinco enunciados soltos:
Assim inter-relacionados pelos elementos de transição, esses cinco períodos passam a constituir realmente um parágrafo coerente.
Na lista que damos abaixo, demasiadamente extensa, mas ainda assim incompleta, o estudante encontrará alguns advérbios ou locuções que talvez o deixem intrigado. O advérbio "hoje", por exemplo, não traz em si nenhuma ideia de referência ou de transição numa frase isolada como "Hoje não choveu". Mas não será assim num período composto em que se contraponha "hoje" a "ontem": "Ontem choveu muito, mas hoje não" em que a ideia de oposição, indicada pela adversativa "mas", se junta à de referência a um fato passado. Em "Realmente, você tem razão", advérbio "realmente" mostra de maneira clara a continuação de algo que terá sido anteriormente dito. É assim palavra de referência ou transição, de valor discretamente anafórico.
Os exemplos que acompanham alguns itens devem ser lidos com atenção, pois acumulam outras informações sobre o assunto.
As "cabeças" ou verbetes das alíneas encerram o sentido geral de cada grupo analógico.
a) Prioridade, relevância: |
|
em primeiro lugar, antes de mais nada, primeiramente, acima de tudo, precipuamente, mormente, principalmente, primordialmente, sobretudo; |
Em primeiro lugar, é preciso deixar bem claro que esta série de exemplos não é completa, principalmente no que diz respeito às locuções adverbiais. |
b) Tempo (frequência, duração, ordem, sucessão, anterioridade, posterioridade, simultaneidade, eventualidade): |
|
então, enfim, logo, logo depois, imediatamente, logo após, a princípio, pouco antes, pouco depois, anteriormente, posteriormente, em seguida, afinal, por fim, finalmente, agora, atualmente, hoje, frequentemente, constantemente, às vezes, eventualmente, por vezes, ocasionalmente, sempre, raramente, não raro, ao mesmo tempo, simultaneamente, nesse ínterim, nesse meio tempo, enquanto isso e as conjunções temporais; |
Finalmente, é preciso acrescentar que alguns desses exemplos se revelam por vezes um pouco ingênuos. A princípio, nossa intenção era omiti-los para não alongar este tópico: mas, por fim, nos convencemos de que as ilustrações são frequentemente mais úteis do que as regrinhas. |
c) Semelhança, comparação, conformidade: |
|
igualmente, da mesma forma, assim também, do mesmo modo, similarmente, semelhantemente, analogamente, por analogia, de maneira idêntica, mutatis mutandis, de conformidade com, de acordo com, segundo, conforme, sob o mesmo ponto de vista - e as conjunções comparativas; |
No exemplo anterior (valor anafórico), o pronome demonstrativo "desses" serve igualmente como partícula de transição: é uma palavra de referência à ideia anteriormente expressa. Da mesma forma, a repetição de "exemplos" ajuda a interligar os dois trechos. Também o adjetivo "anterior" funciona como palavra de referência. "Também" expressa aqui semelhança. No exemplo seguinte (valor catafórico), indica adição. |
d) Adição, continuação: |
|
além disso, (a) demais, outrossim, ainda mais, ainda por cima, por outro lado, também - e as conjunções aditivas (e, nem, não só... mas também, etc.); |
Além das locuções adverbiais indicadas na coluna à esquerda, também as conjunções aditivas, como o nome o indica, "ligam, ajuntando". |
e) Dúvida: |
|
talvez, provavelmente, possivelmente, quicá, quem sabe? é provável, não é certo, se é que; |
O leitor ao chegar até aqui - se é que chegou - talvez já tenha adquirido uma ideia da relevância das partículas de transição. |
f) Certeza, ênfase: |
|
de certo, por certo, certamente, indubitavelmente, inquestionavelmente, sem dúvida, inegavelmente, com toda a certeza; (1) ---------- (1) - Talvez valha a pena lembrar que "certamente", "com certeza" e até mesmo "sem dúvida", com muita frequência insinuam "dúvida" mais do que "certeza". É uma situação contraditória semelhante à que se verifica em "pois não", indica que assentimento (apesar do "não") e "pois sim", que às vezes expressa negação, negação meio irônica ou desdenhosa. |
Certamente, o autor destas linhas confia demais na paciência do leitor ou duvida demais do seu senso crítico. A lista ao lado estará ele pensando com toda a certeza inclui advérbios ou locuções adverbiais em que é difícil perceber a ideia de transição.
Sem dúvida, é o que parece. Quer a prova, leitor? Qual é a função desse "sem dúvida" se não a de desencadear neste exemplo os argumentos com que defendemos nosso ponto de vista? |
g) Surpresa, imprevisto: |
|
inesperadamente, inopinadamente, de súbito, imprevistamente, surpreendentemente; |
|
h) Ilustração, esclarecimento: |
|
por exemplo (v. g., ex. g. = verbi gratia, exempli gratia), isto é (i.e. = id est), quer dizer, em outras palavras, ou por outra, a saber; |
Essas partículas, ditas "explicativas", vêm sempre entre vírgulas, ou entre uma vírgula e dois-pontos. |
i) Propósito, intenção, finalidade: |
|
com o fim de, a fim de, com o propósito de, propositadamente, de propósito, intencionalmente e as conjunções finais; |
|
j) Lugar, proximidade, distância: |
|
perto de, próximo a ou de, junto a ou de, dentro, fora, mais adiante, além, acolá - outros advérbios de lugar, algumas outras preposições, e os pronomes demonstrativos; |
|
k) Resumo, recapitulação, conclusão: |
|
em suma, em síntese, em conclusão, enfim, em resumo, portanto; |
Em suma, leitor: as partículas de transição são indispensáveis à coerência entre as ideias e, 'portanto, à unidade do pensamento. |
l) Causa e consequência: |
|
daí, por consequência, por conseguinte, como resultado, por isso, por causa de, em virtude de, assim, de fato, com efeito e as conjunções causais, conclusivas e explicativas; |
|
m) Contraste, oposição, restrição, ressalva: |
|
pelo contrário, em contraste com, salvo, exceto, menos - e as conjunções adversativas e concessivas; |
|
n) Referência em geral: |
|
os pronomes demonstrativos "este" (o mais próximo), "aquele" (o mais distante), "esse" (posição intermediária; o que está perto da pessoa com quem se fala); os pronomes pessoais; repetições da mesma palavra, de um sinônimo, perífrase ou variante sua; os pronomes adjetivos último, penúltimo, antepenúltimo, anterior, posterior; os numerais ordinais (primeiro, segundo, etc.). |
Este caso exige ainda esclarecimentos. Com referência a tempo passado (ano, mês, dia, hora) não se deve empregar este, mas "esse" ou "aquele". "Este ano choveu muito. Dizem os jornais que as tempestades e inundações foram muito violentas em certas regiões do Brasil". (A transição neste último exemplo se faz pelo emprego de sinônimos ou equivalentes de palavras anteriormente expressas (choveu): tempestades inundações).
"Em 1830 corria o primeiro trem de passageiros. A invenção da locomotiva a vapor data, entretanto, de 1814. Nesse ano, Stephenson construíra a locomotiva a vapor "Blücher". (A transição entre os períodos do último exemplo faz-se por meio da expressão "invenção da locomotiva", da conjunção "entretanto" e do demonstrativo "nesse". (Repetição ou perífrase de palavra anteriormente expressa é também outra maneira de se estabelecer conexão entre idéias.) |