A HIBRIDAC?A?O DO BRAZILIAN JAZZ
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Por: Deborah L.
16 de Dezembro de 2020

A HIBRIDAC?A?O DO BRAZILIAN JAZZ

E O PROCESSO DE MODERNIZAC?A?O DO PAIS NA DE?CADA DE 1980

Teoria Musical Musicologia Geral

A HIBRIDAÇÃO DO BRAZILIAN JAZZ E O PROCESSO DE MODERNIZAÇÃO DO PAIS NA DÉCADA DE 1980

Deborah W. Levy

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO

Mestrado em Música Musicologia

Resumo: A produção de música instrumental que encontrou campo fértil para florescer no eixo Rio-São Paulo na década de 1980 por uma geração de músicos que lançou mão da mistu- ra de elementos de gêneros norte-americanos – do jazz em sua grande maioria, mas também do blues, do funk e do soul – com elementos de gêneros brasileiros em suas composições, fez surgir uma música hibridizada, aqui denominada de Brazilian Jazz. Essa denominação guar- daria em si a chave para um entendimento mais aprofundado a respeito de processos sócio- culturais e econômicos do país, localizados dentro do contexto da modernização latino-ameri- cana das décadas de 1980 e 1990, na medida em que seu entendimento é controverso dentro e fora do país. A análise toma como ponto de partida a primeira participação de um grupo brasi- leiro no Festival de Montreux, Suíça, em 1977 - o grupo Azymuth - e as relações entre a esco- lha do grupo e o mercado cultural da época. Será analisado como o jazz, gênero nascido em finais do séc.XIX em Nova Orleans, EUA, foi usado para legitimar uma música frente a um novo mercado, cerca de 80 anos depois, no Brasil. A intenção é a de acender uma luz sobre um período da música instrumental brasileira, pouquíssimo estudado no âmbito acadêmico. Como suporte teórico, será tomado como base o trabalho de Nestor Garcia Canclini sobre a hibridação e a modernização da America Latina, “Culturas híbridas - estratégias para entrar e sair da modernidade” e o conceito de campo artístico, de Pierre Bourdieu.

Palavras-chave: Brazilian jazz; hibridação; modernização.

THE HYBRIDIZATION OF BRAZILIAN JAZZ AND THE PROCESS OF MODERNIZATION OF THE COUNTRY IN 1980 DECADE

The production of instrumental music that has found fertile ground to flourish in Rio and São Paulo in the 1980s by a generation of musicians who made use of the mixture of elements of American genres - from jazz mostly, but also funk and soul - with elements of Brazilian gen- res in his compositions, brought about a hybridized music, here called Brazilian Jazz. That designation would keep itself the key to a deeper understanding of the socio-cultural and eco- nomic processes in the country, located within the context of Latin American modernization of the 1980s and 1990s, in that his understanding is controversial within and outside the coun- try. The analysis takes as its starting point the first participation of a Brazilian group at the Montreux Festival, France, in 1977 - Azymuth group - and the relationship between the choice of the group and the cultural market of the time. Will be analyzed as the jazz genre born in the late XIX century in New Orleans, USA, was used to legitimate a front music to a new market, some 80 years later in Brazil. The intent is to shine a light on a period of Brazilian instrumental music, very little studied in the academic environment. As theoretical support, will be taken based on the work of Canclini about hybridization and modernization in Latin America, "Hybrid cultures - strategies for getting in and out of modernity" and the concept of artístico field, of Pierre Bourdieu.

Keywords: Brazilian jazz ; hybridization ; modernization.

A década de 1970 foi para a música instrumental brasileira uma época de consolidação de linguagens musicais e surgimento de novas tendências expressivas e estilísticas, onde a figura do músico virtuose brasileiro ganha novo destaque no mercado mundial do jazz, que atravessava um período de transformações e experimentalismos, como a fusão com o rock e a consolidação do jazz avant-garde da década de 1960. Gêneros como o samba, o jazz, o choro ou o baião já haviam se consagrado em suas formas iniciais e se reciclado em novos processos de transformação/desdobramento. A bossa nova já havia sido exportada e consumida nos EUA. A música experimental estava em cena, influenciando o rock progressivo, e havia ainda a música concreta, a eletrônica, a universal. Hermeto Pascoal lança “Slaves Mass”(1977), com Flora Purim, Airto Moreira, Raul de Souza e músicos de jazz norte-americanos, consoli- dando um marco da nova vanguarda experimental da música instrumental brasileira. Isso acontece cinco anos depois de “Hermeto”, seu primeiro álbum solo, gravado nos EUA, como resultado de um convite recebido de Flora e Airto em 1969, para atuar como músico e arran- jador naquele país, junto a músicos de jazz norte-americanos. Cinco anos depois também de Flora e Airto gravarem com Chick Corea, Joe Farrel e Stanley Clarke, no grupo “Return to forever”, um dos trabalhos mais representativos do jazz fusion dessa década. O I Festival de Jazz de São Paulo-Montreux (1978) irá reunir 60.000 pessoas no Anhembi em torno de uma programação que mesclava artistas de jazz brasileiros e norte-americanos. Egberto Gismonti, já consagrado com o sucesso de vendas de “Solo” nos EUA (100.000 cópias vendidas), se torna famoso por retratar a diversidade musical brasileira numa linguagem de vanguarda. O pianista Antonio Adolfo, lança “Feito em casa” (1977), o álbum independente mais famoso do mercado da música instrumental.

Será nesse universo multifacetado de referências, de estreitas relações com o mercado de jazz norte-americano e europeu, que uma geração de músicos irá despontar na década de 1980 no mercado da musica instrumental brasileira, redesenhando o mercado do Jazz Brasi- leiro, ou Brazilian Jazz. Brazilian Jazz (jazz brasileiro) é um termo raramente empregado no Brasil, sendo empregado geralmente no mercado estrangeiro de jazz e na indústria fonográfi- ca estrangeira, para designar um gênero de música brasileira de amplo espectro de músicos e grupos relacionados a música instrumental brasileira e suas inúmeras vertentes, e ainda, a bossa nova, ao choro, a MPB e etc, catalogados embaixo do mesmo guarda-chuva que leva o termo jazz em sua composição.1 No Brasil, o objeto desse estudo será reconhecido mais sob o termo “música instrumental brasileira” (MIB). A diferença no emprego dos termos denota em primeira mão, uma diferença nas formas de se relacionar com essa produção. Se por um lado, a identificação dessa música brasileira com o jazz, no exterior, é explicitada na adoção desse termo, por outro, a sua não-adoção no Brasil parece compor um quadro que guarda, em sua análise epistemológica, uma chave para um entendimento aprofundado a respeito de proces- sos culturais e econômicos do país, localizados dentro do contexto latino-americano da déca- da de 1980.

As fronteiras estendidas que são conferidas ao Brazilian Jazz na catalogação estrangeira colocam no mesmo patamar diferentes expressões de música brasileira, por diversas vezes bastante distintas. A bossa nova de João Gilberto é, para os brasileiros, completamente dife- rente da música de Hermeto Pascoal, de Ivan Lins ou Marcos Ariel, e normalmente seriam identificados em gêneros diferentes, como bossa nova, instrumental e MPB. Num nível super- ficial essa generalização parece apontar uma espécie de desleixo para com a música brasileira, um desinteresse ou até mesmo um desrespeito. Em um nível mais profundo, porém, ela levan- ta questões de identificação que serão muito importantes na compreensão deste processo. Se a utilização do termo Brazilian Jazz aponta para um reconhecimento de que em todas essas ex- pressões musicais brasileiras há traços jazzísticos, esta pode legitimar a idéia de um processo de apropriação do jazz por parte dos brasileiros. Segundo Zuza Homem de Mello, “o termo Brazilian Jazz é muito apropriado, porque, na verdade, ao contrário da maioria dos países do mundo, o jazz brasileiro é música brasileira”.2

1 A definição do termo Brazilian Jazz é controversa nas diversas fontes de consulta, dada a abrangência, e não há, nem na comunidade musical, nem na comunidade científica, um consenso a respeito da delimitação de seu significado. Numa rápida pesquisa acerca do termo na Internet, as tags relacionadas encontradas são: bossa nova, samba, Brazil, latin jazz, Brazilian, MPB. Disponível em: http://www.lastfm.com.br/tag/brazilian%20jazz – Acessado em 12/11/14. No site especializado em jazz, eJazz, foi encontrada uma classificação de estilo utilizan- do o termo “Jazz Brasileiro”, definido como um “um estilo fechado e definido, mas sim plural e mutável.”

2 Depoimento dado em entrevista concedida a autora em 2010, p.12.

Por outro lado, a apropriação de elementos da música brasileira em gêneros americanos também poderia apontar para uma apropriação cultural em sentido inverso. Desde os tempos de Carmem Miranda e seu Bando da Lua - inseridos no contexto da “política da boa vizinhan- ça" do Presidente Roosevelt - que artistas e músicos brasileiros almejam exportar a música brasileira, e principalmente, gravar nos EUA. Não só pela qualidade mais elevada dos estúdi- os, mas também pelo status que confere a carreira, e, principalmente, pela possibilidade de realizar aquele fenômeno natural do qual a substância social da musica é feita: o encontro, e a partir dele fincar raízes em cenários internacionais. Assim foi com o ex-violonista de Carmem Miranda, Laurindo de Almeida, que ao fixar residência nos EUA, grava com Bud Shank em 1953 a série de LP’s Braziliance, “trabalho que representa um marco na fusão do jazz norte- americano (deste último mais especificamente a abertura de chorus de improvisação em meio aos temas) sobre ritmos brasileiros.”(FRANSCISCHINI, 2009). A influência de Laurindo acontece nove anos antes da lendária gravação de Stan Getz e Charlie Bird do álbum “Jazz Samba” - que para os americanos marca o aparecimento da bossa nova nos EUA - cujo suces- so de vendas desencadeou na “Noite da Bossa nova” no Carnegie Hall no mesmo ano, legiti- mando o gênero em solo norte-americano e marcando o inicio de um novo fluxo de artista/ músicos brasileiros ao exterior nas décadas posteriores, como Tom Jobim, João Gilberto, As- trud Gilberto, Sérgio Mendes, Flora Purim, Airto Moreira, Eliane Elias, Tânia Maria, Eumir Deodato, Grupo Azymuth e muitos outros.

O sucesso profissional, e, acima de tudo, o reconhecimento, tem sido um forte fator de contribuição para a longevidade da carreira do músico em mercados modernos da música po- pular em países centrais, e, na contramão, as trocas culturais ocorrem diretamente entre os músicos, na prática dos encontros. Pode-se dizer sem margem de erro que a bossa nova foi um importante gênero constituinte da carreira de músicos como Stan Getz ou Frank Sinatra na década de 1960. Ou como mais tarde, na década de 1970, Flora Purim e Airto Moreira influ- enciaram o jazz fusion de Chick Corea no grupo Return to forever; ou ainda como Hermeto Pascoal instigou Miles Davis na busca por novos caminhos nessa mesma década. Inúmeros músicos brasileiros, a partir de trocas com norte-americanos, tanto em viagens temporárias como residentes nos EUA, também influenciaram esses músicos. Os processos de hibridação musical que vieram acontecendo desde a bossa nova em meados da década de 1950, terão relação direta com a música instrumental da década de 1980, moderna e hibridizada.

3 Charlie Byrd teria conhecido a bossa nova em viagem ao Brasil em 1961, sob os auspícios do Departamento de Estado norte-americano. Disponível em: http://www.clubedejazz.com.br/ojazz/jazzista_exibir.php? jazzista_id=93, acessado em 21/01/201.

Néstor Garcia Canclini, na introdução de seu trabalho “Culturas Híbridas, estratégias para entrar e sair da modernidade”(2013) define hibridação como “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos ou práticas.”(2013, P. XIX). Sendo que as “práticas discretas” também são estruturas já hibridizadas. Dessa forma, não mais ocupa-se da idéia de essência ou homogeneidade: há já algum tempo, os estudos culturais deslocam o objeto de estudo da identidade para a heterogeneidade multicultural (idem). O próprio gênero jazz veio se hibridi- zando desde a década de 1950, a partir do be bop e do cool jazz, e depois no jazz avant-garde, consolidado como tendência na década de 1970 e hibridizado posteriormente com o rock e suas vertentes, gerando diversas formas de jazz moderno, como o jazz fusion e o free jazz. No Brasil, a própria bossa nova era chamada, `a época de seu surgimento, de samba session, su- gerindo uma fusão do samba com o jazz. Analisaremos neste artigo como o Brazilian Jazz se inseriu numa agenda de modernização cultural do país através do jazz - um gênero nascido em New Orleans/EUA no começo do século XX - usado para legitimar a música brasileira na Europa e nos EUA, cerca de 80 anos depois de seu nascimento.

Entre os fatores mercadológicos que contribuíram para fazer brotar na década de 1980 um ambiente favorável para o surgimento de um mercado crescente de Brazilian jazz estão um aumento de status da música instrumental brasileira (intimamente ligado ao sucesso de músicos que se destacaram na década de 1970), a explosão do crescimento fonográfico e a expansão de um mercado consumidor de música no Brasil - que elevou ao 6o lugar no ranking mundial em 1979 (BALLESTE, 1984). Nos primeiros anos da década de 1980, inúmeros músicos e grupos instrumentais se fixaram no eixo Rio-São Paulo, interessados em ingressar em um mercado de música que crescia efervescente e apresentava oportunidades. No Rio de Ja- neiro, inúmeras casas de shows, boates e cafés dedicados à música instrumental e ao jazz surgiram, como o Jazzmania, Mistura Fina, Rio Jazz Club, People, Café de la Paix, entre ou- tras, com programação sistematizada de shows e alta rotatividade. A partir de 1985, o Free Jazz Festival tem edições anuais, sempre com apresentações de artistas estrangeiros e nacio- nais. Projetos de shows de música instrumental, como os do Parque da Catacumba, espaços nas programações das rádios e lançamentos de gravadoras ampliavam o mercado do gênero, impulsionado ao longo desta década em um amplo crescimento. Dentre os episódios que mar- caram o começo de movimentos estruturantes desse novo mercado, destacaremos aquele que será o pontapé inicial da instauração de festivais de jazz no país a partir dos anos finais de 1970 e por toda a década de 1980.

O tradicional Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, que ocorre anualmente desde 1967, recebe em sua 10a. edição em 1977, o trio instrumental Azymuth como primeira atração brasileira no festival, através de uma articulação com a gravadora WEA brasileira, com quem o grupo possuía contrato. A pedido do produtor da gravadora, André Midani, o grupo foi en- caixado na noite do gênero jazz fusion (MIDANI, 2008, P.183). Com o sucesso da apresenta- ção e as relações de Midani com o diretor do Festival Claude Nobs, foi programada para o ano seguinte uma noite exclusiva de música brasileira, da qual participaram Gilberto Gil, Baby do Brasil, Pepeu Gomes, Dadi e Jorginho, em 1978. O sucesso dessa apresentação con- sagrou a música brasileira no festival que passou a ter, anualmente, uma “noite brasileira”: no ano seguinte, é realizada a conhecida noite de Hermeto Pascoal e Elis Regina, consagrando tanto Hermeto quanto Elis no mercado internacional do Jazz e se tornando o visto de entrada para a música brasileira em outros diversos festivais por toda a Europa.

E também para a implementação de festivais de jazz no Brasil: como uma parceria com o Festival de Montreux, a SEC de São Paulo realizou, em setembro de 1978, a primeira edi- ção do Festival Internacional de Jazz de São Paulo/Montreux, no Anhembi, com oito dias consecutivos de programação de artistas nacionais e internacionais e um público em torno de 60.000 pessoas, transmitido ao vivo pela TV Cultura. Em 1980 dá-se a segunda edição do mesmo festival em São Paulo, e em setembro do mesmo ano, no Rio de Janeiro, acontece o Rio Jazz Monterey Festival, com uma programação de mesmo perfil durante quatro dias, com sessões duplas no final de semana. A partir de 1985, a produtora Monique Gardenberg inau- gura o primeiro ano do Free Jazz Festival, com edições anuais até 2001, com atrações nacio- nais e internacionais, consagrando o Brasil na rota mundial de festivais de jazz.

Examinemos primeiro as razões da escolha do grupo Azymuth como o primeiro grupo de música instrumental brasileiro no Festival de Montreux, além das relações de Midani e Nobs. O Azymuth surgiu em 1973, com José Roberto Bertrami (teclados), Ivan Conti (bateria) e Alex Malheiros (baixo) e apresentava a formação clássica de um trio de samba-jazz da década de 1960, porém com o emprego de sintetizadores bem como do piano elétrico Fender Rhodes. Atuaram como músicos de estúdio e no acompanhamento de cantores diversos, mas foi com a gravação da trilha do filme “Os irmãos Fittipalidi”com os irmãos Valle, que o grupo ganhou esse nome, por causa de uma composição de nome homônimo da dupla. Em 1975, o grupo grava seu primeiro LP e a música “Linha do horizonte”, que abria o álbum, foi inserida na trilha sonora da novela “Cuca Legal”, da TV Globo. No mesmo ano, participam da trilha sonora da novela Pecado Capital, com a canção "Melô da Cuíca" que, lançada em compacto no mesmo ano, fez sucesso nacionalmente. O sucesso do primeiro álbum e, principalmente, das músicas nas novelas, lhes rendeu o contrato com a WEA, para o lançamento do 2o. LP do grupo “Águia não come mosca”, um álbum eclético que mescla levadas de diversas vertentes do samba, levadas funky e rock, timbres de sintetizador e piano Fender Rhodes, harmoniza- ções e improvisações jazzísticas, elementos da música pop e estruturas melódico-harmônicas por vezes modais ou dissonantes. Faz sentido portanto que tenha sido encaixado na noite do jazz fusion no festival, gênero que vinha ganhando força ao longa da década de 70, represen- tado por grupos como Return to forever, formado por Flora Purim e Airto Moreira com o pia- nista norte-americano, Chick Corea.

Há porém uma questão importante a ser levantada: excluído qualquer julgamento de cri- térios de valor musical, por que não foi Hermeto Pascoal - que acabava de lançar o álbum Slaves mass pela mesma gravadora WEA como inauguração do marco de entrada da gravado- ra no país - o primeiro artista da música instrumental brasileira a ser enviado para o Festival de Montreux? Por que foi considerado o grupo Azymuth o mais representativo (do casting da gravadora WEA)? Uma primeira hipótese é a de que Hermeto estivesse associado muito ex- clusivamente a uma música de vanguarda por demasiado experimental; a segunda seria por- que ele não possuía músicas em novelas da TV Globo e portanto não possuía o alcance de vi- sibilidade popular do Azymuth. Vejamos: em 1977 a TV Globo era no país a emissora local de maior audiência, chegando a 70% entre seis e dez da noite, o horário das novelas.4 A filosofia da WEA naquele momento, segundo Midani, era “ser importante localmente para ser forte globalmente”5. A conceitualização de “importante” para uma gravadora pode variar um pouco de acordo com o perfil e o segmento a que se dedica, mas em se tratando de uma multinacio- nal como a WEA, dedicada a se fixar no território brasileiro com um casting de artistas da MPB, dois fatores certamente contribuíram para atingir esse grau máximo de importância: a vendagem e a visibilidade nacional. Isso colocava de fato o Azymuth, dentro dos parâmetros da gravadora, num maior grau de “importância" que o disco de Hermeto gravado nos EUA, pois a visibilidade nacional da emissora impulsionava as vendas como nenhum outro canal possibilitava. Com a escolha do grupo, a WEA dá uma cajadada e acerta dois coelhos: instau- ra festivais de jazz no Brasil, se tornando cada vez mais importante localmente, e passa a ex- portar artistas brasileiros para festivais na Europa, se fortalecendo globalmente.

4 Matéria da jornalista Maria Helena Dutra, publicada no Jornal do Brasil em 07/10/1977, disponível em: http:// tvbau.blogspot.com.br/2012/06/1977-audiencia-da-globo-se-pulveriza.html. Acessado em 23/01/2016.

5 MIDANI, André. Música, ídolos e poder: Do vinil ao download. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. P.177

A consagração do Brazilian Jazz na Europa, dentro de instâncias de consagração do jazz internacional, como o Festival de Montreux, carrega em si um fenômeno verificável: legitima o gênero e impulsiona o mercado dentro do Brasil. A “noite brasileira” conquistada todos os anos no Festival de Montreux abre as portas para a realização de um festival de grande impor- tância para o fomento deste mercado no Brasil, realizado como apoio da Fundação Padre An- chieta `a Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo - em parceria com o Festival de Mon- treux - para a realização do Festival de Jazz de São Paulo/Montreux, em 1978.6 O perfil de programação desse festival era similar ao da matriz e artistas “de primeira linha” da cena jaz- zística mundial foram convidados a vir se apresentar. O sucesso deste festival fomentou a rea- lização de sua segunda edição, em 1980, bem como de outro no Rio de Janeiro no mesmo ano, o Rio Jazz Monterey Festival, patrocinado pela marca de jeans norte-americana, USTOP, com ingressos a venda no Unibanco. Este festival também estabelecia conexão com outro lendário festival de jazz, o Monterey Jazz Festival, realizado todo ano em setembro, na cidade de Monterey, California, através de pagamento de royalties pela utilização da marca de prestí- gio e não teve quaisquer participação de órgãos da esfera pública, tendo sido uma iniciativa de dois sócios que eram administradores e acreditavam no lucro do novo mercado incipiente (Walter Longo e Roberto Muylaert).7 Por fim, o Free Jazz Festival - capitaneado por uma empresa de cigarros, a Souza Cruz, cujo público, crescente, apresentava um perfil de alto pa- drão social. O jazz no Brasil, que permaneceu em uma localização mais marginal no mercado da música na primeira metade da década de 1970, a partir desse momento alcança uma nova tomada de posição dentro de seu campo artístico (BOURDIEU, 2007). Veremos então, quais relações estabelece o gênero com o projeto de modernização no país no começo da década de 1980.

6 Fonte: http://www2.tvcultura.com.br/fpa/, acessado em 23/01/2016.

7Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&pasta=ano%20198&pesq=Rio%20- Jazz%20Monterey%20Festival. Acessado em 26/01/2016

Segundo Canclini (2013), a cisão marcante entre a cultura de elites e a de massas do fi- nal da década de 1970 estabelece um novo modelo de circulação e valorização dos bens sim- bólicos, onde as macroempresas passam a dominar a difusão da cultura de massa, como a TV Globo. Por outro lado, as “fundações e institutos privados se apropriam da cultura de elite, substituindo antigas instituições representativas das oligarquias agroexportadoras”. Esse fenômeno é portanto verificável na trajetória do Brazilian Jazz em 1978, quando a Fundação Padre Anchieta apóia um órgão de Estado para a realização de um festival de jazz na cidade, em 1978 e 1980. Nesse momento, ainda tem-se o Estado se apropriando do novo movimento, e a importância desses primeiros festivais é conceituada por Zuza Homem de Melo: “esses dois primeiros tiveram uma importância muito grande justamente porque eles abriram hori- zontes para músicos que estavam começando e para músicos, digamos, que já estavam a ca- minho de uma consagração.”8 Já no Rio Jazz Monterey Festival a iniciativa já é totalmente privada, bem como seguirá da mesma forma em todas as edições do Free Jazz, até 2001.

Qual seria portanto o interesse da empresa nesse novo segmento, que justificasse o investimento?

Nos anos finais da década de 1950 e na década de 1960 os músicos que acompanharam a transformação que o Bebop, o cool jazz e o jazz avant-garde realizaram no jazz “autêntico” nos EUA (HOBSBAWM, 1989), realizaram aqui também hibridações, que podem ser confe- ridas nos trios de samba-jazz, ao incorporar elementos do jazz ao samba.9 A partir desse mo- mento, há uma mudança drástica no perfil do público consumidor: o jazz se eleva a condição de arte, deixando de ser música para dançar, para se tornar música para ouvir, e o seu público passa a ser os intelectuais brancos e boêmios, frequentadores de clubes de bossa nova e jazz, como o lendário “Beco das Garrafas”. Segue num caminho sem volta se consagrando e se dis- tinguindo cada vez mais como uma música elitizada, moderna, pronta para se relacionar in- ternacionalmente. Na década de 1970, em capitais do sudeste, especialmente no eixo Rio - São Paulo, surgiram verdadeiros jazzmen brasileiros, como “Vitor Assis Brasil, 24 anos, o mais famoso saxofonista de jazz do Brasil, escolhido o melhor solista do Festival de Jazz de Berlim”.10

8 MELLO, Zuza Homem de, em entrevista concedida a autora em 29/07/2010.

9 Nesse período surgiram os trios de piano-baixo-bateria que fariam história tocando temas brasileiros com im- provisação jazzística, o que germinou e cristalizou definitivamente o samba-jazz. Fonte: http://ensaios.musico- dobrasil.com.br/josedomingosraffaelli-ahistoriadosambajazz.htm. Acessado em 26/01/2016.

Esse novo público de alto poder aquisitivo, frequentador da “noite”, consumidor de boas marcas de whisky e cigarros, passará a justificar assim o interesse da iniciativa privada em vincular sua marca em meados da década de 1980, para um público que pudesse pagar pelos caros ingressos dos festivais nos hotéis de alto luxo onde eram realizados. A vinculação da marca com o gênero no país também trazia conveniências político-sociais, pois, esvaziado de posicionamentos políticos, e sua maior marca de distinção era a novidade estética, a do jazz hibridizado, moderno, globalizado. Assim como o Free Jazz Festival, outras empresas passa- ram a patrocinar as casas noturnas e festivais que ao longo da década se dedicaram ao gênero, na maioria das vezes ligadas a empresas aéreas (PanAm, Varig, Vasp), de bebidas alcoólicas (Heineken, Chivas Festival, Ballantine’s) e outros.

Pode-se dizer portanto que as hibridações dos gêneros que estruturaram o Brazilian Jazz da década de 1980 são resultados de processos anteriores, mas ao mesmo tempo, resultantes de processos que aconteceram ao longo da década de 1980, em função da relação com esse jazz mundializado, com o país inserido na rota internacional do jazz, fomentando o mercado dentro do próprio país. Esse processo de inserção do Brazilian Jazz no gosto da cultura de eli- te, nas últimas décadas do século, se encontra exatamente no momento em que se efetiva a transformação na circulação dos bens simbólicos - a mudança na atuação do Estado e da inci- ativa privada na cultura do país - finalizando um processo de modernização que vinha aconte- cendo desde a década de 1940. Segundo Canclini, “ao chegar a década de 1990, é inegável que a America Latina efetivamente se modernizou. Como sociedade e como cultura: o moder- nismo simbólico e a modernização sócio-econômica já não estão tão divorciados.”(2013, P. 96).

Se nesse momento o Brazilian Jazz realiza essa modernização, na década de 1990 o mercado tomará outro sentido. Veremos uma desaceleração do mercado, com consequentes e sucessivos fechamentos de casas noturnas e perdas de espaços, culminando no encerramento de uma época. Outros gêneros revisitados ressurgem com força, como o choro e o samba, e o Brazilian Jazz da década de 1980 parece ter ficado em um compartimento a parte na literatura e na memória musical do país. Os músicos que não saíram do país continuaram a produzir através de gravadoras no exterior, selos ligados ao segmento ou produções independentes, bem como os festivais de jazz aumentaram em número por todo o país. A música instrumental seguiu seu rumo, e outras formas de circulação redesenharam as décadas seguintes. O termo Brazilian Jazz continua a ser um termo adotado no exterior, mas isso nada tem a ver com o entendimento do brasileiro sobre sua música, pois para o brasileiro, nem tudo é jazz.

10 Matéria publicada no Jornal do Brasil, em 24/08/1970. Hemeroteca digital: http://memoria.bn.br/DocReader/ docreader.aspx?bib=030015_09&pasta=ano%20197&pesq=Vitor%20Assis%20Brasil. Acessado em 05/01/2016.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALLESTE, Adriana. Independente De Tudo...? In: ANTOLOGIA: Prêmio Torquato Neto. Rio de Janeiro: RioArte, 1984. P.107 a 131.

BOURDIEU, Pierre. A Economia Das Trocas Simbólicas. Tradução Sergio Micelli. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007.

CANCLINI, Nestor Garcia- Culturas Híbridas: Estratégias Para Entrar e Sair da Mo- dernidade. Tradução de Heloisa Pezza Cintrão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.

FRANCISCHINI, Alexandre. Laurindo Almeida: dos trilhos de Miracatu às trilhas em Hollywood. São Paulo : Cultura Acadêmica, 2009.

HOBSBAWM, Eric J. História Social do Jazz. Tradução de Angela Noronha. Rio de janeiro: Editora Paz e Terra, 2007.

LEVY, Deborah W. O Brazilian jazz no Rio de Janeiro, década de 1980: a mudança de direção de um mercado em ascensão. Rio de Janeiro:UCAM-2010.

MIDANI, André. Música, ídolos e poder: Do Vinil Ao Download. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

MORELLI, Rita C.L. Indústria Fonográfica: Um Estudo Antropológico. 2a. ed. Campi- nas: UNICAMP, 2009.

Deborah L.
Deborah L.
Rio de Janeiro / RJ
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