O caixão
Por: Keyth P.
30 de Setembro de 2016

O caixão

Literatura

Baseada em Akutagawa, autor japonês, eis que pari este conto para a conclusão do semestre de Literatura Japonesa III. Não sou escritora, mas vale compartilhar o esforço.

O Caixão

Tudo em volta estava escuro. Ouvia chiados que se assemelhavam a vozes; abriu os olhos e sentiu-se em pé, porém nenhuma imagem se mostrava nítida. Aos poucos as formas começaram a surgir e conseguiu identificar alguns vultos que cercavam um objeto comprido, similar a uma urna, retangular e branco; parecia um caixão. Um caixão? Um calafrio percorreu-lhe o corpo. Um caixão! Mas como? Onde estaria? Um enterro? Lembrava-se de ter estado em sua casa, em seu quarto. Estivera sentada em cima da cama com seu caderno entre as pernas, aquele caderno em que escreveria o bilhete... Uma dor extrema e pulsante penetrou sua mente e fez com que perdesse as forças, sentiu-se obrigada a sentar-se no chão. Não compreendia o que se passava. Abaixada, abriu os olhos e conseguiu melhor enxergar, em frente ao caixão percebeu duas crianças. Começava a diferenciar cores e formas, o menino era muito pequeno, deveria ter três anos recém completos, a menina um pouco maior, com a cabeça erguida olhava curiosa em direção ao caixão; alguém a pegou no colo e apesar da dor latente que aumentava e a fazia querer gritar, pode ouvir com pouca nitidez:

- Olhe bem para a ela, esta é a última vez que a vê.

A pequena Sabrina não entendia muito bem o que acontecia. Tanta gente naquele parque bonito, com aquelas casinhas em que se colocavam essas camas de madeira. Por que sua mãe dormia ali? Por que não a veria mais? Começou a chorar, seu pai comovido tomou-a em seus braços e sentou-se no banco colocado ao lado da sua esposa morta. Sabrina com seus aproximados cinco anos, em sua confusão de pensamentos pouco conseguia distinguir; ainda não relacionara os fatos ocorridos naquele domingo.

Acordara alegre e feliz, abraçou o pai e implorou para que a levasse consigo à feira, domingo era dia de pastel. Seu pai, depois de tanta insistência cedeu aos desejos dos filhos, o pequeno Paulo apesar de não entender o que pedia, imitava a irmã com tanto talento que acabou por comover o pai. Resolveu avisar a esposa que levaria os filhos. Luzia levantou-se da cama, visualizou o caderno, lembrara-se de deixá-lo em seu criado mudo. Dirigiu-se em direção a sua filha e em um gesto estranho muito mais pelo momento do que pelo seu significado, beijou e abraçou fortemente a sua menininha. Tão linda! Será que seria feliz como não conseguia ser? Seus olhos lacrimejaram. Voltou-se para Paulo que já se deitara em seu travesseiro e a observava com seus olhos grandes e expressivos, pérolas que pareciam perceber o que desejava fazer. Sentou-se e pegou-o no colo, tão pequeno e indefeso; sussurrou em seus ouvidos palavras doces e beijou aquele rostinho que mais lhe parecia o de um anjo.

Francisco admirava a linda esposa tão carinhosa com seus rebentos, sorriu-lhe da maneira mais terna. Luzia retribuiu e em um ímpeto abraçou seu marido e beijou-o como na primeira vez. O marido estremeceu correspondendo-lhe com alegria, enfim sua esposa voltara ao normal; a tristeza anterior que a fizera esconder-se no quarto finalmente passara. 

- Volto logo, meu bem.
- Traz pastel. Quero de pizza.

Com Sabrina em seus braços, o pai se recordava daquela manhã e dos gestos de sua esposa. Se soubesse... Poderia não ter levado os filhos, isso com certeza a impediria. Se tivesse percebido, certamente não teria ido à feira. Agora era tarde, as lágrimas escorreram-lhe os olhos e atingiram o rostinho de Sabrina, misturando-se com as da menina que observava inexpressivamente o irmão. Paulo encostou a cabecinha nas pernas de Sabrina e manteve o olhar assustado em direção à parede.

Luzia que agora enxergava claramente encontrou os olhos daquele menino, mas quem era? Por que a olhava com tanto afinco, por que parecia conhecer aquele olhar? Sentiu náuseas, a dor a entorpecia e a fazia querer vomitar. O que estava acontecendo? Sabia que se chamava Luzia, mas não entendia o porquê de assistir aquela cena. Tratava-se de um filme? Rendeu-se e deitou, o chão gelado parecia aliviar a dor que começava a suportar apesar de não diminuir. Lembrou-se de estar deitada em uma cama, sua cama, alguém a chamou, o caderno em um criado mudo, o seu criado mudo, o bilhete que escreveria: “Cansei de Viver”. Uma dor ainda mais forte sobrepujou-lhe o coração que palpitou freneticamente, não fizera, sabia que não teria coragem mesmo com tanta vontade. Estava viva, podia ver e pensar, mas por que quisera fazer algo tão terrível? Por que desejara acabar com a própria vida? 

– A vida é inútil. 

Luzia entornou a cabeça à direita, porém ninguém lhe falava, percebeu ser aquele um de seus pensamentos. A vida é inútil. Por quê? Tanta dor, tanto sofrimento, tanta desigualdade, aquela extrema pobreza em que vivera e que ainda subjugava sua família. 
- Minha mãe! Meus irmãos! Josi!

Tanto sofrimento, aquele barraco que por vezes não tinha sequer arroz. Lembrou-se de quando fizera um bolo para os seus irmãos menores e sua mãe o jogara no chão alegando serem aqueles três ovos os únicos para a mistura da janta. Não poderia ser aquilo algo digno de se denominar vida. 

– Mas a vida pode ser diferente, pode-se escrever a própria história!

À esquerda também ninguém se encontrava. Pode-se escrever a própria história? Sentou-se novamente, pensou reconhecer um rapaz que abraçava aquele homem com a menina nos braços. Encontrou o olhar do menino que ao perceber, enfiou-se entre as pernas do pai e o mirou com um olhar aturdido.

Ao receber o olhar de Paulo, o pai não pode decifrar o motivo pelo qual o menino se acanhara. Será que percebia a tristeza do ambiente? Será que entendia que sua mãe havia morrido? Lembrou-se do momento em que entrou no quarto, sua linda esposa caída com o rosto ensangüentado, que desespero! Aquela arma, onde conseguira? Soluçava com as lembranças, mas por mais dolorosas que fossem, precisava compreender, compreenderia? Suas mãos que acariciavam a cabecinha de Paulo, pareciam ainda conter o sangue que manchara sua pele no momento em que tocara a face de Luzia ao constatar o que a esposa fizera. Como fora capaz de abandonar a vida? E as expectativas dos filhos, seria um ser humano capaz de se abster das expectativas dos próprios filhos? Como ela pode fazer isso? Não era feliz com ele? Se não o fosse, porque simplesmente não se separou? Como pode fazer isso com a família, com os filhos? As pobres crianças agora cresceriam com a marca em suas histórias da mãe que se suicidou com um tiro na cabeça, que covardia! Ao menos os filhos deveriam ser motivo da existência de um ser humano, se é que se pode chamar de ser humano alguém que faça algo dessa estirpe. Enquanto os pensamentos de Francisco se enchiam de raiva, seus olhos secavam e sentia as mãozinhas de sua filha apertarem firmemente o seu corpo. Sabrina mirou o pai e com voz chorosa perguntou:

- Papai, porque a mamãe está dormindo nessa cama de madeira branca? Por que só aparece o rosto dela embaixo daquele vidro?

- Sua mamãe está dormindo minha filha, daqui a pouco vão levá-la para morar no céu, ela se tornará uma estrela e todas as vezes que você olhar para o céu ela será a estrela que brilha mais forte.

- Por que a mamãe vai embora papai?

Francisco não respondeu. Sabrina chorando tentava entender porque sua mãe iria embora, não gostava mais dela? Mas a tinha beijado ontem. Por que agora iria deixá-la? Sabrina sentiu uma mão sobre seu rosto, era sua tia Josi, a irmã mais próxima de sua mãe, chorava como a maioria das pessoas no salão:

- Ela estava com um sorriso falso Francisco, eu disse para ela que estava triste.

Sabrina recordou-se da cena, sua mãe sorria e ao ouvir as palavras de sua tia, observou o sorriso da mãe e não compreendeu como poderia estar triste se sorria daquela maneira. Não estava triste, sua tia enganara-se. Sentiu seu irmão abraçar a sua cintura, seus olhos fixavam a parede, virou o rosto e viu a janela, havia uma árvore grande, talvez Paulo quisesse subir. Paulo olhava fixamente naquela direção.

A dor continuava sem dar tréguas, Luzia contemplava a mulher parada diante das crianças, conhecia-a de algum lugar, de onde? Aquele barraco, seus irmãos:

- Josi! Josi! Eu estou aqui, minha cabeça dói. Me ajude! Ergueu-se para caminhar em direção à irmã, titubeou, a dor dificultava a caminhada. Se Josi estava ali, deveria ser o velório de algum conhecido, o menino a acompanhava fixamente, de onde conhecia aquele olhar? Quem estava naquele caixão branco, aproximou-se, olhou em direção ao caixão. Seria um espelho? Enxergava seu rosto ali, como era possível estar dentro daquela urna se estava viva assistindo a tudo? 

- Josi, o que está havendo? Estou aqui, quem é essa mulher parecida comigo neste caixão? O que significa isso?

Mas a irmã não lhe respondia, não ouvia? Estaria sem voz? Aquele homem, de onde o conhecia? Aquela menina? A dor! Não conseguia pensar, era incessante e a fazia querer voltar à escuridão inicial, onde sem consciência a dor não existia. Pôs as mãos sobre o caixão fechado, olhou fixamente para o rosto da mulher embaixo daquela espécie de janela de vidro. Morrera? Morrera! Efetuara o plano, os olhos, Paulo! Entendera tudo, Mas como era possível? Não parava de perguntar a si mesma, como era possível? Quatro homens se aproximaram, pararam ao seu lado e suspenderam o caixão. Francisco com Sabrina no colo pegou a mãozinha de Paulo que voltou sua atenção ao pai, levantou-se, Josi se pôs ao seu lado. Agora reconhecia aquelas pessoas, seus amigos! Seus familiares! Seu velório! Começaram a andar e a levar o caixão de onde se encontravam. Como poderia estar dentro do caixão se estava em pé observando toda a cena? Prosseguiam e a dor tornava-se insuportável.

- Não! Eu estou aqui! Sabrina, Paulo, Francisco não deixem que me levem, eu estou aqui. Pode-se mudar a própria história! Posso mudar a minha história.

Compreendera tarde demais o pensamento que sempre a perseguira, mas que as marcas de sua dura infância e de pobreza extrema, tiranas, não permitiram que desse ouvido. Todos se direcionavam para fora do salão. Agora conseguia ver os arranjos de flores e sentia o cheiro forte que emanavam. Distanciavam-se, enquanto continuava ali, sem forças. 

- Eu fiz! Eu fiz! Escrevi o bilhete! Como cheguei até aqui? Que dor! Que dor! 
Era a dor do tiro, entendera finalmente! Insana, intensificava-se, a escuridão retornava lentamente e aquelas pessoas que tanto estimava, aos poucos voltavam a se transformar em vultos. O que fizera? As perdera? 

- Não, não posso perdê-las, prefiro a escuridão, prefiro a inconsciência!
Caiu, sem forças e cedeu à insuportável dor. Paulo já não mais a observava. Perdia de vista as pessoas que amava e seu coração palpitava ainda mais acelerado que a primeira vez. Consciente sucumbiu e entregou-se à escuridão.

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