
A Escola como Instrumento de Reprodução Social: Uma Análise

em 02 de Fevereiro de 2025
Considerações iniciais
Nos dias atuais, quando se fala de alguém angustiado, logo se supõe ou vem, à tona que o indivíduo esteja sofrendo, com a perda de um amigo ou de um parente. Esta é a “imagem” que a palavra angústia evoca, em muitas pessoas da nossa sociedade.
O pensamento kierkegaardiano amplia a perspectiva de entendimento da angústia, na medida em que a compreende, como inerente à própria natureza humana, o que significa dizer que todos os seres humanos convivem, com este sentimento de angústia. A experiência humana de angústia desempenha um forte papel, no pensamento filosófico de Søren Aabye Kierkegaard. Nessa perspectiva, ele dedicou a ela toda uma obra intitulada: “O Conceito de Angústia”, escrita no ano de 1844 e na qual relaciona a angústia com o estado de inocência, com a culpa, com o pecado hereditário e com o pecado de Adão.
O filósofo dinamarquês trata um novo jeito de pensar a Filosofia, partindo da sua própria existência, dando passos para o que, mais para frente, com Sartre[1], vai surgir o Existencialismo. Com isto, uma breve abordagem sobre a vida do filósofo se torna necessária, pois é, a partir dela, que se é possível perceber como este sentimento da angústia, que muitos pugnam, encontra-se, especialmente, na sua própria hereditariedade.
Em uma cidade da Dinamarca, chamada Copenhague, no dia 5 de maio de 1813, nascia o menino que futuramente, iria ser um dos grandes pensadores do tempo moderno e contemporâneo, Søren Aabye Kierkegaard. Nasceu, no ano em que a Dinamarca tinha chegado à falência, depois de seis anos de guerra inútil, com a Inglaterra. Chegou-se a chamar a Dinamarca de um país “encantado de mediocridade” – expressão usada pelo próprio jovem. Kierkegaard era de uma família seguidora fiel de Martin Lutero (Luteranismo); está religião tinha, como característica bastante enfatizadora: o pietismo e a melancolia. Característica esta que perpassou para a família do jovem Kierkegaard.
Seu pai, Michael Pedersen Kierkegaard, era comerciante e pela segunda vez se casar com a sua empregada doméstica. Ao contrário do primeiro casamento de Michael, que acabou sem nenhum filho, o segundo foi fecundo, tendo, ele, sete filhos. Sua mãe e seu pai já eram, de idade avançada, quando Kierkegaard nasceu: “(...) esse último filho[2] representava para ele (Michael) o filho da velhice” (LE BLANC, 2003, p.31).
Apesar de ter nascido em Copenhagen, sua família era de uma aldeia, chamada Seading, localizada, a Oeste de Jutlândia. Foi aí que o pai de Kierkegaard recebeu uma exigente, rígida e austera influência religiosa para a sua vida. Lá, ele aprendeu a relacionar-se com o Cristo chagado, que o fazia recordar a sua condição de pecador. Com isso, Michael Kierkegaard, na sua juventude, ergueu-se, com sua fúria e amaldiçoou a Deus, por tê-lo colocado, naquela aldeia e de uma família pobre. Por isso, surgiu, em Michael, um medo de que todas as ações negativas que passavam, em sua vida, eram por causa desta maldição que ele jogou contra Deus. Assim, pensava ele que devido a este episódio, na sua juventude, o próprio Deus castiga-o, com a morte de seus cinco filhos e de sua vida passar por uma melancolia total.
Decorrente da morte do pai, Kierkegaard decide continuar a conclusão do Curso de Teologia, em 1841, logo depois defendeu a sua tese “O conceito de ironia: constantemente referido a Sócrates” para obter o grau de Master em Filosofia. Um ano antes, em 1840, noivara, com Regina Olsen. Mas, no ano de 1841, decide romper o noivado. Depois dessa sua escolha, Kierkegaard partiu, para Berlim. Chegando lá, começou a se aprofundar, nas teorias filosóficas, estudando, no curso de Schelling, pois esperava uma explicação da realidade que não encontrava em Hegel.
No dia 2 de outubro de 1855, cansado, é encontrado deitado em plena rua, é levado para o hospital, onde passa um bom tempo e os médicos não descobrem o motivo da sua fragilidade. Kierkegaard nega-se a receber o único irmão que lhe resta. Recusa os últimos sacramentos. E a 11 de novembro de 1855, Kierkegaard morre, aos 42 anos.
A partir desta breve abordagem, podemos entender o percurso do pensamento kierkegaardiano, que é a busca da compreensão de si mesmo, ou melhor dizendo, a busca do torna-se a si mesmo. É importante salientar que Kierkegaard é um filósofo que suspende o mundo e os problemas que existem, para se dedicar, especialmente ao “ser em si”. É a partir disto que ele vai tirar a atenção das realizações do mundo e vai passar a buscar uma existência voltado para si mesmo. Nesta perspectiva, buscamos uma conceitualização da angústia, iniciando com um ensinamento do que ela é, na visão do filósofo, e a partir de qual momento o sujeito se apercebe com esse sentimento. Com base nesse conceito, podemos, posteriormente, analisar o ponto mais intrigante da obra “O conceito de angústia”, que é a angústia no pecado hereditário, o qual o próprio Kierkegaard subdivide, em dois tipos, a saber, angústia objetiva e angústia subjetiva. Com esse itinerário objetivamos empreender a busca de conhecer o lugar existencial da angústia, em cada ser racional.
A pedagogia da angústia
Diante de toda a vida do filósofo Søren Aabye Kierkegaard, observamos que um grande significado foi atribuído a este sentimento, abordado em momentos ápices de sua história, considerado, por ele mesmo, como grandes “terremotos”, para a sua existência. No entanto, com este vasto conhecimento, é importante e se torna necessário conhecer qual é o conceito deste sentimento, mas, não só como um conhecimento que a sociedade adere, e sim o conhecimento voltado para a Psicologia, à Filosofia e à Teologia.
Toda vez que nos chega, aos ouvidos a palavra angústia é quase inevitável que a associemos a situações de crise e de desorientação. E essas lembranças, quase sempre, conterão sentimentos e significados de "dor" ou "sofrimento". Apesar de tudo, esse "não sei quê" que desconforta e desassossega, por vezes nos chega, digamos, bem familiar: é como se nos falasse algo de nós mesmos. Mesmo com a incompreensão e o aparente mistério que envolta o estar angustiado, o certo é que sou eu mesmo que estou experienciando a angústia. Para além da "dor", há "algo" que clama, em nós, e nos aponta para alguma verdade, em nós ou do mundo ao redor. E já que nem sempre sabemos do que trata nossa angústia, então o que vem se impõe o desconforto. Para Kierkegaard, a angústia existe, desde o nascimento, ou seja, o ser existente já tem a angústia, como inata ou intrínseca. Esta angústia inata se daria, uma vez que o próprio homem foi criado, no mundo, para vivenciá-la, primeiramente, no estado da inocência, ou seja, sem um conhecimento sobre seu significado. Um exemplo muito importante e que nos informa sobre essa experiência, na grade humana, é a fase da infância, na qual não se tem conhecimento sobre a realidade que é vivida. A criança só deseja brincar, divertir-se buscando o seu próprio prazer. Ela não conhece o que é certo ou errado; nesse caso ela se encontra, neste estado da inocência e ela apenas terá o conhecimento sobre sua existência e tudo que existe ao seu redor, quando passa pelo chamado salto qualitativo.
Então, é, através da própria inocência, que se encontra a própria angústia, ou seja, é a partir dela que o indivíduo vai iniciar o seu processo existencial angustiante. Podemos observar isto, no parágrafo quinto da obra “O conceito de angústia”, do próprio filósofo: “A inocência é ignorância. Na inocência, o ser humano não está determinado como espírito, mas determinado psiquicamente em unidade imediata com sua naturalidade” (KIERKEGAARD, 2010, p. 44). E, ainda, de acordo com esta abordagem, temos a inocência como o nada, e deste nada é que surge a angústia.
Neste estado há paz e repouso, mas ao mesmo tempo há algo de diferente que não é discórdia e luta; pois não há nada contra o que lutar. Mas o que há, então? Nada. Mas nada, que efeito tem? Faz nascer angústia. Este é o segredo profundo da inocência, que ela ao mesmo tempo é angústia. Sonhando, o espírito projeta sua própria realidade efetiva, mas esta realidade nada é, mas este nada a inocência vê continuamente fora dela. (KIERKEGAARD, 2010, p. 45).
Sintetizando, então, a angústia, segundo Kierkegaard, precede o pecado e está ligada à possibilidade e à liberdade. Ela caracteriza a existência e serve para revelar, ao existente, o seu próprio ser. Desde que o que é dado não é o eu, mas somente a possibilidade do eu, colocando-se diante do nada e como que debruçado sobre o vácuo. É vertigem diante do que não é, mas poderá ser pelo uso de uma liberdade que não se experimentou e que não se conhece. Como uma espécie de “antipatia simpática ou de simpatia antipática” (KIERKEGAARD, 2010, p. 45).
Para ilustrar essa compreensão da angústia, Kierkegaard menciona alguns textos bíblicos. Primeiramente, para ele, é muito importante a forma como Adão surgiu, no mundo, ou seja, a criação de tudo que há. Observamos, claramente, que Adão foi criado, por um Ser Absoluto, ou seja, um Ser Criador de tudo, que existe na terra. E nesta criação, Deus deu, ao homem, a liberdade de escolha. Desta forma, observamos que, se o próprio Deus já nos criou de uma forma livre, nós nascemos, com a inquietação, nas nossas possíveis decisões. Estas inquietações podem ser analisadas, como certas dores que vão acarretar nossas próprias decisões. E, ainda, estas, dores que sentimos, podem ser consideradas, como grandes angústias, angústia de possibilidade, isto é, de ser angustiante, que se doa, totalmente, a uma escolha, sem deixar de pensar, na outra possibilidade, que mesmo não escolhida, ainda continua como uma possibilidade, na sua vida.
Vemos a história do primeiro pecado ou pecado de Adão e Eva que, ao serem criados, foram proibidos, pelo seu criador, de comer o fruto de uma árvore, que estava no centro do paraíso. Mas, o interessante desse conhecido relato é que Deus proíbe, mas deixa o homem livre para as suas escolhas, então Adão e Eva comeram do fruto proibido e, a partir daí, entrou o conhecido pecado original ou hereditário[3].
Mas, considerando a hipótese de que nem Adão nem Eva tivessem comido desse fruto proibido, hoje não se contaria com o pecado original e, assim, existiria a angústia? A resposta, para esta pergunta, se torna muito clara para o filósofo dinamarquês, pois, caso eles escolhessem não comer do fruto proibido, eles mesmos estariam, assim, repletos da angústia de não ter provado daquele suculento fruto que estava à disposição deles.
Caso tudo que aconteceu, no início dos tempos renascesse ao contrário, o homem ainda, para Kierkegaard, continuaria, plenamente, angustiado, por sua escolha. Portanto, percebe-se que não se pode fugir da angústia, porque ela já está operante, intrinsecamente, no nosso ser. A existência necessita dela para prosseguir, pois se o indivíduo diz que é feito de possibilidades de escolha, ele também afirma que ele é um ser marcado pela angústia existencial. Um trecho da monografia de Marilza Barrios dos Santos esclarece bem sobre esta determinada ideia da angústia em Adão e Eva.
A angústia foi responsável pela queda do primeiro homem, Adão. No Éden ele vivia num estado de inocência mesclado com ignorância. Essa ignorância determinou sua queda. A angústia, portanto foi responsável por sua queda por estabelecer uma relação entre a inocência de Adão, a coisa proibida e o castigo. Para Kierkegaard, a queda é um ato de liberdade. Comer o fruto, a escolha provocada pela própria angústia. O ato de pecar é, então, visto como natural por ser consequência da própria angústia, que representa o mais alto grau de egoísmo, pois nesse estado o indivíduo não desvia o olhar dele próprio e, assim, perde de vista Deus. O pecado, aqui, é considerado como estar apartado de Deus. O pecado é uma decisão que, mesmo tomada em liberdade, acabou por amarrá-la e, para ele, é nesse local da liberdade que o indivíduo pode reencontrar a si mesmo. O ser humano transformou sua liberdade em escravidão (SANTOS, 2010, p. 33).
O texto, que analisamos, revela a angústia, nos nossos primórdios, leva-nos a concordar com este principal pensamento do filósofo dinamarquês. Por quê? Se Kierkegaard diz que a angústia é intrínseca ao homem e isto pelo fato de sermos indivíduos de possibilidades de escolha, então o fato de nós escolhermos traz a incerteza de ambas as decisões, surgindo assim a angústia. Isto é, todas as nossas escolhas, sempre, são necessárias, precisando, assim, deixar uma possibilidade de escolha para concretizar a outra e, deixando-a, sofre-se uma angústia, na essência da existência.
A angústia se concretiza, totalmente, quando o indivíduo passar do estado da inocência para o estado da culpa. Para tanto, é necessário passar pelo salto qualitativo. A partir, daí, o indivíduo começa a ver a sua existência com outros olhos, pois ele não se encontra mais naquele anterior estado, mas no que aprendeu o que era certo e errado, agradável e ruim, licito e ilícito. Ou seja, um indivíduo, no estado da culpa, começa a ver a realidade, com outros olhos, com um senso mais apurado, sobre tais coisas, porque ele conheceu o bem e o mal.
Esse salto representa grandes consequências, para a existência do indivíduo. Se, no lugar de Adão e Eva, surgisse um indivíduo, totalmente, novo, a história da espécie não teria continuidade: haveria em seu lugar, uma repetição. Todavia, não é assim que acontece, porque há uma descendência, há uma derivação que não afeta a essência do indivíduo. Sendo o indivíduo ele mesmo e a espécie, o estado da inocência antecede tanto a história individual quanto a universal. No entanto, é a partir do momento em que o indivíduo tem consciência de si mesmo, em que ele discerne entre o bem e o mal, que ele se encontra inserido na história da espécie. É através desse salto do desconhecimento ao conhecimento que o indivíduo ingressa na história da espécie e entra, na pecaminosidade. Voltando para o outro relato bíblico, observamos mais um exemplo de vivência de profunda angústia, que é a história de Abraão, ou, como o próprio Kierkegaard chama, do cavaleiro da fé. A angústia de Abraão se baseia na escolha de matar ou não o seu único filho, proposta sugerida pelo próprio Deus. Ele poderia escolher entre não matar e assim não cumprir a vontade do Pai ou cumprir e, assim, perder o seu único filho para sempre, além de ser considerado um assassino perante a sociedade que não iria entender sua ação para com o filho. Ou seja, compreendido pela ética, o sacrifício de Isaac seria uma ação inaceitável. No entanto, Abraão está no estágio superior à ética, ele se encontra no estágio religioso[4]. O que acontece é que, por causa da fé, Abraão não pode ser julgado como assassino, pois aquele que se renega, a si próprio, e se sacrifica ao dever renuncia ao finito para alcançar o infinito. Através do sacrifício, Abraão está, intimamente, ligado a Deus; a atitude de executar Isaac é a vontade do ser absoluto. Com efeito, a moralidade é suspensa e Abraão não pode se tornar assassino. Sobre o ponto de vista ético, a atitude do sacerdote é imoral. Sob o ponto de vista religioso, Abraão deve fazer aquilo que Deus lhe ordena.
Nesse contexto, encontramos, ainda, o paradoxo da ética. Abraão deve agir de acordo com as leis morais ou de acordo com a vontade de Deus? Como agir? Dessa forma, encontramos um conflito ético, no momento em que Deus pede para que se cometa um ato julgado imoral[5]. Nessa situação, vemos que o sacerdote não pode ser auxiliado, através de critérios racionais, como as regras da ética, que são universais e gerais. De um lado, Abraão cumpre as ordens divinas, mas é julgado, como criminoso e sua tentação é não ser considerado cumpridor do desejo de Deus e ter demonstrado o desejo pela finitude e não possuidor de fé. Caso mate o filho, perde o que mais ama e ninguém poderá entender sua ação.
Mas o pai de Isaac resolve seguir o desejo de Deus e leva Isaac para uma montanha, preparando tudo para oferecê-lo, em sacrifício para o Deus Supremo. Imaginemos como estava Abraão, nesse momento, ele está diante de grandes decisões que iriam mudar a sua vida e, achando mais viável e seguindo a sua fé, decide ofertar o seu único filho para Deus, sabendo que a sociedade não entenderia sua ação. É neste contexto que Kierkegaard vai chamar Abraão de o Cavaleiro da Fé, pois ele (Abraão) com a sua individualidade se entregou, totalmente, à vontade de Deus, chegando a dar, em sacrifico, o seu único filho a quem ele mais amava. Kierkegaard observava, nele, um exemplo de um autêntico servo de Deus. Diante desta situação, observamos a busca do jovem Kierkegaard pela autenticidade na sua vivência da vontade de Deus.
A angústia, portanto, está relacionada com a própria liberdade do indivíduo, na qual se perpetua o pecado do próprio indivíduo. Pecado este que começa, com os primórdios e nossos antecedentes, aqui, na terra e percorre por toda existência humana.
O pecado hereditário
Na obra O conceito da Angústia, do autor Vigilius Haufniensis[6] observa-se que a questão do pecado está envolvida, com a própria definição do que é angústia. Para Kierkegaard, a angústia começa, a partir do pecado, ou seja, o pecado está intrínseco à angústia. Para explicar melhor, temos que partir do fato que Kierkegaard focalizar a primeira angústia, experimentada pelo ser humano, como a escolha de Adão, em comer do fruto da árvore do conhecimento, proibido por Deus. A partir daí, nascia o pecado, no mundo. De uma forma geral, a pecaminosidade, no gênero humano, move-se em determinações qualitativas que, por assim dizer, tornam-se angústias.
Será que é este primeiro pecado que perpassa toda a nossa humanidade? Ora, é necessário pensar que o primeiro pecado, como o próprio nome expressa, foi o que primeiro entrou no mundo a partir de Adão e Eva com seus primeiros contanto com essa angústia existencial. Importa notar, contudo, que não é, especificamente, o pecado de Adão que permanece, nos indivíduos, mas sim o pecado hereditário que passa de geração em geração e vai advir para os seres humanos futuros, ou seja, a consequência deste pecado é angústia, que só, quantitativamente, se diferencia daquele do de Adão.
Assim, Kierkegaard, seguindo, fielmente, suas crenças cristãs, diz que esta condição do pecado é algo que cada um carrega, em si, um eco do primeiro pecado. Isto é, que o indivíduo carrega o sentido do primeiro pecado, mas não é este pecado primordial que perdura no existente.
Na obra O conceito de Angústia, Kierkegaard irá abordar mais detalhadamente esta diferença:
[...] o fato de que a angústia no indivíduo posterior é mais refletida em consequência de sua participação na história do gênero humano, que é comparável com o hábito, o qual decerto é a segunda natureza, mas, no entanto, não uma nova qualidade, e sim somente um progresso quantitativo – decorre de que a angústia agora entra no mundo também num outro significado” (KIERKEGAARD, 2010, p. 58).
Enfim, pode-se dizer que a angústia tem dois aspectos, duas formas de entendê-la. A angústia, na qual o indivíduo põe o pecado, por meio do salto qualitativo[7], e a angústia que sobreveio e sobrevém com o pecado e que, portanto, também, entra no mundo, determinada, quantitativamente, cada vez que o indivíduo põe o pecado. Kierkegaard nomeia esses dois tipos de angústia, como angústia objetiva e angústia subjetiva.
Angústia Objetiva
Para entendermos, melhor, este tipo de angústia, vamos partir do autor Le Blanc, em seu livro Kierkegaard, no qual diz que “a angústia objetiva é do homem genérico colocado, pelo próprio fato da existência, diante da possibilidade de poder, em outras palavras, de sua liberdade; é angústia pela qual o pecado entrou no mundo” (LE BLANC, 2003, p. 82).
A partir desta breve explicação, dada por Le Blanc, podemos entender que a angústia objetiva surgiu, a partir do primeiro pecado. Portanto, se o ato primeiro do seu surgimento foi o pecado e se este pecado está intrínseco à angústia, conforme exposto, no tópico anterior, Adão como ser primeiro a vivenciar a angústia, estaria no contexto desta angústia objetiva? Se assim pensássemos, estaríamos, totalmente, equivocados, pois o fato da angústia objetiva surgir, a partir do primeiro pecado, não significa que Adão faz parte dessa angústia, pois, como o próprio nome nos revela, ela está, objetivamente, no mundo. Contudo, a angústia objetiva não ocorre, não se origina na existência da angústia de Adão, mas na condição na qual ele se encontra na natureza do homem, ou seja, através do primeiro pecado – o de Adão – o pecado surgiu, no mundo, e se aderiu à natureza deste mundo.
Nesse contexto, importante pôr em destaque a citação que Kierkegaard faz da Carta de São Paulo aos Romanos: “Assim como o pecado entrou no mundo através de um só homem e com o pecado veio a morte, assim também a morte atingiu todos os homens, porque todos pecaram”. “A própria criação espera com impaciência a manifestação dos filhos de Deus... Sabemos que a criação toda geme e sofre dores de parto até agora” (Rm 5, 12; 8, 19.22).
Para Garaventa:
Kierkegaard julga, de fato, que o pecado, uma vez entrado no mundo, tenha produzido uma alteração na criação. E este “estado de imperfeição” estaria na base daquela “expectativa impaciente” que se exprime na angústia. Portanto, a propósito desta angústia objetiva não se pode certamente excluir uma influência do Schelling das Investigações filosóficas sobre a essência da liberdade humana (1809) que, falando da possibilidade do mal em relação a Deus, procura justificar a tristeza ligada a qualquer vida finita, o véu de aflição que se estende sobre toda a natureza, a profunda, insuprimível melancolia de cada vida. A angústia, porém, adquire aqui um tom naturalístico, que vai além da compreensão da angústia como fenômeno da liberdade (GARAVENTA, 2011, pp. 18-19).
Portanto, ao vir ao mundo, o pecado assume, para a criação, a importância de, nela, estabelecer uma qualidade não a partir dela mesma, mas como efeito da liberdade do indivíduo; é este efeito do pecado, na existência não-humana, que Kierkegaard designa com o nome de angústia objetiva. Então, podemos caracterizar esta angústia como voltada para a natureza, ou seja, a physis, já a angústia subjetiva acontece, a partir da humanidade. Nesta humanidade é que observamos, fortemente, a angústia de Adão, pois é voltada para a sua profunda essência de ser um indivíduo racional.
Angústia Subjetiva
Este tipo de angústia, totalmente, diferente da anterior, é considerado para Kierkegaard, a mais significativa e a mais importante para a nossa existência. Mas o interessante é sabermos que, neste tipo, o filósofo aborda a relação do pecado, no indivíduo e no indivíduo posterior, sistematizando todas as possíveis formas da angústia, na sua subjetividade.
É interessante salientarmos que, para Kierkegaard, a angústia é considerada como uma vertigem. E o que seria esta vertigem? No seu significado particular, vertigem é um sintoma no qual a pessoa tem a sensação de uma tontura rotatória, podendo causar náuseas, vômitos, ilusão de movimento, etc. Já para o nosso filósofo “[...] a angústia é a vertigem da liberdade, que surge quando o espírito quer estabelecer a síntese, e a liberdade olha para baixo, para sua própria possibilidade, e então agarra a finitude para nela firmar-se. Nesta vertigem, a liberdade desfalece” (KIERKEGAARD, 2010, p. 67). É o homem que experimenta, pessoalmente, “a vertigem da liberdade” por meio de seus atos e de seus pecados.
Na angústia subjetiva, o indivíduo coloca a hipótese de sua salvação e, só quando a salvação for colocada como uma realidade, é que essa angústia será diminuída. Como bem expressa Le Blanc, em sua obra já citada:
A angústia subjetiva aumenta com a espiritualidade e pode-se avaliar a que oprimiu Cristo, quando diz a Judas: “O que tens a fazer, faze-o logo”, como mais forte do que a que o traspassou quando pronunciou as palavras terríveis que angustiavam Lutero: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”; não somente ela revela a humanidade de Cristo, mas ainda mostra como a existência é possibilidade e como a possibilidade é angústia. (LE BLANC, 2003, p. 83).
É interessante notarmos também, que Kierkegaard vai buscar entender o fato de que a sensualidade tornou-se pecaminosidade. Prestemos atenção na palavra ‘tornou-se’, pois mostra que, antes, a sensualidade não era vista como um pecado, mas a partir da liberdade dos primeiros indivíduos e com o conhecimento entre o bem e o mal, a sensualidade ficou vista como pecaminosa, pertencendo, assim, à história da geração.
O homem, posterior a Adão, experimenta a angústia de uma forma mais intensa e mais concreta.
O reflexo desta angústia é, melhor, vivenciada, na pessoa de Eva do que no próprio Adão, isto porque a mulher é mais sensual que o homem e, por ser sensual, a mulher tem mais angústia que o homem. “A mulher acumula mais angústia que o homem” (KIERKEGAARD, 2010, p. 73). Na narrativa bíblica da criação, Eva teve uma participação importante, uma vez que, ao fazer, por primeiro, a experiência do conhecimento do bem e do mal, ela se torna a sedutora para Adão. Isto não significa que o seu pecado seja maior que o dele, nem que angústia seja imperfeição; pelo contrário, se a angústia é grande, isso indica o grau de perfeição. A beleza estética e a capacidade de procriar são as provas de que a mulher é mais sensual que o homem. Ela tem um destino espiritual, bem como o homem. Nisto a sensualidade foi transformada em pecabilidade, por efeito do pecado
De modo resumido, podemos dizer que o conceito de angústia não é, apenas, visto em um aspecto negativo. Intimamente ligada ao pecado, há duas formas de ver a angústia: objetiva e subjetiva. Esta última pode ser considerada como a mais importante para a existência do indivíduo, pois leva-o a uma atitude positiva de conhecimento de si e do mundo. Portando, entendemos que este lugar da angústia esta, intrinsicamente, na condição humana, passando pela liberdade, emoções e decisões.
Considerações finais
Percorrendo os passos, definidos no objetivo deste trabalho, vimos que a angústia é vivenciada, de forma radical, na existência do indivíduo, ou seja, o indivíduo é angústia. Já na Introdução, percebe-se que a vida do filósofo foi percorrida, segundo as vivências angustiantes e melancólicas do próprio pai, pelo qual se deixou, totalmente, ser influenciado. É através dessa influência paterna que Kierkegaard se confronta com temas problemáticos e questionadores do seu tempo.
Prosseguindo nesses passos, no decorre do presente artigo apontou que a angústia, tal como Kierkegaard se propõe a discuti-la, está ligada a uma realidade existencial, movida pelas consequências da existência. Dito de outro modo, ela está por inteira na existência do indivíduo. De acordo com “O conceito de angústia”, sobressai-se como um ponto importante a ação do pecar, ou seja, o pecado. Vindo, primeiramente, através da existência de Adão e Eva, o pecado aparece, quando eles, sendo totalmente livres, e por causa desta liberdade, desejaram conhecer e saborear o conhecimento do bem e do mal. Como resultado, com esta possibilidade de escolha entre comer e não comer o fruto proibido pelo Criador, aceitam se lançar na árdua tarefa pela busca do conhecimento deste algo proibido, vivenciando a angústia de ter que escolher algo cujo conhecimento, ainda, não possuem.
Usando das palavras do próprio Kierkegaard:
O pecado surgiu na angústia, mas o pecado trouxe consigo a angústia. A realidade do pecado é, com efeito, uma realidade que não tem consistência. De um lado a continuidade do pecado é a possibilidade que angustia; pelo outro lado, a possibilidade de uma salvação é por sua vez um nada que o indivíduo tanto ama como teme, pois é sempre assim a relação da possibilidade para com a individualidade. Só no momento em que a salvação é realmente posta, só então é superada esta angústia (KIEKEGAARD, 2010, p.58).
É esse horizonte de busca que, diariamente, vivenciamos, na nossa existência, como seres de possibilidades de escolhas, ou seja, devemos escolher e, com frequência, não sabemos o que virá depois desta escolha. Assim, depois de abraçarem tal tarefa, surgem as consequências da escolha e é neste momento que também o indivíduo sente profundamente a angústia.
Ao término deste trabalho, lançamos um olhar, de modo parcial e limitado, sobre a complexidade do pensamento de Søren Aabye Kierkegaard. O que aqui tentamos desenvolver, foi iniciar os primeiros passos de uma jornada investigativa sobre o lugar existencial da angústia, no largo e inspirador horizonte descortinado pelo filósofo dinamarquês.
Referências bibliográficas
GARAVENTA, Roberto. SørenKierkegaard: uma fenomenologia da angústia. Revista dos Alunos do Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião, Juiz de Fora, V. I, n. 8, 2011, p.05-19.
KIERKEGAARD, Søren Aabye. O Conceito de Angústia: uma simples reflexão psicológico-demonstrativo direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário de Vigilius Haufniensis. Trad. Álvaro Luiz Montenegro Valls. Petrópolis: Vozes, 2010.
LE BLANC, Charles. Kierkegaard. São Paulo: Estação Liberdade, 2003
SANTOS, Marilza Barrios dos. A angústia e o desespero como fundamento ontológico da existência humana no pensamento de Sören Kierkegaard. 2010. 50 f. TCC (Graduação) - Curso de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Maringá, 2010.
[1] “Jean-Paul Sartre (1905-1980) nasceu em Paris, França, no dia 21 de junho de 1905. Filho de Jean Baptiste Marie Eymard Sartre, oficial da Marinha Francesa e de Anne-Marie Sartre. Ficou órfão de pai com apenas 15 meses de idade. Sua mãe muda-se para a casa dos avôs maternos. Teve uma boa formação literária. Ingressou aos 19 anos na Escola Normal Superior no curso de filosofia, onde conheceu Simone de Beauvoir, sua futura companheira. Sartre escreveu um romance, "A Lenda da Verdade", que não foi bem aceito pela crítica. Com o fracasso, enveredou-se pela filosofia a fim de estudar a fenomenologia do filósofo Husserl na Alemanha e as teorias existencialistas de Karl Jaspers e Martin Heidegger. Posteriormente, Sartre estudaria as obras de Kierkegaard. A partir desses estudos, Sartre elaborou sua própria ideia do existencialismo. Publicou livros importantes na França, romances, contos e ensaios como forma de disseminar seus preceitos existencialistas: "A Náusea", "A Imaginação", "O Muro", além da peça teatral "As Moscas", na qual usou da lenda grega para simbolizar o domínio alemão sobre a França na segunda guerra. Seu trabalho filosófico principal foi "O Ser e o Nada", publicado em 1946, onde tenta caracterizar as estruturas fundamentais da existência humana descrevendo o choque entre a consciência e o mundo objetivo, de forma a destacar a característica que definia o ser humano, sua liberdade. Sartre era um intelectual engajado com os movimentos sociais na França. Era filiado ao Partido Comunista francês e apoiou a invasão comunista na Hungria feita pelo ditador soviético Stálin, o que foi criticado posteriormente por intelectuais liberais, segundo esses, atitude contraditória com os ideais de liberdade que o filósofo pregava. Foi homenageado com o Prêmio Nobel de Literatura, mas se recusou a recebê-lo Jean-Paul Charles Aymard Sartre morreu em Paris, França, no dia 15 de abril de 1980. Seus restos mortais encontram-se no Cemitério de Montparnasse, onde também está sepultada sua companheira Simone de Beauvoir”. Disponível no site: http://www.e-biografias.net/jean_paul_sartre
[2] Não foi à toa que Kierkegaard futuramente sacrificara-se em vista desta mesma perspectiva seu objetivo era ser como o cavaleiro da fé (Abraão), que tudo perdeu para tudo receber de Deus. Sendo ele também um novo Isaac, já que era o filho da velhice, assume-se como sacrifício vivo, sinal também de síntese, parecendo existir dois indivíduos (Abraão e Isaac) que se posicionam numa relação de fé, esta, que expressa comprometimento e sacrifício pelo que se crê.
[3] A expressão “o pecado hereditários” é o mesmo que ‘o pecado original’ que é proferido muitas vezes entre os fiéis e também é com esta primeira expressão que irei usar durante o trabalho.
[4] Encontram-se na filosofia de Kierkegaard três estágios: o estético, o ético e o religioso. São diferentes maneiras de se viver a vida. Em linhas gerais, podemos dizer que o estágio estético está relacionado com o instante. O indivíduo que possui a existência estética se preocupa com o imediato. Já o indivíduo que está no estágio ético se preocupa com os deveres, com a moral. Por outro lado, a existência religiosa tem como ponto principal e referente a relação absoluta do indivíduo com Deus.
[5] Também, é neste contexto que Kierkegaard desenvolve sua crítica à moralidade hegeliana e kantiana
[6] Pseudônimo que Kierkegaard adota nesta obra.
[7] Vemos a figura de Adão no ato livre de comer do fruto da arvore proibida por Deus.