Composições de Clara Schumann
em 14 de Junho de 2021
O ensino do piano é estruturado em níveis de forma similar aos níveis escolares da educação básica, mas os conservatórios têm uma liberdade maior na hora de decidir o repertório e requisitos de cada nível. Sendo assim, ao analisarmos os programas de diferentes conservatórios, vamos encontrar muitos pontos em comum e bastante divergência. Como professor de piano particular, ao menos que o aluno decida seguir um programa específico, geralmente por desejo de prestar os exames destes currículos, eu gosto de emprestar as ideias que eu julgo válidas de alguns currículos, mas em meio a tantas opções sempre acabo me perguntando se escolhi a opção adequada ao aluno. De maneira geral, os programas tem 1 ou 2 níveis de Preparatório (Pré), seguidos de 8 a 10 níveis, estruturados de forma progressiva e alguns oferecem níveis ou créditos no ensino superior. No Brasil, algumas instituições oferecem cursos de graduação ou de nível técnico, mas o foco do post é no conteúdo das aulas de piano. A ideia é fazer uma reflexão sobre as metodologias de diferentes instituições e sugerir algumas ideias do que tem funcionado pra mim com meus alunos.
Os níveis dentro do ensino servem como referência e estruturação do conteúdo, para fins didáticos e de exame. Vamos ver no decorrer do post que as instituições costumam divergir sobre o conteúdo de cada nível e, muitas vezes, sobre o nível de uma peça em específico. Os currículos costumam incluir também, além da lista de repertório e requisitos técnicos, o conteúdo de teoria da música, percepção e história da música.
Como professor, é importante ter em mente um esboço de uma trajetória para o aluno. É importante que todos experimentem compositores, períodos e estilos variados e é verdade que alguns compositores são “pilares” do repertório, mas nada impede de explorar outros. Por exemplo, a obra de Bach é praticamente a base do repertório barroco que tocamos e acompanha o pianista em praticamente toda sua trajetória, mas a gente vai encontrar alunos que não gostam muito das peças. E alunos que progridem mais rápido, ou devagar então eu acho importante estar preparado para cada degrau do processo, mas não segurar o crescimento de ninguém.
Por experiência, já tive alunos que não se deram bem aos primeiros minuetos do livro de Anna Magdalena, por exemplo, mas gostaram muito dos pequenos prelúdios quando evoluíram. Minha solução na época foi misturar obras de outros compositores do período barroco como Rameau e Telemann para dar uma diluída, o mesmo ocorre com outros compositores. Alunos que não gostam de Mozart, Beethoven, Schumann, Chopin, etc. É aí que acaba sendo importante ter opções na manga. O legal é escolhar as peças mais importantes do compositor para aquele momento e explicar ao aluno a importância delas, e tentar buscar outras peças semelhantes ou com o mesmo objetivo técnico musical proposto. Com o Álbum para a juventude de Schumann, por exemplo, se o aluno gosta das peças e do compositor ele não vai se opor em tocar várias, mas para os que não são tão fãs do compositor, vale olhar os álbuns para a juventude de outros compositores como Gurlitt, Gretchaninoff, Chaminade ou Tchaikovsky, por exemplo, para trazer mais variedade. E ir cultivando a apreciação pelos grandes compositores aos poucos.
Tudo o que eu venho escrevendo até aqui só faz sentido quando aplicado ao objetivo e individualidade de cada aluno. De forma geral, minha expectativa com os alunos é que eles consigam estudar entre 2 e 5 horas de piano por semana. Eu recomendo que tentem estudar de 30 minutos a 1 hora, em 3 ou 4 dias diferentes da semana. Isso porque a maioria dos alunos que eu trabalho não têm pretensões profissionais com a música e já estão ocupados com outros afazeres. E principalmente porque em aulas particulares eu tenho mais liberdade com o conteúdo em geral sem prazos, datas, provas, e etc.
Mesmo os alunos que levam o piano como um hobby sério, nem sempre têm disponibilidade na agenda, ou espaço mental, para praticar mais que 5 horas semanais. Alunos em preparação para provas, audições e exame é outra história, o ideal seria estudar de 1 a 2 horas 5 vezes na semana e talvez aumentar para 1 ou 2 horas todos os dias nas últimas 6 semanas que antecedem a prova. É verdade que algumas provas, como os vestibulares para curso de graduação em música exigem um repertório bastante avançado, e alguns alunos ingressam em uma maratona à moda Juscelino Kubitschek (50 anos em 5) e precisam correr atrás de uma base que não fizeram antes para dar conta do repertório, mas acaba sendo um caso mais específico, e bem exaustivo diga-se de passagem, eu falo por experiência mesmo.
Eu tenho experiência de preparar alunos para os exames dos programas do ABRSM (The Associated Board of the Royal Schools of Music), RCM (The Royal Conservatory of Music) e AMEB (Australian Music Examinations Board). Os programas do ABRSM e RCM estão disponíveis online gratuitamente, o AMEB não disponibiliza o currículo no site deles. Na internet, há inúmeros programas de instituições do mundo inteiro, desde que comecei a preparar alunos para os exames passei a me apoiar neles com os demais alunos porque estão em constante atualização, sempre incluindo obras e compositores novo nos mais variados estilos, e muitas vezes vêm a calhar. Então vamos falar um pouco sobre estes currículos.
Syllabus 2023-2024 completo aqui
O ABRSM ou The Associated Board of the Royal Schools of Music é uma associação de exames de música fundado em 1889 na Inglaterra. Atualmente eles atendem mais de 90 países e com a possibilidade de realizar os exames à distância têm maior abrangência ainda.
O programa é dividido em: inicial, níveis de 1 a 8 e níveis avançados apenas presenciais e agendados: DipABRSM, LRSM e FRSM.
O Syllabus é atualizado a cada 2 anos e oferece 3 listas de repertório:
No site oficial é possível comprar os livros vendidos por nível, infelizmente o preço é salgado por serem importados e seguindo no syllabus eles já incluem outros livros que incluem as peças selecionadas. Por exemplo, no syllabus deste ano (2023) a peça Von fremden Ländern und Menschen das Cenas Infantis op. 15 de Schumann faz parte da lista B do nível 5 (Grade 5), e a peça pode ser encontrada em várias outras edições e gratuitamente em muitas edições no IMSLP. E as peças que são encontradas apenas nas edições deles são vendidas separadamente e quase todas digitalmente.
O RCM ou The Royal Conservatory of Music é uma instituição canadense fundada em 1886 que também oferece exames. Ela atende apenas Canadá, Estados Unidos e Reino Unido mas abriu provas remotas recentemente.
O programa é dividido em: preparatório A e B, níveis de 1 a 10 e níveis avançados: ARCT, e LRCM
O Syllabus é organizado em 3 listas, o conteúdo das listas depende de cada nível, não são todos iguais:
O RCM também vende os livros individualmente por nível, mas os estudos são vendidos separadamente. A coleção deles chama “Celebration Series” e não é fácil de comprar daqui do Brasil e o site oficial não entrega no Brasil, e esta coleção é ótima para os alunos e eu indico a compra sem ressalvas principalmente os livros de repertório (Piano Repertoire) e o livro de estudos (Piano Etudes). Uma loja que vende e entrega no Brasil é a ClearNote. E como fica salgado para o professor, porque a gente não compra apenas um livro, acaba tendo que comprar vários, é só observar o syllabus que você vai ver que as peças também são parte de outras coleções ou volumes. Por exemplo, no nível 4 (Level 4), um dos estudos incluídos é Ballade op. 100 no 15 de Burgmuller, que já faz parte do livro do op. 100 completo, mos níveis 7 e 8 as inveções de Bach começam a aparecer e é provável que você já tenha a coleção completa, etc.
Eu queria sugerir também dois livros muito úteis e guias de repertório.
1. Pianist’s Guide to Standard Teaching and Performance Literature, Jane Mcgrawth, 1995
O livro classifica as obras por nível de dificuldade, os comentários são bem curtos com poucas palavras. Foca muito mais no repertório iniciante e intermediário/início do avançado.
2. Guide to the Pianist’s Repertoire (Guia para o repertório do pianista), Maurice Hinson e Wesley Roberts, 4ª edição, 2013
O livro, como o título sugere, é um guia de obras e compositores do repertório pianístico com comentários sobre as peças, um pouco de história e informações sobre o compositor. Os comentários são curtos geralmente de 2 a 3 frases.
3. Piano Repertoire Guide: Intermediate and Advanced Literature (Guia de repertório para piano: literatura intermediária e avançada), Cathy Albergo & Reid Alexander, 5ª edição, 2011
O livro foca mais no repertório intermediário e avançado, é organizado por compositor e por nível de dificuldade.
Outra forma de organizar o repertório é classificando as peças em três níveis: iniciante, intermediário e avançado.
I. Iniciante: Do preparatório ao nível 2. A grosso modo vai desde a iniciação ao instrumento até o primeiro contato com o livro de Anna Magdalena Bach. O termo “elementary” é bastante comum na literatura, a literatura também divide o nível entre iniciante e iniciante tardio e é comum que o repertório do “iniciante tardio” e do início do intermediário se sobreponham.
II. Intermediário: Do nível 3 ao 5 do ABRSM e do nível 3 ao 7 do RCM. A literatura divide o nível em intermediário iniciante, intermediário e intermediário tardio. Um dos parâmetros que eu utilizo pessoalmente como “entrada” no nível intermediário é a Sonatina op. 36 n° 1 de Muzio Clementi e a transição para o avançado quando o aluno está tocando Invenções à duas vozes de Bach e a Sonata em dó maior K.545 de Mozart.
III. Avançado – Do nível 6 do ABRSM ou 8 do RCM em diante. A literatura divide o repertório em início do avançado e avançado. Por experiência própria, como aluno e professor, a transição entre intermediário e avançado é a mais complexa, já que, o repertório avançado é muito vasto, mas é o nível onde o aluno já tem mais autonomia e consegue tocar muitas das grandes obras do repertório o que torna o processo bem recompensador.
Falei, falei, mas e agora? Bom, o mais importante como professor, como falei antes, é ter um esboço de uma trajetória a ser seguida, observar e entender as dificuldades técnicas e musicais de cada aluno e ir alinhando o repertório de acordo. Eu tomo os arpejos como exemplo, antes de iniciar uma peça com muitos arpejos é importante trabalhar um pouco o arpejo como técnica pura e depois tentar alinhar um estudo de arpejos com o repertório. Claro que não é para terminar com 3 ou 4 peças baseadas em arpejo, mas ter em mente a dificuldade a ser superada. Quando digo “tendo em mente”, quero dizer manter notas dos alunos porque não há memória suficiente para lembrar de tudo. Um aluno que ainda está iniciando com as oitavas, pode começar a fazer 1 ou 2 escalas em oitavas por mês, alinhando com um estudo que trabalhe oitavas, etc.
No repertório, com a experiência, fica cada vez mais fácil de “julgar” o nível de uma peça e na dúvida ficam os recursos acima. Uma coisa que eu gosto de fazer é “eleger” os “pilares” de cada nível, e mesmo quando os currículos classificam o mesmo prelúdio de Bach em níveis diferentes, eles costumam acordar quanto às outras obras de outros períodos e compositores que são combinadas com o mesmo prelúdio. Por exemplo, as obras mais famosas do livro de Anna Magdalena, conseguem acompanhar as sonatinas anh de Beethoven, e as sonatinas 1 e 2 op. 36 de Clementi, e podem ser combinadas com peças do Álbum para a juventude de Schumann e/ou Tchaikovsky, e assim por diante. Outro recurso que ajuda bastante no dia a dia é ter algumas coleções de literatura do piano (piano literature), as famosas Antologias em mão, onde os repertórios também costumam estar organizados por nível.
Obrigado por ler até aqui! Sugestões e comentários são sempre bem vindos.
Post original em: https://danielpadovanpiano.wordpress.com/2023/01/03/niveis-no-estudo-do-piano/
créditos da capa: https://unsplash.com/photos/yvEVMyTzMO4