A CRISE FINANCEIRA SEM MISTÉRIOS
Por: Diego D.
05 de Março de 2016

A CRISE FINANCEIRA SEM MISTÉRIOS

Economia Estatística

Tirando a roupa (financeira)
As pessoas imaginam profundas articulações onde, em geral, há mecanismos bastante simples.
Nada como alguns exemplos para ver como funciona. Há poucos anos estourou o desastre da Enron,
uma das maiores e mais conceituadas multinacionais americanas. Foi uma crise financeira e um dos
principais mecanismos de geração fraudulenta de recursos fictícios, foi um charme de simplicidade. Manda-se
um laranja qualquer abrir uma empresa laranja num paraíso fiscal como Belize. Esta empresa reconhece por
documento uma dívida de, por exemplo, 100 milhões de dólares. Esta dívida entra na contabilidade da Enron
como “ativo”, e melhora a imagem financeira da empresa. Os balanços publicados ficam mais positivos, o que
eleva a confiança dos compradores de ações. As ações sobem, o que valoriza a empresa, que passa a valer
os cem milhões suplementares que dizia ter.
Os executivos da Enron acharam o processo muito interessante. O setor de produção (que produzia
efetivamente coisas úteis) foi colocado no seu devido lugar, e os magos da finança se lançaram no filão que
apresentava a vantagem de ser menos trabalhoso e mais lucrativo. No momento da falência, a Enron tinha
1.600 empresas fictícias na sua contabilidade. A empresa de auditoria Arthur Andersen não percebeu. As
empresas de avaliação de risco não perceberam. A primeira tinha a Enron como cliente de consultoria.
As segundas são pagas pelas empresas que avaliam.
Partimos deste exemplo da Enron porque é simples, representa um mecanismo de fraude honesto e
transparente. Não viu quem não quis. E também para marcar o que é uma cultura da área financeira, onde
vale rigorosamente tudo, conquanto não sejamos pegos. Não é o reino dos inteligentes (tanto assim que
quebram), mas dos espertos. E os que buscam produzir bens e serviços realmente úteis são levados de
roldão, em parte culpados porque toleraram idiotas disfarçados em magos de finanças e marketing. Qualquer
semelhança com empresas nacionais que se lançaram em aventuras especulativas é mera coincidência.
O estopim da crise financeira de 2008 foi o mercado imobiliário norte-americano. Abriu-se crédito para
compra de imóveis por parte de pessoas qualificadas pelos profissionais do mercado de Ninjas (No Income,
No Jobs, no Savings)1. Empurra-se uma casa de 300 mil dólares para uma pessoa, digamos assim, pouco
capitalizada. Não tem problema, diz o corretor: as casas estão se valorizando, em um ano a sua casa valerá
380 mil, o que representa um ganho seu de 80 mil, que o senhor poderá usar para saldar uma parte dos
atrasados e refinanciar o resto. O corretor repassa este contrato – simpaticamente qualificado de “sub-prime”,
pois não é totalmente de primeira linha, é apenas sub-primeira linha – para um banco, e os dois racham a
perspectiva suculenta dos 80 mil dólares que serão ganhos e pagos sob forma de reembolso e juros. O
banco, ao ver o volume de “sup-prime” na sua carteira, decide repassar uma parte do que internamente
qualifica de “junk” (aproximadamente lixo), para quem irá “securitizar” a operação, ou seja, assegurar certas
garantias em caso de inadimplência total, em troca evidentemente de uma taxa. Mais um pequeno ganho
sobre os futuros 80 mil, que evidentemente ainda são hipotéticos. Hipotéticos mas prováveis, pois a massa de
crédito jogada no mercado imobiliário dinamiza as compras (de imóveis), e a tendência é os preços (dos
imóveis) subirem.
As empresas financeiras que juntam desta forma uma grande massa de “junk” assinados pelos
chamados “ninjas”, começam a ficar preocupadas, e empurram os papéis mais adiante. No caso, o ideal é um
poupador sueco, por exemplo, a quem uma agência local oferece um “ótimo negócio” para a sua
aposentadoria, pois é um “sup-prime”, ou seja, um tanto arriscado, mas que paga bons juros. Para tornar o
negócio mais apetitoso, o lixo foi ele mesmo dividido em AAA, BBB e assim por diante, permitindo ao
poupador, ou a algum fundo de aposentadoria menos cauteloso, adquirir lixo qualificado. O nome do lixo
passa a ser designado como SIV, ou Structured Investment Vehicle, o que é bastante mais respeitável. Os
papéis vão assim se espalhando e enquanto o valor dos imóveis nos EUA sobe, formando a chamada
“bolha”, o sistema funciona, permitindo o seu alastramento, pois um vizinho conta a outro quanto a sua
aposentadoria já valorizou.
Para entender a crise atual, não muito diferente no seu rumo geral do caso da Enron, basta fazer o
caminho inverso. Frente a um excesso de pessoas sem recurso algum para pagar os compromissos
assumidos, as agências bancárias nos EUA são levadas a executar a hipoteca, ou seja, apropriam-se das
casas. Um banco não vê muita utilidade em acumular casas, a não ser para vendê-las e recuperar dinheiro.
Com numerosas agências bancárias colocando casas à venda, os preços começam a baixar fortemente. Com
isso, o Ninja que esperava ganhar os 80 mil para ir financiando a sua compra irresponsável, vê que a sua
casa não apenas não valorizou, mas perdeu valor. O mercado de imóveis fica saturado, os preços caem mais
ainda, pois cada agência ou particular procura vender rapidamente antes que os preços caiam mais ainda. A
1 Sem renda, sem emprego, sem poupança.
bolha estourou. O sueco que foi o último elo e que ficou com os papéis – agora já qualificados de “papéis
tóxicos” – é informado pelo gerente da sua conta que lamentavelmente o seu fundo de aposentadoria tornouse
muito pequeno. “O que se pode fazer, o senhor sabe, o mercado é sempre um risco”. O sueco perde a
aposentadoria, o Ninja volta para a rua, alguém tinha de perder. Este alguém, naturalmente, não seria o
intermediário financeiro. Os fundos de pensão são o alvo predileto, como o foram no caso da Enron.
Mas onde a agência bancária encontrou tanto dinheiro para emprestar de forma irresponsável?
Porque afinal tinha de entregar ao Ninja um cheque de 300 mil para efetuar a compra. O mecanismo, aqui
também, é rigorosamente simples. Ao Ninja não se entrega dinheiro, mas um cheque. Este cheque vai para a
mão de quem vendeu a casa, e será depositado no mesmo banco ou em outro banco. No primeiro caso,
voltou para casa, e o banco dará conselho ao novo depositante sobre como aplicar o valor do cheque na
própria agência. No segundo caso, como diversos bancos emitem cheques de forma razoavelmente
equilibrada, o mecanismo de compensação à noite permite que nas trocas todos fiquem mais ou menos na
mesma situação. O banco, portanto, precisa apenas de um pouco de dinheiro para cobrir desequilíbrios
momentâneos. A relação entre o dinheiro que empresta – na prática o cheque que emite corresponde a uma
emissão monetária – e o dinheiro que precisa ter em caixa para não ficar “descoberto” chama-se
alavancagem.
A alavancagem, descoberta ou pelo menos generalizada já na renascença pelos banqueiros de
Veneza, é uma maravilha. Permite ao banco emprestar dinheiro que não tem. Em acordos internacionais
(acordos de cavalheiros, ninguém terá a má educação de verificar) no quadro do BIS (Bank for International
Settlements)2 de Basiléia, na Suíça, recomenda-se por exemplo que os bancos não emprestem mais de
nove vezes o que têm em caixa, e que mantenham um mínimo de coerência entre os prazos de
empréstimos e os prazos de restituições, para não ficarem “descobertos” no curto prazo, mesmo que tenham
dinheiro a receber a longo prazo. Para se ter uma idéia da importância das recomendações de Basiléia, basta
dizer que os bancos americanos que quebraram tinham uma alavancagem da ordem de 1 para 403.
A vantagem de se emprestar dinheiro que não se tem é muito grande. Por exemplo, a pessoa que
aplica o seu dinheiro numa agência verá o seu dinheiro render cerca de 10% ao ano. O banco tem de creditar
estes 10% na conta do aplicador. Se emprestar este dinheiro para alguém a 20%, por exemplo, terá de
descontar dos seus ganhos os 10% da aplicação. Mas quando empresta dinheiro que não tem, não precisa
pagar nada, é lucro líquido. A alavancagem torna-se, portanto, muito atraente. E a tentação de exagerar na
diferença entre o que tem no caixa e o que empresta torna-se muito grande. Sobretudo quando vê que outros
bancos tampouco são cautelosos, e estão ganhando cada vez mais dinheiro. É uma corrida para ver quem
agarra o cliente primeiro, pouco importa o risco. E os ganhos são tão estupendos…
A ficção da regulação
A “bolha” imobiliária vinha sendo comentada há pelo menos três anos. Alan Greenspan (ex-presidente
do Federal Reserve, Banco Central, americano) previa um esvaziamento suave da bolha, e não o que
finalmente aconteceu: uma forte explosão dela.
Em dezembro de 2007, o FMI lança um grito de preocupação com relação à regulação financeira
mundial, claramente sugerindo que ninguém está ninguém está regulando nada. Na época já estimava que o
“lixo tóxico” financeiro estava corrompendo o mercado financeiro americano de 57 trilhões de dólares. A culpa
recai, segundo o Fundo, sobre a globalização do sistema. O uso de paraísos fiscais está igualmente bem
mapeado. Este e outros canais eram utilizados, segundo o Fundo, como “caixa dois”. Atribuir a crise ao
“pânico” e outras manifestações irracionais não tem muito sentido. O pânico existe, pois as pessoas não
gostam de perder dinheiro. Mas tem a sua origem no comportamento fraudulento quando não criminoso das
principais instituições financeiras. E sobretudo na ausência de qualquer vontade ou capacidade reguladora do
FED e do governo norte-americano.
No conjunto, o que aconteceu com a globalização financeira é que os papéis circulam no planeta todo,
enquanto os instrumentos de regulação, os bancos centrais nacionais, estão fragmentados em cerca de 190
nações. Na prática, ninguém está encarregado de regular coisa alguma. E se algum país decide controlar os
capitais, estes fugirão para lugares mais hospitaleiros, em processo muito parecido com os mecanismos de
guerra fiscal entre municípios. Nas análises das Nações Unidas, isto é chamado de corrida para o fundo, de
quem reduz mais as suas próprias capacidades de controle.
2 Seria o Banco Central dos Bancos Centrais de cada país.
3 A Lehman, por exemplo, com alavancagem de 31 em 2007, entrou numa corrida para reduzi-la e tentar evitar a quebra
que acabou ocorrendo. (Business Week, july 28, 2008, p. 27). A revista explica um mecanismo simples: se a instituição
emprestou 150 bilhões sobre um capital de 10 bilhões, portanto com uma alavancagem de 15, uma redução de 3 bilhões
de capital próprio a obrigaria a reduzir a sua exposição em 45 bilhões (3 bilhões x 15) para manter a mesma
alavancagem. Haja “liquidez”. No momento da quebra a Lehman tinha bilhões em cerca de um milhão de acordos de
“derivativos” com cerca de 8 mil empresas, deixando os novos administradores bastante desorientados. (Business Week,
October 20, 2008, p. 34).
Lembremos aqui que os gigantes globalizados da finança constituem um grupo pequeno e seleto, 66
grupos apenas, que gerem 75% das movimentações especulativas planetárias que eram da ordem de 2,1
trilhões de dólares por dia na véspera do agravamento da crise em 2008. É fácil imaginar o poder político que
corresponde a esta capacidade de irrigar com dinheiro ou desequilibrar com fugas qualquer economia.
Haveria ainda de se considerar o papel regulador das agências avaliadoras de risco, como a Moody's,
a Standard & Poor (S&P) e a Fitch, que a despeito de avaliar as empresas e mercados, são pagas pelos que
emitem títulos, e não por investidores que utilizarão as avaliações de risco, com evidentes conflitos de
interesse. O resultado é que “a mais poderosa força nos mercados de capital está desprovida de qualquer
regulação significativa”.
A pá de cal na capacidade de regulação veio no final dos anos 1990 quando se liquidou a separação
entre os bancos comerciais tradicionais, que tipicamente recebiam depósitos de correntistas e faziam
empréstimos locais, e os investidores institucionais. Todo mundo passou a fazer o que quisesse, os
intermediários financeiros passaram a ser “supermercados” de produtos financeiros e inclusive grandes
empresas industriais e comerciais viraram especuladores.
Nesta discrepância entre finanças globais e regulação nacional, jogam um papel complementar
importante os paraísos fiscais, cerca de 70 “nações”, ilhas da fantasia onde frequentemente existem mais
empresas registradas do que habitantes, e onde não se pagam impostos nem exigem relatórios de atividades.
Estes paraísos exercem hoje o papel que no século 18 desempenhavam algumas ilhas do Caribe que
constituíam abrigos permanentes de piratas, onde os produtos da ilegalidade podiam ser estocados, trocados
e comercializados. Mudou apenas o tipo de produto, encobrindo não só caixa dois, como evasão fiscal,
tráfego de armas e lavagem de dinheiro. Não haverá um mínimo de ordem financeira mundial enquanto
subsistirem estes off-shores de ilegalidade.
Circo, cassino, ciranda financeira, estes são os termos com os quais já há tempos especialistas têm
designado o carnaval econômico que oportunistas dos mais variados tipos desenvolvem com dinheiro que
não é deles – e trata de poupanças da população ou de emissão de dinheiro com autorização pública – e que
acaba quebrando não os próprios intermediários, mas pessoas, empresas ou países que produzem, poupam
e investem.
O papel dos Estados Unidos
Os Estados Unidos têm uma dívida pública de 10,5 trilhões de dólares. Como ninguém consegue
imaginar o que pode representar tal soma, vale a pena lembrar que o PIB mundial é da ordem de 55 trilhões
de dólares. Ou seja, a dívida pública norte-americana representa cerca de 20% do PIB mundial. É um país
que vive acima de suas posses.
O endividamento como nação se reflete na situação das famílias. O americano adulto médio tem oito
cartões de crédito, e gasta um terço da sua renda com o pagamento de dívidas. Apresentado no momento da
concessão, o crédito aparece como um instrumento de aumento da capacidade de compra da família
(antecipação de consumo, e não aumento do consumo). No entanto, cada dívida significa uma futura conta a
se pagar e acrescida de juros. Quando chega a hora de pagar: mais dívida e mais consumo... Até onde irão
as famílias norte-americanas no faz-de-conta de prosperidade?
Os dois endividamentos, público e privado, tornam o efeito desequilibrador que os Estados Unidos
geram no planeta algo poderoso, acumulados durante as décadas de farra neoliberal e hoje gravados nas
estruturas produtivas americanas e mundiais. Os ajustes terão de ser profundos.
Analisando o mercado de ações dos Estados Unidos em 1999, o valor de ações novas vendidas no
mercado foi de 106 bilhões de dólares, enquanto o valor das ações negociado atingiu um gigantesco 20,4
trilhões. Podemos concluir que o mercado é 1% produtivo e 99% especulativo.
A compreensão deste “pano de fundo” é importante, pois não se trata apenas de um sistema bom que
entrou em crise por movimentos conjunturais: a financeirização dos processos econômicos vem há décadas
se alimentando da apropriação dos ganhos da produtividade que a revolução tecnológica em curso permite,
de forma radicalmente desequilibrada.
Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de
Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e consultor de diversas agências das Nações Unidas. É
autor de “Democracia Econômica” (Vozes), “O que é poder local” (Brasiliense) e de numerosos estudos sobre
desenvolvimento. Os seus trabalhos estão disponíveis na íntegra, em regime copyleft, em http://dowbor.org.

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