Design de palavras: A Linguagem como Artefato
Por: Flavio F.
19 de Abril de 2016

Design de palavras: A Linguagem como Artefato

Design
O homem produz artefatos para mediar sua relação com o mundo, a isso chamamos design. O projeto, o desenho, o uso. Será que a própria linguagem não seria também um artefato midiático?
 
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A história do design é a história da produção de artefatos. Desde que somos humanos -- e isso faz bastante tempo --, produzimos objetos que se interpõe entre nós e o mundo. E é por causa da primeira pedra que um ancestral nosso jogou num roedor no meio da floresta que hoje somos capazes de deduzir verdades cosmológicas por meio de números e, em última instância, alongar nossos sentidos bem além de Plutão.
 
Por artefato vamos qualquer coisa criada pelo homem que tenha por objetivo facilitar uma tarefa. Essa palavra vem do latim ars + factus, ou seja, arte + feito/produzido. Mas veja bem, pros romanos havia dois tipos de artes, as liberales e as serviles. As primeiras eram os trabalhos intelectuais, como ciência, filosofia, retórica; as últimas eram os ofícios, as produções manuais que resultam em objetos úteis, como pintura, olaria, tapeçaria e além. Aqui parece que eu dou um tiro no pé da minha tese ao invocar a etimologia de artefato, pois junto com ela vem a visão de mundo romana. Mas o que cabe compreender é a reconciliação dos aparentemente opostos: o exercício intelectual & a produção técnica manual.
 
Para o designer importam os dois lados dessa moeda. No entanto a própria moeda parece ser algo que não existe. Não é verdade, é que passamos muito tempo olhando na direção errada. O elo perdido está naquela pedra que o primeiro hominídeo percebeu que servia para arremessar e matar. Toda a nossa civilização é fruto desse primeiro gesto de morte. Parece até que a história de Caim e Abel ganha um novo sentido...
 

Flusser e a informação do informe

 
O filósofo Vilém Flusser, que pensou profundamente sobre o design e a forma como o homem habita o mundo, nos deu o caminho do da reconciliação do artefato com as ideias. E não o fez da maneira platônica. O que define o homem para ele é a relação que o humano estabelece com os artefatos que produz. Flusser nota que os homens pré-históricos que encontramos geralmente são sepultados rodeados por seus pertences, potes, armas, utensílios diversos. Isso faz parecer que as coisas humanas resguardam o homem do contato com o mundo.
 
Os outros seres vivos, desde a mais simples ameba, plantinha ou os animais mais complexos, todos eles lidam com o mundo diretamente com o próprio corpo. É com garras e dentes que os carnívoros fazem carnificina. É com chifres e músculos que os herbívoros garantem sua segurança. Tudo que um animal precisa para garantir sua própria sobrevivência está em seu próprio corpo. O homem está nu. (A cosmogonia grega, aliás, tem uma ótima história pra isso.) Todas as outras espécies animais que existem contam com a seleção natural para a adequação de seus corpos aos ambientes que habitam.
 
O homem, ao contrário, não modifica seu próprio corpo, ele cria artefatos. O homem usa seu corpo para modificar os elementos da natureza para que eles respondam de uma maneira mais eficaz aos propósitos de interação que deseja. Assim é feita a flecha, cujo formato é pensado para cortar o ar sem que este forme redemoinhos atrás, mas passe por ela em filetes retos, o que tanto garante que a flecha gere menos atrito e perca menos velocidade quanto aumenta a sustentação dela no ar, em linha reta. As plumas colocadas em algumas flechas não são adornos, elas a fazem girar em torno do próprio eixo durante o vôo, fazendo-a ganhar velocidade e estabilidade, o que aumenta a precisão do tiro, pois transforma os filetes de ar em um cone entorno da flecha. A composição do arco garante a potência do disparo, variando a pressão do tiro, e sua letabilidade. Podemos ver na flecha o protótipo do míssil. (Muito embora este não sirva para caçar, pois os "alimentos" cozinham demais além do ponto.)
 
A flecha é um objeto de design. É um artefato que projeta no mundo uma interação do homem com ele. A produção da flecha é antes um trabalho de projeção psíquica, ou melhor, de ficção. O homem usa sua memória do mundo vivido para reelaborar as experiências. Então, na flecha está a lança, na lança está um galho de árvore. Em algum momento, alguém jogou um galho de árvore e percebeu como ele se comportava no ar e acertava um alvo. As ficções mentais dessa lembrança foram as responsáveis pela lança e depois pela flecha.
 
Os artefatos, como diz Flusser, são a in-formação do informe. Pense sobre o que significam os elementos da palavra in-form-ação: é por forma em algo. No caso ideias. Ficções.
 

Não-mundo

 
As consequências desse processo de utilização de coisas para lidarem com o mundo são a abstração constante de toda a experiência. Gradativamente fomos deixando de lidar com a carne no mundo. Gradativamente fomos otimizando as experiências. Com isso aprendemos rápido, como se tivéssemos vivido. Como seria possível pensar em viver uma experiência de realidade sem de fato ter a carne sofrendo estímulos elétricos? Como poderia ser possível prever a existência de buracos-negros antes mesmo de percebê-los pelos sentidos?
 
A linguagem é o último artefato do homem. O artefato que possibilitou um impulso tecnológico nunca antes visto. A linguagem é o resultado complexo das ficções internas que nossos ancestrais produziram. Suas ficções produziram ideias que se relacionavam com o mundo. A necessidade de compartilhar esse conhecimento produziu a linguagem, esse sistema complexos de ideias e signos. Pense bem, o significado de um substantivo não é a coisa no mundo. Quando digo "copo" nenhum copo sai de minha boca, a palavra e a coisa não são o mesmo. Quando eu digo copo eu faço referência a uma ideia geral desse utensílio que, uma vez que conhecemos, podemos reconhecer em qualquer coisa que vemos diante de nós o potencial de uso como um copo. Nós vivemos nas ideias que temos do mundo, e à maneira como organizamos essa ideia de mundo chamamos linguagem.
 
A história do homem é a história da criação de artefatos mediadores da realidade. A linguagem então é o último e mais complexo. Ela trata de remodelar e mediar totalmente a experiência do real, fazendo-nos viver dentro da linguagem e não mais no mundo. A primeira frase de sintaxe organizada foi a viajem só de ida para fora do mundo. Se a dimensão ontológica do homem pode ser encarada através das tecnologias de mediação da realidade, sua dimensão social, de fato, precisa ser encarada através da produção de bens, o que enfim foi "o motor da história", o que foi responsável por sua dimensão ontológica. (Mas isso é conversa pra depois, trazendo Marx pro jogo.)
 
A linguagem, enfim, também é um artefato. E portanto um objeto de design. Ela modifica a interação do homem com o mundo, e mesmo projeta intenções e modificações do mundo e dos homens mesmos que a criam. A linguagem, como uma flecha, também pode ser usada para matar, subjugar. Ela é continuamente, através dos milênios, aprimorada e refilada para traduzir e inventar novas interações mundanas.
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Flavio F.
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Graduação: Letras Português/literaturas (UFF - Universidade Federal Fluminense)
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