Baterias universitárias e educação musical
Por: Levi P.
27 de Março de 2020

Baterias universitárias e educação musical

um ensaio de como os vaga-lumes resistem.

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Resumo: Este pequeno ensaio se propõe a debater a importância das baterias universitárias no âmbito da educação musical. Trata-se de chamar a atenção para os processos excludentes que se operam em relação as formas de produção musical nos processos de ensino informal e sua importância na formação musical dos seres humanos. A metáfora do vaga-lume, aqui emprestada do cineasta Pasolini, refere-se às formas de resistência que a formação das baterias universitárias oferecem no interior de instituições formais enrigecidas e também da importância da música e do aprendizado musical no processo de ensino/aprendizagem destes ritmistas. 

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Parece que os vaga-lumes, tristemente extintos, segundo Pasolini, ainda resistem. Na estrutura enrijecida das instituições universitárias, diante dos discursos falidos da educação contemporânea (e também diante dos falidos discursos sobre a crise da educação), os espaços não formais brilham em seus lampejos intermitentes, fantasmagóricos; nos lembra um pouco a brasa esverdeada dos vaga-lumes que lutam contra um céu não mais escuro, mas agora luminoso em excesso: parece difícil os vaga-lumes sobreviverem ao céu circundado de estrelas que encabeça o sujeito contemporâneo de Agamben[1]; ou ainda, no céu iluminado pelos projetores de guerra na qual Pasolini viu com melancolia os vaga-lumes desaparecerem[2].

A metáfora dos vaga-lumes assume uma outra poética em Pasolini; o céu iluminado de constelações de Agamben constitui na imagem do sujeito contemporâneo que, antes marcado pelas trevas da ignorância, agora não se compreende pelo excesso de brilho. É pelo excesso de informações, é pela indomável luminosidade dos dias de hoje, que gradativamente perdemos a nossa capacidade de experenciar. Os jornais, a televisão, a internet parecem nos colocar nos obscuros corredores de uma biblioteca de informações que se empilham lado a lado das mais diversas maneiras e combinações; estamos perdidos nos escuros hexágonos da Biblioteca de Babel – que Borges descreveu meticulosamente – e suspeito que estamos assistindo com apatia o raros viajantes e exploradores que, enlouquecidos pelo infinito, tiram suas próprias vidas ou morrem nos compridos corredores de tantos livros[3]. O excesso de informações vem substituindo o fenômeno da experiência. Walter Benjamin já nos alertara de que “as ações da experiências estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo”[4]; Benjamin já percebia que cada vez mais nos adentramos nas bifurcadas vereadas dessa Biblioteca – ao gosto de Borges – e “em um texto célebre”, escreve Larrosa[5], “[Walter Benjamin] já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara”. A seguir, Larrosa destaca – assim como Walter Benjamin – que o excesso de informação tem nos tornando pobres de experiência. “A informação não é experiência”, diz. “E mais, a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da experiência, quase uma antiexperiência”[6].

Diante dessa pequena digressão inicial é que gostaria de trazer para a discussão no presente texto um pequeno olhar às complexas e poéticas relações de ensino/aprendizado e aos processos artísticos/musicais que compõem o mágico – e marginalizado – universo das baterias universitárias – as BU’s, como são chamadas (abreviatura que utilizarei ao longo do texto). Estes pequenos vaga-lumes que na ordem discursiva das epistemologias acadêmicas não encontram espaço; no âmbito da Educação Musical, suspeito que ela sequer seja vista. Não caberá a esta pequena reflexão olhar para os mecanismos de poder que (des)regulam a sobrevivência das BU’s; não caberá a este pequenino espaço falar sobre as reflexões do que é experiência[7], apesar de que a pequena digressão inicial foi necessária para considerarmos o que, de fato, irei tratar a partir de agora.

As BU’s, presente na maioria das instituições universitárias, são autônomas e independentes da maquinaria institucional, salvo aquelas que se incorporaram a universidade como projeto de extensão. Porém, ainda assim, elas se situam no campo do ensino não formal e a sobrevivência dos seus lampejos intermitentes é graças a certa necessidade de se congregar ao entorno de uma afinidade comum que, no caso, é a música. São esses pequenos grupos, nunca olhados pelas instituições, aparentemente esquecidos das pesquisas, que parecem viver uma realidade ideal anarquista de autogestão e horizontalidade (e, sobre isso, falarei em breve). Assim como os pequenos vaga-lumes que procuram sobreviver e se comunicar com seus pares pelos seus fracos sinais emitidos em um céu que não cede a escuridão, as BU’s cada vez mais se comunicam, mas pelos sinais do som, pelo gesto de um instrumento que carrega igualmente a memória de culturas que ainda persistem marginalizadas, assim como eles, por boa parte das camadas sociais em nome de um falso discurso da boa cultura ou da verdadeira arte – discursos reacionários e que também não será possível explaná-lo aqui. É importante lembrar que a própria academia, muitas vezes, regula e normatiza esse discurso marginalizador[8].

A trajetória das BU’s enquanto grupo é marcada pelo constante fluxo de pessoas; é um movimento de histórias, de sujeitos que entram e saem, que se cruzam, que acabam por construir novas histórias, geram memórias, lembranças, reminiscências; faz-nos lembrar o turbilhão de um rio ou, mais ainda, novamente recorro as reflexões de Larrosa a respeito da experiência. Ou melhor, não exatamente sobre a definição de experiência, mas sobre a compreensão de sua etimologia. Segundo o autor, a “palavra experiência vem do latim experiri, provar (experimentar)”. Mas ele nos chama atenção que o seu radical – periri – “se encontra também periculum, perigo”, enquanto que per é uma raiz indo-europeia e que “se relaciona antes de tudo a ideia de travessia, e secundariamente a ideia de prova”. O ponto aqui, porém, é a observação que faz: o mesmo prefixo é usado na palavra peiratês, ou seja, pirata. Para ele, o “sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião”[9]. Assim como os vaga-lumes, errantes num céu melancolicamente pulvoroso das luzes da contemporaneidade, cada ritmista das BU’s não deixa de ser esse pirata, esse fascinante estrangeiro que embarca sem saber exatamente dos percalços e futuro de sua travessia – e por isso mesmo pode estar sujeito ao periculum –; também nunca saberá o momento de desembarcar – ainda que o desembarque não signifique o fim: diferente dos piratas, mesmo após abandonar a nau, regressam à embarcação, como os narradores viajantes que Walter Benjamin descreve. Ao embarcar no grupo, ao congregar-se aos seus pares, as possibilidades da experiência se potencializam e os sujeitos também, muitas vezes, parecem se (re)existir[10]: Larrosa nos lembra que o prefixo ex presente em experiência também está presente no verbo existir. E não é esse um dos maiores desafios que permeia toda a história da pedagogia e da educação: procurar construir espaços e lugares em que os seres humanos possam, antes de qualquer coisa, existir? Abrir-se a ajuda mútua, construir e reconstruir sentidos, ressignificar seus olhares para o outro, para o mundo? Talvez, em uma leitura superficial, somos sempre levados a acreditar que as BU’s se mantém apenas a caráter de entretenimento – e há que se considerar também os equívocos e preconceitos que, infelizmente, essa palavra vem carregando consigo em tempos que nossa sociedade de consumo se levanta em favor ao negócio (aqui quero usá-la em suas raízes: neg+ocium = negação do ócio). Curiosamente, as BU’s nascem da instituição que cada vez mais vem reproduzindo essa lógica de produção e consumo. Não há aqui uma forma de ação direta?

Olhando como educador musical, como não deixar se emocionar pela poética do processo de ensino/aprendizado das BU’s? Como não se levar pelos processos de construção artístico/musical que parece embalar cada ritmista? Estamos falando de um espaço musical no âmbito não formal e em instituições universitárias que não estão relacionadas aos cursos de Artes – ou mais especificamente, a área de Música.  

Assim como em toda relação de ensino/aprendizado, não pude deixar de observar que há uma poética nos processos que constituem pedagógica e musicalmente as BU’s no que se refere ao aprendizado de um instrumento musical e – por quê não? – musical: a(o) veterana(o) – ou os mais experientes do grupo – assumem uma responsabilidade, muitas vezes encarada com dificuldade de ensinar a novata/novato, o iniciante, a aprender o instrumento em questão; pessoas que, muitas vezes, sequer tiveram um contato com o ensino musical, seja nos espaços formais ou não formais; há nisso ecos da beleza experimentada por Jacotot – e que tão lindamente foi rememorada na narrativa de Jaques Rancière – que se transformou na emblemática figura de “mestre ignorante”: uma relação de ensino/aprendizado baseado no que Rancière chamou de método da igualdade. Esse “método da igualdade era, antes de mais nada, um método da vontade. Podia-se aprender sozinho, e sem mestre explicador, quando se queria, pela tensão de seu próprio desejo ou pelas contingências da situação”[11]. E é a vontade manifesta de aprender música que esses ritmistas aprendem: sem mestres, sem explicações, mas através de trocas, de observações, de investigações. E é essa mesma vontade que une a/o veterana(o) e o aprendiz. Mais: se aprende e se faz música pela troca de experiências. É nesse intercâmbio que se manifesta, acredito eu, uma poética nunca percebida – ou até mesmo ignorada – pelos ritmistas: a didática musical ali estabelecida é marcada pela oralidade, pelos gestos, pelo olhar, pelas experiências que, como rios, confluem ambos no mesmo leito; como não se lembrar dos velhos mestres ou dos velhos narradores que transmitiam seus conhecimentos e tradições através de suas memórias, suas histórias? Benjamin constatou com melancolia que estamos “privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: faculdade de intercambiar experiências”[12] – então por quê não considerarmos esses gestos de transmissão como uma resistência? O que está em jogo é a própria experiência. Nas relações de ensino/aprendizado entre os ritmistas, é curioso notar que, para além da performance que os envolve  – a preparação do instrumento, a economia dos gestos, o olhar e a escuta – no ensinar (e que se opera da mesma forma no processo do  fazer musical em que se debruçam), o que importa – ainda que intuitivamente – “é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca”[13] e, por isso, olhar sob essa perspectiva, chega a ser justificável a facilidade com que os ritmistas de BU’s conseguem em um curto período de tempo – não sem seus percalços – perfomarem e vivenciarem processos artísticos significativos. Aliás, o aprender a fazer e o fazer não estão dissociados. É o momento em que os vaga-lumes, finalmente com seus pares, encontram sua redenção numa dança na qual, parece, não estamos dispostos a ver.

 As figuras musicais, muitas vezes, são substituídas por palavras; o gesto e o olhar assumem um protagonismo na construção daquilo que se parece uma narrativa; talvez seja exagero querer encontrar vestígios ou rastros do narrador benjaminiano; mas é curioso observar que, numa leitura um pouco mais simples do narrador de Benjamin, parece que há aqui certa sobrevivência da experiência – os vaga-lumes ainda resistem!; a experiência de cada ritmista sobrevive ao ser transmitida. Benjamin nos diz que a “experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte que recorre todos os narradores” e, mas a frente, afirma que o “narrador retira da experiência o que conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiências dos seus ouvintes”[14]. Não há como deixar de ver aqui a imagem do ritmista/narrador: é ela ou ele que irá transmitir o que igualmente lhe ensinaram dentro do grupo; é ela ou ele que, uma vez apreendido o saber musical, vivencia, experiencia a arte, a música, de maneira singular e que transmitirá – ou melhor, narrará – sua experiência – recebida e vivida (e há aqui um gesto da memória).

Por fim, há também um outro movimento que não deixa de causar uma certa ruptura nos meandros do ensino musical (ou, porquê não dizer, nas complexidades da Educação): a pulverização das hierarquias. Seria utópico acreditar que há um completo fim nas relações hierárquicas das BU’s – não podemos esquecer que a organização das formas e estruturas musicais são essencialmente arraigadas a uma cultura de hierarquias – mas é preciso considerar  que no campo pedagógico, as verticalizações se tornam horizontais; esse “músico narrador” novamente nos faz lembrar do “mestre ignorante”: assim com o aprendiz, ele também se coloca no lugar daquele que não sabe; em outras palavras: ele não é aquele que simplesmente transmite, mas se reconhece nesse lugar de aprendiz.

Creio que os vaga-lumes resistem porque até mesmo no céu mais estrelado há ainda os interstícios da escuridão; é lá que reside a esperança de que seus fracos e intermitentes brilhos nos alcancem; se há um exagero em pensar as BU’s nesse lugar poético, então devo pedir desculpas, mas não posso deixar de olhar seus lampejos como sobrevivência frente a instituições que promovem uma educação bancária; uma educação, segundo Rancière, embrutecedora; uma educação que, dentro da miríade do saber, constrói sujeitos esmagados pela própria pobreza da experiência. Além disso, mais uma vez, não há como negar a potência das BU’s no que concerne a Educação Musical. O exagero, no fundo, não deixa de ser proposital; é uma tentativa de compreender o porquê de as BU’s estarem relegadas ao esquecimento das pesquisas acadêmicas. Acho que nós, pesquisadoras e pesquisadores em Educação e em Educação Musical, não estamos dispostos a olhar para os interstícios das constelações acadêmicas. Ou ainda: talvez nos falta olhar. Com ou sem exageros, fato é: precisamos lembrar que as BU’s se abrem como um campo de ensino/musical complexo e que, no fundo, assume uma certa forma de resistência a carência do ensino musical no Brasil. Ou ainda: resistem as tantas outras forças que nos esmagam diariamente e que levam à extinção dos vaga-lumes.

[1] AGAMBEN, G. O que é contemporâneo?In: O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: editora da Unochapecó, 2009

[2] Cf.: DIDI-HUBERMAN, G. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: editora UFMG, 2011. Ver também: PASOLINI, P.P. Le vide du pouvoir ou l’artcle des lucioles. Disponível em: <http://www.elcorreo.eu.org/Pier-Paolo-Pasolini-Le-vide-du-pouvoir-ou-L-article-des-lucioles?lang=fr>. Acesso em: 12 de julho de 2018.

[3] O belíssimo texto de Jorge Luís Borges se encontra em: BORGES, J.L. Ficções. Disponível em: <https://teoriadoespacourbano.files.wordpress.com/2013/02/borges-ficc3a7c3b5es.pdf>. Acesso em: 12 de julho de 2018.

[4] BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In.: Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política, Vol. I. São Paulo: editora Brasiliense, 1994, p. 198.

[5] LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Campinas, SP: Revista Brasileira de Educação, Nº 19, 2002, p. 21.

[6] Idem, ibdem.

[7] Há textos poéticos que abordam o fenômeno da experiência nos escritos de Benjamin (Experiência e Pobreza e O Narrador, op. Cit.), Larrosa (Notas sobre a experiência e o saber de experiência, op. Cit.) e em John Dewey (DEWEY, John. Ter uma experiência. In.: Arte como Experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 190-141).

[8] A esse respeito, há autores como Pierre Bourdieu e Michel Foucault. Cf: MOUTINHO, Lucas G. O Funk no Contexto Escolar. Trabalho de Conclusão de Curso, Instituto de Artes da UNESP, São Paulo, 2017. Este trabalho pode servir de introdução ao que concerne aos mecanismos de exclusão do funk – e outros gêneros – pelo olhar de Bourdieu.

[9] LARROSA, Op. Cit. p. 25.

[10] O prefixo re- aqui em parênteses porque não há a negação de uma existência anterior a uma experiência, mas há a ressignificação dela.

[11] RANCIÈRE, Jacques. O Mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2002, p. 25.

[12] BENJAMIN, Walter. Op. Cit. p. 198.

[13] LARROSA, Jorge. Op. Cit. p. 21.

[14] BENJAMIN, Walter. Op. Cit. pp. 199-201.

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