CRASE
em 17 de Novembro de 2024
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Lucas
Maria Paula de Souza Turim
Eu tinha quinze anos quando entrei, tremendo de frio, na sala de leitura da biblioteca pública no centro da minha cidade. Como sempre, conferi o retrato do doador do primeiro acervo, Dr. Carlos Miguel Novaes, e era automático: o sorriso irônico do Dr. Carlos, tentando ser sério, posado por horas e horas, centralizava-me de forma reconfortante. A sala de leitura parecia uma espécie de alcova pequena com um teto elevado. Havia muitos ganchos para pendurarmos casacos, bonés e um espelho antigo pregado em um móvel com pés quadrangulares que, barrando propositadamente um dos ângulos da sala, dirigia o usuário ao funcionário encarregado.
Naquela terça, a sala estava cheia. Mostrei rapidamente meu cartão de leitor para a Lúcia que foi buscar o livro que lia, ali, todos os dias do Ítalo Calvino. Procurei meu lugar e conferi o horário. Tinha duas horas e quinze. Abri meu livro no começo. Gostava de reler o começo:
Você vai começar a ler o novo romance de Ítalo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no infinito. É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado. [...] Escolha a posição mais cômoda: sentado, estendido, encolhido, deitado. [...] Numa poltrona, num sofá, numa cadeira de balanço, numa espreguiçadeira, num pufe. Numa rede, se tiver uma.
Quando estava abrindo o livro na página que parara, um senhor, que eu já vira por lá mesmo, sentou-se no lugar que havia em minha mesa e aproximando-se muito de mim começou a conversar comigo. O problema era que ele falava alto demais, a abordagem fora em voz muito alta e o cartaz da minha frente parecia gritar: SILÊNCIO e o RESPEITO!!!
Tudo isso me deixava meio constrangido, mas meu vizinho de mesa parecia não se importar. Dizia que eu era filho de um muito amigo seu e outras informações que eu não queria entender. De repente, abrindo uma carteira de couro marrom meio esgarçada, olhou-me por um tempo, sem falar nada, como se arrumasse o curso dos pensamentos e tirou, do meio de dinheiro, papéis dobrados e cartões, uma foto. Entregou-ma e, com emoção, disse ter pertencido à sua mulher. Pediu-me para ler o que estava escrito no verso e como não entendi nada, olhei para ele com um olhar mendicante e constrangido. Sem desviar os olhos e com uma ponta de orgulho disse-me que era adeus em alemão. A memória apossou-se de meu vizinho, tomou conta da sala redemoinhando nas peças imóveis que nos cercavam e nos cartazes espalhados pela Sala de leitura... As palavras saíam seguras de sua boca emoldurada por um bigode mal cuidado. Falou-me sobre a mão pequena de sua mulher na sua, no porto que, abandonado, o levaria à guerra. Relembrou-se da foto que permanecia em sua mão, ali colada, suada, dolorida, ferindo o seu corpo que se afastava cada vez mais do ponto da terra onde lhe acenava a mulher que mais amara na vida e a quem iria dedicar-se inteiramente a esse fim. “Adeus”, disseram-se. Escreveram-se muito. Recebera a notícia da morte dela por uma carta oficial junto com três cartas suas que ela nunca chegara a receber. E era isso, suspirou. E mais o sentimento do vazio de sua existência que parecia exaurir-se lentamente, dia após dia. O senhor, ao meu lado, olhou-me. Seu olhar proclamava o vazio. “Até amanhã”, ele disse. E retirou-se.