Lucas
Foto de Maria T.
Por: Maria T.
01 de Junho de 2024

Lucas

Literatura escrita criativa Conto Criação De Narrativas Produção literária Produção Textual

https://1drv.ms/w/c/b9a6ce0ecf0e31bd/EeZgVeYQoG5AifteuKv3_zMBhPMtmlOH2JbZD4h1Ib5HRA

 

Lucas

Maria Paula de Souza Turim

 

Eu tinha quinze anos quando entrei, tremendo de frio, na sala de leitura da biblioteca pública no centro da minha cidade. Como sempre, conferi o retrato do doador do primeiro acervo, Dr. Carlos Miguel Novaes, e era automático: o sorriso irônico do Dr. Carlos, tentando ser sério, posado por horas e horas, centralizava-me de forma reconfortante. A sala de leitura parecia uma espécie de alcova pequena com um teto elevado. Havia muitos ganchos para pendurarmos casacos, bonés e um espelho antigo pregado em um móvel com pés quadrangulares que, barrando propositadamente um dos ângulos da sala, dirigia o usuário ao funcionário encarregado.

Naquela terça, a sala estava cheia. Mostrei rapidamente meu cartão de leitor para a Lúcia que foi buscar o livro que lia, ali, todos os dias do Ítalo Calvino. Procurei meu lugar e conferi o horário. Tinha duas horas e quinze.  Abri meu livro no começo. Gostava de reler o começo:

Você vai começar a ler o novo romance de Ítalo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no infinito. É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado. [...] Escolha a posição mais cômoda: sentado, estendido, encolhido, deitado. [...] Numa poltrona, num sofá, numa cadeira de balanço, numa espreguiçadeira, num pufe. Numa rede, se tiver uma.

Quando estava abrindo o livro na página que parara, um senhor, que eu já vira por lá mesmo, sentou-se no lugar que havia em minha mesa e aproximando-se muito de mim começou a conversar comigo. O problema era que ele falava alto demais, a abordagem fora em voz muito alta e o cartaz da minha frente parecia gritar: SILÊNCIO e o RESPEITO!!!

Tudo isso me deixava meio constrangido, mas meu vizinho de mesa parecia não se importar. Dizia que eu era filho de um muito amigo seu e outras informações que eu não queria entender. De repente, abrindo uma carteira de couro marrom meio esgarçada, olhou-me por um tempo, sem falar nada, como se arrumasse o curso dos pensamentos e tirou, do meio de dinheiro, papéis dobrados e cartões, uma foto. Entregou-ma e, com emoção, disse ter pertencido à sua mulher. Pediu-me para ler o que estava escrito no verso e como não entendi nada, olhei para ele com um olhar mendicante e constrangido. Sem desviar os olhos e com uma ponta de orgulho disse-me que era adeus em alemão. A memória apossou-se de meu vizinho, tomou conta da sala redemoinhando nas peças imóveis que nos cercavam e nos cartazes espalhados pela Sala de leitura... As palavras saíam seguras de sua boca emoldurada por um bigode mal cuidado. Falou-me sobre a mão pequena de sua mulher na sua, no porto que, abandonado, o levaria à guerra. Relembrou-se da foto que permanecia em sua mão, ali colada, suada, dolorida, ferindo o seu corpo que se afastava cada vez mais do ponto da terra onde lhe acenava a mulher que mais amara na vida e a quem iria dedicar-se inteiramente a esse fim. “Adeus”, disseram-se. Escreveram-se muito. Recebera a notícia da morte dela por uma carta oficial junto com três cartas suas que ela nunca chegara a receber.  E era isso, suspirou.  E mais o sentimento do vazio de sua existência que parecia exaurir-se lentamente, dia após dia. O senhor, ao meu lado, olhou-me. Seu olhar proclamava o vazio. “Até amanhã”, ele disse. E retirou-se.   

 

Maria T.
Maria T.
Sorocaba / SP
Responde em 15 h e 51 min
Identidade verificada
1ª hora grátis
nota média
0
avaliações
R$ 70
por hora
Mestrado: Mestrado (Universidade de Sorocaba)
Professora-mestre de todos os setores da língua portuguesa com 35 anos de experiência.

Confira artigos similares

Aprenda sobre qualquer assunto