Desenvolvimento da redação: aprenda a utilizar exemplos do j
em 14 de Março de 2016
Existe um jeito certo para se interpretar uma charge? Cartum polêmico do períodico Charlie Hebdo pode ajudar você a resolver essa questão.
Muitos estudantes julgam as questões de leitura e interpretação do ENEM e dos vestibulares particularmente difíceis, uma vez que consideram que o sentido do texto estaria dado e sua tarefa seria adivinha-lo. Acontece que o dom da adivinhação não é uma habilidade cobrada nesses exames e, partindo-se do princípio de que a leitura produtiva é uma atividade que exige a participação do leitor na construção do sentido, o que será avaliado é justamente a maneira como o candidato lê o texto.
Para pensarmos melhor sobre essa questão, vamos retomar o polêmico episódio envolvendo uma charge publicada no início de 2016, pelo jornal francês Charlie Hebdo, conhecido no mundo todo devido aos ataques do grupo Estado Islâmico à sua redação em janeiro de 2015.
Vamos aos fatos:
Na noite de 31 de dezembro de 2015, uma série de violentos ataques sexuais contra mulheres na cidade de Colônia, na Alemanha, chocou o país: estima-se que aproximadamente mil homens, supostamente de origem árabe ou africana, participaram dessas ações que teriam sido articuladas pela internet. Os agressores se organizaram em grupos menores e atacaram mulheres submetendo-as a situações de abusos e violência. Um estupro chegou a ser registrado. Esses eventos intensificaram os debates sobre a imigração e a vinda de refugiados para a Alemanha e o periódico francês não ficou de fora da discussão.
Famoso por seu tom polêmico e provocador o Charlie Hebdo publicou uma charge de autoria do diretor de redação, Laurent Sourisseau, mais conhecido como Riss, em que se observa, numa pequena cena, o corpo do garoto sírio, Alan Kurdi, refugiado de apenas 8 anos, encontrado morto em uma praia da Turquia. Na cena de maior destaque, surge a seguinte pergunta: O que teria acontecido ao jovem Alan se ele tivesse crescido? Logo abaixo da imagem de dois homens com feições animalizadas perseguindo duas mulheres em pânico, vem a resposta: assediador de mulheres na Alemanha.
A charge ganhou as redes sociais e provocou indignação no mundo inteiro, despertando as mais diversas reações.
Diferentes públicos, diferentes leituras
O jornal francês foi acusado de desrespeitar a memória de Alan, bem como os sentimentos de sua família. Muitos veículos também chamaram a atenção para a insensibilidade do jornal diante da tragédia – da qual Alan tornou-se símbolo- de milhares de refugiados que perderam a vida no Mediterrâneo na tentativa de fugir das guerras e da fome em seus países de origem.
Charlie Hebdo também foi acusado de associar o estupro à raça e à origem, como se o fato de o indivíduo pertencer a uma determinada etnia ou nacionalidade fosse um fator que o levasse a esse crime. Dessa forma, o periódico estaria fomentando o ódio e o racismo na Europa, contribuindo assim para a crescente onda de xenofobia contra os refugiados.
Diante dessa polêmica, surgiram alguns discursos destoantes. Segundo alguns analistas, as pessoas que estavam acusando o jornal não estavam compreendendo que a charge pretendia justamente criticar a xenofobia de boa parte dos europeus (!). Para defender essa tese, tais analistas afirmam que o jornal reproduz um tipo de humor peculiar, característico da tradição filosófica francesa.
De acordo com essa tradição, nenhum tema seria um tabu, ou seja, todos os assuntos poderiam, a princípio, ser objeto da sátira e do riso, inclusive a imagem de uma criança refugiada morta em uma praia. Para que o leitor conseguisse chegar ao sentido pretendido, seria necessário, portanto, conhecer essa tradição e saber que a charge, ao abordar tal tema, propõe duas camadas de leitura.
A primeira camada poderia, de fato, ser interpretada como um desrespeito e uma apologia ao pensamento xenófobo, entretanto esse sentido deveria ser imediatamente descartado por ser óbvio demais. A leitura mais consistente veria na charge que o jornal pretendia escancarar o pensamento de grande parte da população europeia, apontando o dedo para seu racismo e preconceito. Nesse caso estaríamos diante da ironia levada ao extremo.
Leitura e repertório cultural
As diferentes leituras levantadas pela charge deixam claro uma coisa: os leitores que viram desrespeito e fomento ao ódio não compartilham dos mesmos pressupostos culturais do leitor habitual do Charlie Hebdo, isto é, não estão familiarizados com o tipo de humor que caracteriza a publicação. Por conta disso, acabaram lendo a charge a partir de seu ponto de vista, relacionando-a com seus valores e sua visão de mundo.
Esse exemplo nos mostra que o sentido do texto não está pronto e acabado e os leitores não são simples receptores passivos da mensagem, pelo contrário, entram num jogo de interação com o texto, podendo concordar ou polemizar com ele, produzindo sentidos até então não previstos pelo autor.
Podemos questionar a ética desse tipo de humor, porém, conhecer seus princípios possibilitará fazer leituras mais complexas da charge em questão, uma vez que ler é fazer relações e, quanto maior o repertório cultural do leitor, maior será sua capacidade de fazer interpretações para além da superficialidade do texto.
Para acalmar
É possível que alguém tenha ficado nervoso com a possibilidade de uma questão desse tipo vir a cair no Enem ou em algum vestibular. Como identificar a ironia se não temos a informação sobre esse humor um tanto esquisito dos franceses?
Na pior das hipóteses, a banca pode considerar que o aluno deva ter esse conhecimento, porém, é provável que o enunciado traga uma pista de leitura. Algo do tipo:
“Dado que o humor francês é caracterizado por forte ironia, mobilizada para criticar certos comportamentos sociais, é possível afirmar que a charge publicada pelo jornal Charlie Abdo pretenda incentivar a xenofobia e o racismo?”
Para responder você usaria seu conhecimento de como o recurso à ironia é empregado quando se quer expressar o contrário do que se diz, relacionando-o com seus conhecimentos sobre geopolítica e sociologia em relação à questão dos refugiados na Europa.
Bom estudos!