Interpretando canções 1
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Por: Rodrigo P.
17 de Abril de 2022

Interpretando canções 1

Eu não entendo Djavan...

Literatura

Uma vez li um artigo em jornal.. não vou citar nome nem fonte... que julguei suspeito e superficial. Ele atribuia um suposto prêmio chamado de "Açaí", ironizando as letras compostas por Djavan, que segundo o autor, não faziam sentido algum. E ali naquele artigo se criticava acidamente um pouco de tudo e, ao que parece, Djavan e Zé Ramalho seriam os maiores alvos. Julguei que faltava sensibilidade e percepção literária. 

Se liga "jornalista" aqui, anônimo. 

Muita gente "cancelaria" as letras de Djavan.. algumas sutis como a belíssima "Cigano" não ousaria interpretar aqui, pois a carga de sensualidade sensorial evidente na canção poderia ferir aos sentimentos de quem nunca entendeu a canção. Deixo esta como desafio para quem quiser perceber. Vamos a "Açaí" aquela que o jornalista aludiu a uma letra sem sentido. Tudo bem.. aceito pontuadamente.. mas renego. E atribuirei a genialidade que é merecida ao querido Djavan. A letra abaixo, e as técnicas apropriadas de interpretação. 

 

Açaí

Solidão de manhã, poeira tomando assento
Rajada de vento, som de assombração
Coração sangrando toda palavra sã

A paixão, puro afã
Místico clã de sereia, castelo de areia
Ira de tubarão, ilusão
O Sol brilha por si

Açaí, guardiã
Zum de besouro um ímã
Branca é a tez da manhã

Açaí, guardiã
Zum de besouro um ímã
Branca é a tez da manhã

A primeira recomendação que eu faria, técnica é entender o que chamamos de "estilo individual". Todo autor tem um estilo único de escrita, que tem marcas características claras. Por exemplo, o consagrado poeta romântico Castro Alves é nitidamente grandiloquente.. e tudo que ele escreve é exagerado: Astros, noites, tempestades, rolai das imensidades, rompei os mares, tufão (trecho de Navio Negreiro do mesmo autor). E qual seria o estilo de Djavan. Este grande poeta do cancioneiro brasileiro é sensorial.. assim como os escritores simbolistas do final do século XIX, início do XX: no texto de eclodem sinestesias, sugestão ao vago, imagens inusitadas, musicalidade. Djavam talvez seja o mais dos mais simbolistas da nossa MPB. Zé Ramalho que citei acima é notadamente surrealista, um Salvador Dali do cancioneiro Brasileiro.

O segundo elemento a se considerar é o "princípio do estranhamento"... Se é diferenciado no texto.. tem grande autor por trás.. desconfie.. que o sentido deve estar por perto.... velado na sua inexperiência de técnica de análise do discurso...

 

Vamos então a primeira estrofe, utilizando uma terceira técnica: isolamento de núcleos textuais (marcarei sublinhado)

Solidão de manhã, poeira tomando assento
Rajada de vento, som de assombração
Coração sangrando toda palavra sã

 

Vejam os núcleos em tom de pele.. a sensação de poeira, parece que num tempo parado.. remetendo a solidão. Nada pode ser mais sozinho do que ver a poeira se assentando no ambiente à luz do sol. Nada pode ser mais vazio e sensorial do que um som de assombração.. é puro simbolismo do "vazio" do vago. E ele vai além, em azul claro cria uma aliteração do "s" sibiliante neste silêncio. Pura sensação da solidão. Puro Djavan. Um jazz de sensações. Primeira estrofe é "solidão" portanto. E a "segunda"?

 

A paixão, puro afã
Místico clã de sereia, castelo de areia
Ira de tubarão, ilusão
O Sol brilha por si

A "paixão" é o eixo central aqui que acompanha a "solidão" da primeira estrofe, e ela sensorialmente para o autor é algo entre o misterioso e devorador. Carrega o chamado do "místico clã de sereia", é frágil como o "castelo de areia" é devorador do que a intensa, potente, incontrolável "ira de tubarão". Marcado em tom de pele, a paixão entre o arrebatador e o mistério. Enfim, é um "sol que brilha por si". Assim, compreendemos como talvez a plateia de Djavan o ovaciona, sem talvez saber o porquê... talvez porque sinta o que ele fala... assim como sente um leitor de Clarice Lispector. Djavan é um escritor para ser sentido. 

 

Sobre o refrão.. vou me poupar.. ele é realmente hermético (fechado).. aparentemente subjetivo.. mas o próprio Djavan nos explica.. e solta uma pequena farpa à crítica que eu mesmo quis esconder o nome do autor... como são suas letras inundadas de beleza poética e singularidade... aparentemente veladas para quem tem certa preguiça de ir além na leitura... Ouçam.. vale a pena: 

 

https://youtu.be/eezrwUa1Ri8

 

O mestre diz por si só... 

 

 

Rodrigo P.
Rodrigo P.
São Paulo / SP
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Graduação: Letras Português/literaturas (Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP))
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Atendimento humanizado, 20 anos de experiência, foco em resultados.

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