Versão de Fala Amendoeira, de Carlos Drummond de Andrade
Por: Gabriela N.
30 de Junho de 2016

Versão de Fala Amendoeira, de Carlos Drummond de Andrade

Francês

Fala Amendoeira, Carlos Drummond de Andrade

 

“Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza – essa natureza que não presta atenção em nós. Abrindo a janela matinal, o cronista deparou no firmamento, que seria de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha   entre céu e chão – névoa baixa e seca, hostil aos aviões. Pousou a vista, depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições mais urgentes.  Estavam todas verdes, menos uma. Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à porta, companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu destino.

 

 

 

Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais, alguns fios elétricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem, e a luz crua do projetor, a dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais nova. Às terças, pela manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e, ao entardecer, cada dia, garotos procuram subir-lhe pelo tronco. Nenhum desses incômodos lhe afeta a placidez de árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo de casamento, muitos enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que têm os amantes de rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes.

 

 

Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho, numa gradação fantasista que chegava mesmo até o marrom – cor final de decomposição, depois da qual as folhas caem. Pequenas amêndoas atestavam seu esforço, e também elas se preparavam para ganhar coloração dourada e, por sua vez, completado o ciclo, tombar sobre o meio-fio, se não as colhe algum moleque apreciador de seu azedinho. É como se o cronista, lhe perguntasse – Fala, amendoeira – por que fugia ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:

 

- Não vês? Começo a outonear. É 21 de março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.

 

 

- E vais outoneando sozinha?

 

- Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.


- Somos todos assim.


- Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exatamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.

 

 

- Não me entristeças.

 

 

- Não, querido, sou tua árvore-de-guarda e simbolizo teu outono pessoal. Quero apenas que te outonize com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves... Outoniza-se com dignidade, meu velho.

 

 

Parle Amandier, Carlos Drummond de Andrade, traduzido por Gabriela Nanni

 

«  Ce métier de gribouiller sur les choses du temps exige que l’on prête quelque attention à la nature -  cette nature que ne prête pas attention à nous. En ouvrant la fenêtre matinale, le chroniqueur  tomba sur le firmament, qui serait d’un saphir impeccable s’il n’y avait pas la longue tache de brume à assombrir la ligne entre le ciel et la terre – brume basse et sèche, hostile aux avions. Il atterrit la vue, après, dans les arbres qu’un certain  maire lointain donna à la rue, et que personne encore se rappela d’arracher, peut-être parce qu’il y avait d’autres destructions plus urgentes. Ils étaient tous verts, sauf un. Un qui, précisément, est planté en face à la porte, compagnon plus proche d’un homme et de sa vie, espèce d’ange végétale proposé à son destin.

 

 

Cet arbre, en quelque sorte incorporé aux biens personnels, quelques fils électriques traversant son visage, sans qu’ils le dérangent, la lumière crue du projecteur, à deux pas, l’empêcherait peut-être de dormir, s'il était plus jeune. Les mardis, au matin, le marchand pose sa tante, et, au crépuscule, chaque jour, des garçons essaient de grimper le tronc. Aucun des ces inconvénients affecte la placidité d’arbre mûr et maigre, qui vis déjà beaucoup de pluie, cortège de mariage, plusieurs enterrements, et sert depuis des longues années aux besoins qui ont les amants de rue, et même à d’autres besoins plus modestes des petits chiens rôdeurs. 

 

 

Ils étaient tous encore verts, mais celui-là pavanait quelques feuilles jaunes et d’autres déjà rayées en rouge, dans une gradation fantaisiste qui allait même jusqu’au marron –couleur final de décomposition, après laquelle les feuilles tombent. Des petites amandes attestaient son effort, et elles aussi se préparaient à gagner coloration dorée et, une fois ce cycle complété, tomber sur le trottoir, si un gamin amateur de son petit gout acide ne la ramassa. Et comme le chroniqueur le demandait – Parle Amandier – pourquoi fuis-tu au rituel de tes frères, adoptant des vêtements si particuliers, l’arbre semblait lui expliquer :

 

- Tu ne vois pas ? je commence à automner. Il est  21 mars, date où les petites feuilles signalent l’équinoxe d’automne. Je tiens à mon devoir d’arbre, bien que mes frères ne respectent pas les saisons.

 

- Et tu automnises tout seul ?

 

- Dans la mesure du possible. Tout est en désordre, et, comme tu peux remarquer, je porte avec moi un vestige d’été, une anticipation de printemps et même, si tu notes bien ce petit vent qui me fustige dans la nuit, une suspecte d’hiver.

 


- On est tous comme ça.


- Les hommes non. En toi, par exemple, l’automne est manifeste et exclusif. Je te trouve bien automnal mon fils, et ton travail est exactement ce que les auteurs appellent automnade : ce sont des fruits cueillis à un moment de la vie déjà moins clair, mais qui ne se dilue pas encore en ténèbres. Remarque que l’automne est plus la saison de l’âme que de la nature.

 

- Ne sois pas triste.

 

- Non, mon cher, je suis ton arbre ange gardien et symbolise ton automne personnel. Je veux juste que tu automnises avec patience et douceur. Le dard de lumière blesse moins, la pluie donne aux fruits sa saveur définitive. Les feuilles tombent, certes, et les cheveux aussi, mais il y a quelque chose de gracieux dans tout ça : paraboles, rythmes, tons doux… automnise avec dignité mon vieux. »

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