‘As coisas que perdemos no fogo’ de Enriquez
Por: Anabella B.
20 de Junho de 2020

‘As coisas que perdemos no fogo’ de Enriquez

Resenha

Literatura literatura argentina literatura em espanhol

As coisas que perdemos no fogo (2017) de Mariana Enriquez está conforma por doze contos reunidos com a caraterística que poderíamos chamar de “terror”. Aparecem elementos próprios do gênero como a casa encantada, os aparecidos na rodovia, cultos satânicos, o espectro de um psicopata. Mas trata-se de um terror do cotidiano, um terror irremediável do real: As coisas que perdemos no fogo não são contos para nos distrair da verdade, eles trazem na mesa a complexidade do dia a dia, os perigos, os destinos e os medos que surgem da pobreza e da desigualdade social.

O primeiro conto, “O menino sujo”, nos apresenta uma narradora com qualidade de outsider: uma garota de boa família que habita num casarão em Constitución – antigo bairro da aristocracia portenha; hoje, um bairro perigoso “marcado pela fuga” –, parte da herença familiar. Ela insiste em morar ali porque gosta da casa e acha que sabe se mover no bairro: “se a gente sabe se mover, se entende as dinâmicas, os horários, não é perigoso. Ou é menos perigoso. Sei que nas noites de sexta feira, se me aproximar da praça Garay, posso acabar no meio de alguma briga” (p.10). No entanto, ela tem uma visão “de fora”, de outsider, no que respeita a realidade social do bairro: “Que é que você sabe que acontece de verdade por aqui, menina? Você mora aqui, mas é de outro mundo” lhe responde a sua amiga Lala quando ela afirma que não tem bruxos no bairro. Vai ser quando tiver uma experiência de perto com a realidade da pobreza e os seus perigos que vai mudar o seu olhar. Um menino que mora na rua, frente a sua casa bate na porta uma noite, com medo porque a mãe tinha ido embora e a garota decide levá-lo a tomar um sorvete: “Eu me dei conta, enquanto o menino sujo lambia os dedos lambuzados, do pouco que me importavam as pessoas, de como me pareciam naturais aquelas vidas desgraçadas” (p.19). O crime do menino torturado, violado e decapitado para ser oferenda a São Morte, vai coloca-la de frente ao real, aos destinos desse mundo social.

No conto “Sob a água negra”, dois meninos de quinze anos são vítimas da polícia abusadora que usa gatilho fácil com garotos da favela. Ao saírem de uma festa, decidem voltar a pé por não terem dinheiro para pegar um ónibus de volta para Villa Moreno. São injuriados pela polícia de terem roubado um quiosque e são jogados no Riachuelo, um rio que é “quieto e morto, com seus óleos e seus restos de plástico e produtos químicos pesados, o grande depósito de lixo da cidade” (p.151). A água do Riachuelo contaminado vai consumindo a saúde dos moradores da favela próxima, produzindo cânceres, mortes e mutações. Aquele lixo esquecido da cidade – o Riachuelo, mas também a área marginal – vai devolver mortos monstruosos para a sociedade que os criou.

Há uma outra constante na leitura dessas histórias: o corpo. A noção do corpo, a violência contra os corpos. Os corpos que desaparecem, que mutam, que queimam, que morrem de fome, que estão intoxicados, que matam, corpos mutilados, corpos que reivindicam uma nova forma de beleza. A maioria das personagens que sofrem o prejuízo é feminina, e isso parece ter a ver com a realidade.

Com cada história nos aprofundamos em uma exploração cruel de violência diferente. A maioria deles, para os corpos. Muitos deles, de homens para mulheres: a total falta de empatia e prepotência por parte da noiva / noivo da “Teia de aranha” e do “O quintal do vizinho”; o serial killer que não tem ideia da violência que ele exerce (Pablito clavó um clavito), a violência sistemática do Estado, vestido como forças de segurança em “Teia de aranha” e “Sob a água negra”: “o policial riu; ria dela, ria dos garotos mortos” (p.152); a heteronorma em “A hospedaria”; as imposições de beleza que governam as mulheres em “Nada de carne sobre nós”. 

Finalmente, toda a violência em um poderoso e resolutivo último conto que dá o título ao livro, “As coisas que perdemos no fogo”, a ressignificação de uma nova queima de bruxas desta vez comandado por mulheres que estão fartas. Este último conto trata de um movimento de mulheres, fartas da violência de gênero, que decidem pegar fogo no próprio corpo depois dos ataques machistas com queimaduras sobre elas. Novamente o engendro da violência vira o mal para o criador, as mulheres queimadas que continuam com vida têm uma aparência terrífica: “se continuarem assim, os homens vão ter que se acostumar. A maioria das mulheres vai ser como eu, se não morrer. Seria ótimo, não? Uma beleza nova” (p.184)

Doze histórias que misturam fantasmas do passado e do presente, crenças e rituais populares, monstros, casas abandonadas e misteriosas, seres mutantes e mutilados aparecem no terror do cotidiano. Junto a estes elementos de filme de terror tem a violência, a pobreza, o abandono, a loucura, a fome, a intolerância, a desigualdade social. Todo um conjunto de personagens e cenários crus e tenebrosos que se conectam com os nossos medos e pesadelos que no fundo incomodam pois têm muito a ver com a nossa realidade contextual.

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