Conjecturas sobre missionários etnógrafos
Por: Bruno F.
07 de Fevereiro de 2019

Conjecturas sobre missionários etnógrafos

Um olhar sobre Carlos Estermann e Maurice Leenhardt

Antropologia Ensino Superior Superior

Conjecturas sobre missionários etnógrafos

 

Bruno Farias da Silva

 

 

Partindo-se da vida e obra de alguns autores que tiveram seu trabalho analisado na disciplina até o momento, como Leenhardt, Tarde; e outros que tornaram-se impossíveis de não se associar, quando se fala sobre trabalho etnográfico, tal como Malinowski ou Strathern - passei a conjecturar possíveis relações entre Leenhardt e Carlos Estermann, um etnógrafo missionário espiritano e seu trabalho em Angola no começo do século XX, que vai se tornar referência para vários estudos antropológicos contemporâneos sobre Angola.

A partir da leitura da obra de Do Kamo, de Maurice Leenhardt (1878-1954) e seu trabalho na Nova Caledônia, na Melanésia, bem como alguns aspectos suscitados pelo trabalho de reescrita de meu projeto de pesquisa, tem me ocorrido sobre o papel do pesquisador nas atividades de campo, não só no que me diz respeito, mas quanto as teorizações que cercam o tema, bem como sobre a perspectiva adotada por alguns autores que compõe base bibliográfica para minha pesquisa.

Comecei a pensar mais demoradamente sobre até que ponto os trabalhos que utilizei como referência etnográfica para me situar no contexto angolano e os relatos sobre feitiçaria no período colonial - buscando construir um arcabouço de ideias que me ajudassem a entender a feitiçaria em Angola no período tardo-colonial, mais especificamente na década de 1970 – estão de fato afastados das influências dos “nativos”.

Nesse sentido, entra aqui, em minhas reflexões, uma breve análise do trabalho do padre Carlos Estermann (1896-1976), etnólogo e antropólogo, que realizou trabalhos no sudoeste de Angola como missionário espiritano após 1924.

Estermann é citado aqui nessa correlação, tendo em vista também possuir uma formação teológica, passar anos em campo em atividades missionárias, bem como em seus escritos etnográficos, resguardadas as diferenças quanto ao contexto colonial, origens e outros elementos que se julgar relevantes, procurava dar uma atenção diferenciada ao contexto do nativo buscando elementos deste para compor a sua escrita etnográfica.

Buscando esse caminho de pensamento, apesar de os dois autores citados virem de contextos etnográficos e formações eclesiásticas diferentes, tenho a impressão que ambos convergem quando o assunto é valorizar e preservar, até certo ponto, a cultura do nativo, levando a sua respectiva instituição religiosa e procurando levantar informações etnográficas, que nos servem até a atualidade como referência documental.

No caso de Leenhardt, conhecer um pouco de sua vida ajuda a entender esse novo modo de fazer antropologia, movimento do qual ele fará parte com seus trabalhos sobre os canaques – ao menos no período de suas publicações. Filho de protestantes e com formação teológica, encontra à sua frente uma gosto pela objetividade científica que se entrelaça com sua vocação religiosa, inclinando-o para a antropologia ao longo de sua vida. Isto se observa em seus trabalhos que desafiavam o caráter neutro da época, ao mesmo tempo em que mantinha um caráter religioso e com ideias ligadas ao evolucionismo das sociedades.

Dada a leitura do Do Kamo, partindo da noção de indivíduo e sociedade e da distinção que os canaques faziam de objeto e sujeito, temos um exercício etnográfico e das abstrações propostas por Leenhardt, sendo interessante pensá-lo como um antropólogo inovador, procurando individualizar os canaques, numa linha evolutiva da coletividade que tende à individualização, à noção de pessoa em sua plenitude. Estudar sua obra é aproximar-se da experiência etnográfica, dando à interpretação nativa da vida um espaço em sua etnografia.

Acredito que aqui poderia se encaixar a mesma crítica que Lévi-Strauss faz à Mauss quando este, sob sua perspectiva, cede ao pensamento dos sábios maoris e acaba confundindo o documento etnográfico com a explicação etnológica (Lévi-Strauss, 2003).

Leenhardt também me chama a atenção por ter passado certo tempo em uma espécie de ostracismo na academia, por um lado devido a suas rusgas com outros intelectuais, como Lévi-Strauss, por exemplo, e por outro lado, devido ao seu caráter hetorodoxo e atípico.

É um autor que, como nos diz Recasens, é “bon à penser”, por ser um missionário evangélico, sua orientação fenomenológica e peculiar estilo etnográfico, que o faz diferir das classificações dos paradigmas teóricos (Recasens. in Leenhardt, p. 09).

No que tange às ciências sociais, a formação da antropologia contemporânea é marcada pela publicação de Os Argonautas do Pacífico Ocidental, de Bronislaw Malinowski. Esta assim se caracteriza como um marco de ruptura aos trabalhos etnográficos realizados por missionários que até então vinha sendo realizado, por colocar o antropólogo em outro patamar na relação com o seu estudo. A partir de então, Malinowski se consolida como leitura obrigatória para estudantes de antropologia.

Essa ruptura é marcada pelo momento em que passa-se a considerar com mais relevância o “ponto de vista do nativo”, e a imersão no campo, em contraposição à visão mais externa e carregada de valores alheios ao objeto estudado, tal como era o olhar do missionário.

O trabalho de Malinowski é fundamental então, para desprestigiar a credibilidade intelectual dos missionários e apresenta-los como fanáticos incapazes de entender as culturas nativas. Todavia, o que observamos com o trabalho de Leenhardt ou de Carlos Estermann é que tal generalização é, no mínimo, injusta.

Rechaçar ou obscurecer a obra de Leenhardt, nada mais é que demonstrar uma leitura superficial e carregada de pré-conceito, tendo em vista a sua complexa heterodoxia, aqui já citada, que em parte pode ser considerada herança de suas experiências de vida e do ceio familiar, e em parte, pelo meio acadêmico de tradição secular positivista, no qual ele vai se inserir ao regressar da Nova Caledônia, após duas décadas de convivência ininterrupta na Melanésia, despertando assim relações produtivas com Lévy-Bruhl e Marcel Mauss.

A passagem de Leenhardt pelo mundo acadêmico e a fase velada pela qual sua obra passou, após a sua morte, não é um fato isolado no meio intelectual.

Gabriel “de” Tarde é outra personalidade que chama a atenção sobre o fato de não ter criado uma “escola” propriamente dita, nem tampouco discípulos, apesar de formarem intelectuais, Michel Leiris (para Leenhardt) e no caso de Tarde, seus próprios filhos, “discípulos naturais e preferidos” (Bergson) e ainda ter influenciado o pensamento de tantos outros.

Como nos diz Recasens, por um lado a obra de Leenhardt era a de um etnógrafo disposto a defender e exaltar a mitologia dos povos tradicionais e por outro lado, um missionário que procurava erradicar atos que aos olhos da igreja seriam luxuriosos (poligamia, por exemplo).

Acompanhando o trabalho de Dulley (2008), ressalta-me o questionamento levantado anteriormente com a leitura de Do Kamo, de Leenhardt. Até que ponto há o envolvimento e/ou respeito pela cultura do “nativo”?

No trabalho da Congregação espiritana, em terras angolanas, a primeira tarefa do missionário era o aprendizado da língua local, mediante a concepção de que a língua reflete a alma do povo. Todavia, a gramatização e classificação das línguas locais estava diretamente ligada a uma catalogação em grupos etnolinguísticos dos indígenas. Acrescenta-se a esse “olhar sobre o indígena”, o fato de que observa-se, nos trabalhos de Estermann, a não nomeação dos indígenas envolvidos em seus relatos, salvo quando precisa-se discorrer mais detalhadamente com um exemplo para explicar um contexto apontado. Em geral, prefere utilizar termos genéricos, como negros, indígenas e feiticeiras (para casos de possessão).

Mauss já prenunciava em seu Ensaio sobre a Dádiva, partir do concreto para o abstrato. Mauss permite uma desnaturalização da ideia de progresso vigente em sua época, pois coloca em questão uma noção de homem econômico primitivo que estaria num polo oposto da racionalidade capitalista. Nesse sentido, Leenhardt ou Estermann não são únicos ou pioneiros em procurar em meio à cultura de seus “nativos” elementos que possam elucidar certas problemáticas por eles levantadas, bem como Malinowski, apesar de sua grande influência na antropologia contemporânea, não é único exemplo quando se trata de imersão e observação participante.

 

Bibliografia

DULLEY, Iracema Hilario. Do culto aos ancestrais ao cristianismo e vice-versa: vislumbres da pratica da comunicação nas missões espiritanas do Planalto Central Angolano. 2008. 171p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas, Campinas, SP. Disponível em: < http://repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/279150>. Acesso em: 29 mar. 2018.

ESTERMANN, Carlos. Etnografia do sudoeste de Angola. Vol. 1. Lisboa: Junta de investigações do Ultramar, 1983.

LEENHARDT, M. Do Kamo: la persona y el mito en el mundo melanesi. Barcelona: Paidós, 1997.

LEPENIES, Wolf, As Três Culturas; (tradução Maria Clara Cescato). – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Introdução à Obra de Marcel Mauss. In. Sociologia e Antropologia. Cosac Naify, 2003, p. 34.

TARDE, Gabriel. Introduction et pages choisies par ses fils, Préface de H. Bergson, Paris, Louis-Michaud, s. d., p. 25.

VARGAS, EV. Antes tarde do que nunca: Gabriel Tarde e a emergencia das ciencias sociai. Rio de Janeiro, RJ: Contracapa, 2000.

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Graduação: Geografia (Universidade Estadual Paulista (UNESP))
Professor de geografia formado pela unesp e com 16 anos de experiência em sala de aula.
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