Meandros da guerra civil moçambicana
Por: Bruno F.
07 de Fevereiro de 2019

Meandros da guerra civil moçambicana

Baseado na obra de Geffray, Christian. A causa das armas: antropologia da guerra contemporânea em Moçambique. Vol. 20. Edições Afrontamento, 1991.

Antropologia Ensino Superior Superior

Meandros da Guerra Civil Moçambicana

 

Bruno Farias da Silva

 

Geffray, Christian. A causa das armas: antropologia da guerra contemporânea em Moçambique. Vol. 20. Edições Afrontamento, 1991.

 

Christian Geffray nasceu em 1954 e faleceu em 2001. Seu primeiro trabalho de campo em Moçambique foi na década de 1980 entre a população Macua[1], no distrito de Erati, província de Nampula. Neste primeiro trabalho ele dedicou-se ao estudo de parentesco e a organização social num trabalho baseado em uma antropologia mais clássica e com influência marxista. Desta pesquisa resultou a sua tese de doutoramento, Travail et symbole en Pays Makhuwa, em 1987.

Seu longo trabalho de campo entre os macuas e todo o conturbado cenário político que ele presenciou, teve a antropologia como ferramenta para a análise da guerra e de toda a violência que devastou Moçambique, inclusive a sua área de estudo original.

Posteriormente Geffray retorna à sua área de estudo para procurar compreender as relações entre a sociedade camponesa e seu peso na governabilidade de Moçambique durante a guerra civil. Deste trabalho resulta La cause des armes au Mozambique: Antropologie d’une guerre civile (Paris, Karthala, 1990; edição portuguesa, A causa das armas. Antropologia da guerra contemporânea em Moçambique, Porto, Afrontamento, 1991).

Seria a guerra de Moçambique, conduzida por uma guerrilha violenta apenas uma política regional de desestabilização promovida por favorecedores do apartheid como a África do Sul e a Rodésia do Sul[2]? Seriam apenas causas internas, ligadas às políticas marxistas-leninistas de modernização impostas de maneira autoritária no meio campesino?

“A causa das armas” é um livro que procura trazer ao leitor pontos de reflexão que tentam explicar tanto as origens quanto a reprodução da guerra civil moçambicana que inicia-se dois anos após a sua independência (1977) e vai até o início dos anos noventa (1992). O autor busca responsabilidade desde a Rodésia e a África do Sul no conflito e a Renamo[3] até os dias mais recentes, que se apresenta como uma instituição militar sem projeto político, que encontra na guerra que fomenta as condições da sua reprodução.

Sua leitura nos ajuda a entender o tipo de trabalho que a Frelimo[4] enfrentou quanto a governabilidade após a independência, bem como os seus erros (as políticas de aldeamento), além das táticas envolvidas no conflito entre as Forças Armadas Moçambicanas e a Renamo.

Esta obra representa uma ruptura com os estudos desenvolvidos até então sobre o conflito entre a Renamo e a Frelimo. Acreditava-se que a guerra civil era resultado, em sua essência, da Renamo, que teria sido uma criação da Rodésia do Sul, juntamente com colonos portugueses fugidos de Moçambique e dissidentes da Frelimo; após a independência do Zimbabwe, seria a África do Sul a principal financiadora logística e política da Renamo.

Geffray aparece com estudos que procuram identificar, além das causas externas para o conflito, de que forma a população rural aderia a um movimento armado como a Renamo. As questões externas não são excluídas, mas também não podem ser analisadas como únicas causadoras do conflito, sendo então uma questão muito mais complexa.

A princípio Geffray propõe uma análise mais meticulosa e histórica para o conflito, recorrendo inclusive ao contexto geopolítico regional no qual Moçambique está inserido após passar pelas reminiscências do final do período colonial.

Tamanha são as intervenções e consequências da Renamo, que é impossível conceber esta ação por parte apenas de um bando de delinquentes. Faz-se necessário então recordar-se de algumas tensões e conflitos regionais e internacionais que favoreceram a Renamo e desencadearam a guerra em Moçambique logo após a independência.

A Frelimo chegou ao poder após uma luta armada que vinha desde 1964 e que geograficamente avançara a partir do Norte do país, tendo a situação politica de Portugal[5] sido determinante no processo de independência.

Ainda no âmbito internacional, devemos considerar a localização geográfica de Moçambique como um fator de relevância para o contexto geopolítico da região, tendo em vista que dada a sua localização, constitui condições de "controlar ö trânsito em grande parte das mercadorias exportadas e importadas pelos seus vizinhos" (Geffray, 1991, p.10).

Em meio a essa insegurança geopolítica concatenada pelo transporte de mercadorias, soma-se a preocupação da África do Sul ao deparar-se com um vizinho de fronteiras físicas “cujos dirigentes manifestavam uma vontade obstinada de independência política, proferiam discursos de conteúdo emancipador e militavam pelo fim do apartheid” (Geffray, 1991, p. 10). Diante dos planos da África do Sul de polarizar para si toda a África Austral, os processos de independência em Moçambique e Angola eram preocupantes, todavia dada a sua pujança econômica e a estabilidade de seu regime, a postura é de manter-se enquanto observadora em um primeiro momento, segundo Geffray. Posicionamento que claramente muda após a independência do Zimbabwe.

Para uma mais ampla compreensão do conflito que se desenrolou, vale entendermos um pouco mais da história recente de Moçambique, conforme Geffray nos apresenta.

Enquanto a guerra de libertação se desencadeava, nos anos setenta, a Frelimo tinha o trabalho de procurar manter a coesão do movimento, tendo em vista as divergências que começavam a apontar entre os dirigentes do movimento e as populações rurais, tendo em vista que no fervilhar do processo revolucionário confundiu-se “o caráter revolucionário a uma aspiração que era simplesmente anticolonial, os chefes da guerrilha equivocaram-se sobre a natureza do movimento que dirigiam” (Geffray, 1991, p. 14). Em meio a isso, Geffray classifica que a euforia da independência representa o ápice paradoxal desta situação, tendo em vista "quando a multidão aclamava os vencedores da opressão colonial e estes se maravilhavam com o fervor do seu povo, cuja essência revolucionária não punham em duvida...” (Geffray, 1991, p. 14).

Umas das discussões em que o autor se debruça na construção deste livro, trata-se da capacidade de o governo recém empossado em manter a coesão interna, principalmente quando se olha para a história e encontra uma grande diversidade social. Mas destaca que justamente esse processo de luta pela independência é que vai conferir a liga necessária para a coesão da população em torno de um projeto de nação proposto pela Frelimo nos primeiros anos que se seguem à independência. Pouco importavam as diferenças históricas e sociais regionais.

Faz-se necessário analisar a governabilidade da Frelimo e a sua relação com a população rural tendo em vista que os conflitos giram, segundo o autor, em torno de causas de natureza político-cultural e de natureza econômica.

Quanto à natureza político-cultural, tem relação com a forma com que as autoridades tradicionais locais foram tratadas após a independência. Representantes da religiosidade tradicional e herdeiros linhagísticos do poder local, foram acusados de colaboracionismo com o antigo regime colonial e de se tratarem de representantes de um tipo de “sociedade feudal e retrógrada”, que o regime marxista-leninista pretendia extinguir com as suas políticas de modernização. Pensando na ideologia de “poder popular” que o Estado-Frelimo pretendia implantar, as autoridades tradicionais compunham então um entrave para os planos do regime de governo pós independência.

Quanto à natureza econômica das mudanças proposta pelo Estado-Frelimo, estas basearam-se na proposta de coletivização dos meios de produção e a política das aldeias comunais. Esta política de aldeamento imposta pela Frelimo seria um dos fatores mais problemáticos que o novo regime teria que enfrentar, tendo em vista que provocou conflitos dentro das próprias populações rurais seja pelas áreas estipuladas pela Frelimo, que não se preocupava em respeitar locais sagrados para o culto aos antepassados ou em áreas de terrenos favoráveis para o cultivo (gerando disputas por terras melhores para o cultivo), seja quanto ao controle dessas “cooperativas”, que não necessariamente estariam sob o controle de antigas lideranças tradicionais. Vale ressaltar que a ideia de promover formas de reunir habitantes do campo em aldeias, favorece condições para o controle social e evitava que a população fosse influenciada pela guerrilha.

A reprodução econômica das populações rurais era baseado na produção familiar e o aldeamento imposto pela Frelimo obrigou muitas famílias a abandonar as suas terras de cultivo. As famílias que se instalavam mais tarde nas áreas determinadas pelo governo, muitas vezes iriam encontrar terras para o seu cultivo a quilômetros de distância de sua residência, dificultando a sua própria sobrevivência. Consequentemente, os camponeses passaram a procurar estratégias para lidar com a situação, entre elas o abandono das aldeias, ou a manutenção de uma casa de “fachada” – para não contrariar o Estado-Frelimo – enquanto produziam nas suas terras de origem.

Conforme havia pressão do Estado-Frelimo pelas aldeias comunais, associado às dificuldades impostas com isso às famílias de camponeses, estas afetadas profundamente pela a autoridade do governo central, passam a ser cooptadas pela atuação da Renamo.

Christian Geffray nos apresenta um panorama elucidativo sobre as populações que aderiam à Renamo, tal como as autoridades linhageiras e as populações de Macuana, que já vinham sendo marginalizadas há muito, enquanto os Erati, Chaka, Marave e Mmeto mantiveram-se leais à Frelimo, diante dos privilégios que recebiam.

Segundo a tese de Geffray, a Renamo encontrou abertura para sua atuação e disseminação no meio das populações rurais. Desta forma, em seus ataques, "seus combatentes tiveram o cuidado de destruir apenas as habitações das aldeias e de encorajar os habitantes a voltar para os seus territorios de origem, onde os seus bens e a sua integridade física seriam preservados” (Geffray, 1991, p. 24), ao mesmo tempo que procurava trazer para sua casa autoridades linhagísticas e chefaturas locais.

Após diversas conjecturas sobre a forma de associação e atuação da Renamo junto à população rural, Geffray coloca que diante de uma Renamo que evidentemente não é uma associação de bandidos, mas que também não é uma organização política e que não tem projeto para as populações de quem se aproveita há anos.

Concluindo as proposições de Geffray, ele vislumbra que o futuro da Renamo não seria muito duradou se continuasse daquela forma, tendo em vista que as populações rurais dissidentes não entraram na luta para sustentar um exército parasita. Restaria então desaparecer, ou adaptar-se para tornar-se uma organização política, que fosse pelo menos de seus dirigentes que poderiam se favorecer da disputa de forças instalada com a Frelimo.

 

[1] Povo originário da região norte de Moçambique e da Tanzânia.

[2] Colônia britânica que existiu na África austral entre 1888 e 1979 e que deu origem ao atual Zimbabwe.

[3] Resistência Nacional Moçambicana.

[4] Frente de Libertação de Moçambique.

[5]Revolução dos Cravos em 1974, que marca o fim da empresa colonial portuguesa.

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Bruno F.
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Graduação: Geografia (Universidade Estadual Paulista (UNESP))
Professor de geografia formado pela unesp e com 16 anos de experiência em sala de aula.
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