Ensaio antropológico sobre a curimba
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Por: Bruno F.
07 de Fevereiro de 2019

Ensaio antropológico sobre a curimba

Antropologia Geral

Ensaio antropológico sobre a Curimba

 

Bruno Farias da Silva

 

brunofgeo@gmail.com

 

“Se julgam atrasados os espíritos de pretos e índios, devo dizer que amanhã estarei na casa deste aparelho, para dar início a um culto em que estes pretos e índios poderão dar sua mensagem e, assim, cumprir a missão que o plano espiritual lhes confiou. Será uma religião que falará aos humildes, simbolizando a igualdade que deve existir entre todos os irmãos, encarnados e desencarnados. E se querem saber meu nome que seja este: Caboclo das Sete Encruzilhadas, porque não haverá caminhos fechados para mim."

Caboclo das 7 Encruzilhadas

 

  1. INTRODUÇÃO

 

O Candomblé e a Umbanda são expressões religiosas brasileiras de matriz africana. Por mais que seja consenso entre a literatura popular (sites, blogs, notícias sem grande aprofundamento teórico) a afirmação de que a Umbanda é uma religião de origem brasileira e que o Candomblé tenha sido trazido pelos escravos africanos, existem controvérsias sobre o assunto. Isso se deve ao fato que, quando analisamos obras como a de Pierre Verger[1], confirmamos as evidências de que diferentes nações e organizações sociais e estruturas de credos (vindas de diferentes partes do continente africano) avolumaram-se e espalharam-se pelas terras brasileiras.

Dessa forma, foi nas senzalas e nos cativeiros de escravos que reuniram-se africanos de diferentes regiões da África; que miscigenaram-se o culto a diferentes orixás.

Assim nasce o Candomblé no Brasil, com cultos a orixás, formado por povos oriundos de diferentes regiões do continente africano, tal como,

“(...)uma série de cultos regionais ou nacionais, Sàngó em Oyó, Yemoja na região de Egbá, Iyewa em Egbado, Ògùn em Ekiti e Ondô, Òun em Ijexá e Ijebu, Erinlé em Ilobu, Lógunèd em Ilexá, Otin em Inixá, Òàálà-bàtálá em Ifé, subdivididos em Òàlúfn em Ifan e Òàgiyan em Ejigbô...” (Verger, Pierre 2002)

A Umbanda tem sua formação em cultos afros, nos nativos, na doutrina espírita kardecista (Europa), na religião Católica, um pouco das religiões (filosofia) orientais (Budismo e Hinduísmo) e também na magia, pois é uma religião magística por excelência (Saraceni, 2001)

Especula-se que já se praticava a Umbanda no Brasil desde meados do século XIX. A Umbanda é conhecida como uma religião genuinamente brasileira. Ela tem como seu marco inicial a fundação do primeiro templo de Umbanda, a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, a partir da manifestação do Caboclo das 7 encruzilhadas, no médium Zélio de Moraes em 1908.

É importante salientar que existe uma grande ramificação do que inicialmente conhecemos com a Umbanda. Evidentemente após 1908 diversos ramos religiosos a partir da Umbanda vão se emaranhar.

Figura 1 Fonte: Renato Guimarães in "Umbanda brasileira", As Umbandas dentro da Umbanda, Vertentes. (https://registrosdeumbanda.wordpress.com/2010/07/09/as-umbandas-dentro-da-umbanda-%E2%80%93-grafico/ )

Da mesma forma que vão aparecer diversas ramificações da Umbanda, os ritos litúrgicos vão se diferenciar, bem como os cargos e funções dentro de um terreiro. De maneira geral, podemos elencar os seguintes cargos dentro de um terreiro de Umbanda, salvo diferenciações:

Figura 2 Fonte: http://monsenhorhorta.blogspot.com.br/2015_05_01_archive.html

Tendo em vista o estudo aprofundado que merece a estrutura hierárquica de um terreiro, proponho aqui um pequeno recorte centrado na figura do Ogã. Reafirmo o “pequeno”, tendo em vista o arcabouço teórico antropológico que precede esse ensaio, tanto oriundo de autores academicistas, quanto de figuras religiosas importantes no cenário nacional, tais como Roger Bastide, Pierre Verger, Raul Lody, Rubens Sarraceni e tantos outros.

Nessa pequena análise de uma figura do terreiro (o Ogã), pretendo analisar sua função utilizando os moldes analíticos fornecidos na obra maussiana do Ensaio sobre a Dádiva e na noção de Mana, procurando entender o Ogã como um articulador desse Mana, no terreiro através da Curimba que é um meio para a troca de dádivas.

 

  1. DESENVOLVIMENTO

 

A Curimba, também conhecida como corimba, consiste basicamente em toques de atabaque com letras que são orações e/ou louvações em forma de música com os mais diversos ritmos.

“O Ponto Cantado expressa uma linguagem específica dentro da simbologia do rito de Umbanda, a qual destina-se a comunicação de valores espirituais, próprios da religiosidade de seus adeptos (seja em seus símbolos, seja em sua comunicação de experiências vividas dentro daquela casa)” (Lúcio, 2016).

 

A Curimba pode estar presente na Umbanda, no Candomblé, no Tambor de Mina, na Quimbanda, na Macumba, no Xangô do Nordeste, no Catimbó, etc.

A sua utilização durante um ritual é destinada a momentos específicos da Gira. Assim, podemos então classificar os pontos cantados conforme a sua função:

ü  Pontos de preparação;

ü  Pontos de abertura;

ü  Pontos de defumação;

ü  Pontos de coroa da casa (entidades e orixás regentes da casa);

ü  Pontos de coroa do babalorixá/yalorixá;

ü  Pontos de chamada das falanges espirituais;

ü  Pontos de sustentação;

ü  Pontos de saudação (a determinada entidade);

ü  Pontos de louvação.

Para cumprir essas funções, os atabaques são entoados em diferentes ritmos, conforme a sonoridade que se pretende alcançar, bem como algumas combinações pré-determinadas pela tradição (normalmente utiliza-se o toque Ijexá para a Orixá Oxum, ou o Barra Vento para Iansã, por exemplo).

De maneira geral, os ritmos levados pelos atabaques podem ser classificados, salvo variações, em:

ü  Ijexá;

ü  Barra vento;

ü  Congo de Ouro;

ü  Muzenza;

ü  Cabula; entre outros.

Ogã é um ‘cargo’ dentro do terreiro e sua importância e função é variável de terreiro para terreiro, sendo que em algumas tendas de Umbanda como as que seguem a chamada ‘Umbanda Iniciática’ por exemplo, esse cargo já entrou em desuso.

Nos candomblés de raiz, e entendo aqui raiz como sendo os que procuram seguir as tradições mais antigas (mais seculares), eram atribuídas diferentes funções ao Ogã da casa sendo que existiam diferentes “tipos” de Ogã, conforme sua função - como o responsável pelo corte (Ogã de faca, aquele que sacrifica ritualmente os animais votivos), pelo toque (Ogã de toque, com a função de tocar atabaque), pelo canto (Ogã de canto, com uma maior destreza vocal para o canto das curimbas), Ogã colofé (título e cargo imediatamente abaixo do chefe da casa; tem a função de dirigir cerimônias, sacrificar animais, etc.) - entre outros. Isso também é variável de acordo com a nação que define a liturgia a ser seguida na casa; onde nação indica a procedência dos escravos que lhes deram origem na nova terra e das divindades por eles cultuadas.

Entre algumas nações que se destacam no cenário religioso brasileiro, podemos citar:

ü  Negros Bantos ou Nação Angola (seguiam a tradição religiosa de lugares como: Casanje, Munjolo, Cabinda, Luanda entre outros);

ü  Negros Yorubás ou Nação Ketu (Formado em sua maioria por povos de língua yorubá);

ü  Negros Fons ou Nação Jêje (formado pelos povos fons vindos da região de Dahomé e pelos povos mahins.)

Tambor é fonte de energia, é sagrado. Deve-se escolher com muito cuidado quem tem a honra de colocar a mão no couro e este deve lembrar que a ‘firmeza’ da corrente é sua responsabilidade. Um terreiro é um local de fé. Em sua maioria, os locais de fé são carregados de simbolismos e do silêncio que acompanha uma oração. Os atabaques entram quebrando esse silêncio e chamando para si toda a atenção do local.  A partir da firmeza das vibrações emanadas pelos atabaques o Ogã chama para si a responsabilidade que lhe foi confiada pelo chefe da casa, e assim inicia e conduz os trabalhos espirituais.

As batidas no tambor, o subir e descer de mãos, os estalos e os toques surdos no couro curtido no sol com dendê, faz vibrar as energias da casa e pode tanto dissipar energias ruins quanto atrair energias positivas. É através de seu toque que os processos conhecidos como incorporação efetuado pelos médiuns tornam-se mais fluidos e o terreiro é recoberto por energias espirituais, agora já materializadas pelas incorporações de exús, caboclos, pretos velhos, boiadeiros, baianos, e das mais diversas falanges de trabalhadores da Umbanda.

Cabe ao Ogã, intermediar e até coordenar as trocas de energia entre o desconhecido (mundo espiritual, inconsciente, psicológico) e o mundo material dos vivos. O Ogã inserido nesse meio de trocas, de idas e vindas de orações, pensamentos, pedidos, louvações e imerso em fé e crença é o responsável por intermediar o ‘mana’ nesse sistema de trocas de dádivas.

Mauss já definia a dádiva de modo amplo. Ela inclui não só presentes como também visitas, festas, comunhões, esmolas, heranças, um sem número de “prestações” (MAUSS, 1983, p. 147). A figura do Ogã como intermediário do sistema de trocas de dádivas que são concebidas em um terreiro, o caracteriza então como um intermediário de mana, pois estabelece-se um “vínculo de almas” (MAUSS, 1974, p.56)

As implicações acadêmicas ao afirmar que a mão do Ogã em contato com o couro sagrado dos atabaques tem a capacidade de emanar ou dissipar energias, pode despertar o olhar discrente dos estudiosos e cientistas. De fato tal discurso deve causar estranheza à grande maioria do público que não tenha qualquer afeição ou curiosidade pelo inexplicável racionalmente e nos moldes de uma ‘ciência mais tradicional’.

É nesse momento que vale questionar sobre a que distância coloca-se o racional do irracional. E aqui a Antropologia tem fundamental contribuição para o entendimento de alguns fenômenos que ocorrem dentro de um terreiro, pois segundo Levi-Straus,

“quando somos confrontados com fenômenos demasiado complexos para serem reduzidos a fenômenos de ordem inferior, só os podemos abordar estudando as suas relações internas, isto é, tentando compreender que tipo de sistema original formam no seu conjunto. Isto é precisamente o que tentamos fazer na Linguística, na Antropologia e em muitos outros campos”. (Levi-Strauss, p. 15, Mito e Significado, 1978)

 

  1. CONCLUSÃO

 

A partir do exposto é impossível não pensar a Umbanda e/ou o Candomblé como religiões que se construíram e se constroem enquanto fruto de tradições que atravessam tempo e espaço. A sua história reproduz o contato entre diferentes grupos sociais e importantes períodos da história que foram fundamentais para a formação da sociedade brasileira.

De matriz africana, mas que também é formada por contribuições da classe média católica e do kardecismo que se abrem à fisionomias mais populares em um processo de bricolagem para formar a Umbanda.

Considerando-se o Candomblé ou a Umbanda (aquela aos moldes de Zélio de Moraes) como um eixo norteador para todas as demais variações dessas expressões religiosas, com seus diversos simbolismos e rituais litúrgicos, nos deparamos com uma quantidade exorbitante de informações etnográficas que, na tentativa de não deixar nada de lado, o pesquisador faz recortes antropológicos em seus estudos. Assim desenvolveu-se esse ensaio. Procurando explorar a função ritualística do Ogã com base na análise Maussiana de Mana e troca de dádivas.

 

 

 

  1. BIBLIOGRAFIA

 

BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil: Contribuições a uma Sociologia das Interpenetrações das Civilizações, São Paulo: Pioneira, EDUSP, (1971 [1960]).

BASTIDE, Roger. Estudos Afro-brasileiros. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1973.

de Oliveira, José Henrique Motta. Das macumbas à umbanda: uma análise histórica da construção de uma religião brasileira. Editora do Conhecimento, 2008.

LEVI-STRAUSS. Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac & Naify, 2008.

LODY, Raul. O Povo do Santo: religião, história e cultura dos orixás, voduns, inquices e caboclos. 2ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006

MAUSS, M. 1974 [1923-24]. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In : _____. Sociologia e Antropologia. v. II. São Paulo : Edusp. _____. 1983. An intelectual self-portrait. In : BESNARD, P. (ed.) The sociological domain. Mimeo.

MAUSS, M.. Mito e Significado. Lisboa. Edições 70.

MAUSS, M.. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Papirus, 2002.

PERINE, Sergio; D’AMBROSIO, Ubiratan. O significado mítico-magístico das figuras geométricas na religião de umbanda e suas construções.

SARACENI, Rubens. Orixás Ancestrais – A hereditariedade divina dos seres. São Paulo: Madras, 2001.

SARACENI, Rubens. Umbanda sagrada – religião, ciências, magia e mistérios. 1ª Ed. São Paulo: Madras, 2001.

SENA, Severino. ABC do Ogã. São Paulo: Madras, 2012

VERGER, Pierre. Fluxo e Refluxo de escravos entre o golfo de Benin e a Bahia de todos os Santos: dos séculos XVII a XIX; tradução Tasso Gadzanis. 4ª ed. Ver. Salvador: Corrupio, 2002.

VERGER, Pierre. Orixás: os deuses iorubas na África e no Novo Mundo. Ed. Corrupio Círculo do Livro, 1990.

Sites acessados:

Fraternidade Espírita Monsenhor. Hierarquias na Umbanda. Disponível em: < http://monsenhorhorta.blogspot.com.br/2015_05_01_archive.html>. Acesso em 14 de Dezembro de 2016.

GUIMARÃES, Renato. As Umbandas dentro da Umbanda – Gráfico. Disponível em: <https://registrosdeumbanda.wordpress.com/2010/07/09/as-umbandas-dentro-da-umbanda-%E2%80%93-grafico/>. Acesso em 14 de Dezembro de 2016.

LÚCIO, Gregório. Umbanda de Nego Véio – A Curimba e o Ponto Cantado. Disponível em: http://umbandadenegoveio.blogspot.com.br/2011/08/curimba-e-o-ponto-cantado.html. Acesso em 14 de Dezembro de 2016.

 

 

 

[1] Fluxo e Refluxo – Do tráfico de escravos entre o golfo de Benin e a Bahia de todos os santos dos séculos XVII a XIX.

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