Ritos funerários e etnografia
Por: Bruno F.
11 de Dezembro de 2018

Ritos funerários e etnografia

A contribuição etnográfica de Malinowski

Antropologia

Ritos funerários entre os Iatmul[1] e a contribuição da descrição etnográfica de Malinowski

 

Pretendo com este breve ensaio, apresentar um pouco dos ritos funerários entre os Iatmul, através da descrição apresentada no livro “Naven[2]” de Gregory Bateson, amparado ainda na fundamentação teórica desenvolvida através da experiência etnográfica de Malinowski em seu trabalho junto aos trobiandeses[3] que serve de balizador para o fazer antropológico a partir do século XX.

A nível de esclarecimento quanto a estrutura do texto, proponho inicialmente uma breve apresentação de cada um dos dois autores em questão, bem como suas respectivas obras que contribuem para a fundamentação deste texto e as possíveis correlações que puderem ser estabelecidas entre eles no que diz respeito aos trabalhos antropológicos de cunho etnográfico, buscando aqui os ritos funerários como enclave para a discussão.

Gregory Bateson (1904-1980), nascido na Inglaterra e naturalizado norte-americano em 1956. Filho de William Bateson – o primeiro biólogo a usar o termo genética para descrever o estudo da hereditariedade – inicialmente seguiu os passos de seu pai e graduou-se em biologia, mas em meio à suas indagações iria encontrar na Antropologia Social uma metodologia fértil para suas pesquisas que, ao longo de sua vida, envolveram diversas áreas do conhecimento, mas sem nunca deixar sua herança biológica demais afastada de sua produção científica.

O “Naven” foi um livro publicado primeiramente em 1936, como resultado do aprofundamento da dissertação de mestrado de Gregory Bateson através de pesquisa de campo realizada entre os Iatmul na Nova Guiné entre a década de 1920 e 1930. O desenvolvimento teórico de seu livro tem como centro o Naven, por ser um ritual que condensava um amplo espectro de atitudes.

O método funcionalista se faz presente no livro Naven de Gregory Bateson através da especificidade da observação e descrição (observação participante, concatenação sincrônica, relato etnográfico), assim como um inegável encontro em sua escrita com o culturalismo, onde, para alguns autores como o próprio Geiger que prefacia seu livro, metaforizando esse encontro teórico com o encontro conjugal na vida entre Bateson e Margareth Mead.

Todavia faz-se necessário suscitar aqui discordâncias que se apresentam quanto à metodologia consagrada por Malinowski, tendo em vista que alguns autores distinguem entre o método funcional e a teoria funcionalista, no entanto, a separação não é absoluta e ainda apresentando no início de seu livro (mesmo que de forma não muito clara) um pedido de desculpas, por adotar inteiramente, ou não, a doutrina de Malinowski (Bateson, p. 54, 2008).

A utilização do Naven justifica-se por si só, diante da proposta da professora Suely Kofes para explorarmos o caráter etnográfico da Antropologia em nossa produção de texto, por ele se caracterizar como um trabalho antropológico de cunho etnográfico típico de sua época, porém que foge a certos padrões, pois, dentro da Antropologia, por exemplo, trabalhar além das instituições sociais, também os processos psíquicos e cognitivos envolvidos, buscando nuances mais profundas dentro da noção de cultura para desenvolver a ideia de Ethos[4] e Eidos[5] interpretados em fatos sociais entre os Iatmul.

Segundo Amir Geiger, que escreve a apresentação de seu livro, Gregory Bateson, enquanto cientista, no papel de antropólogo social, não tenta explicar o ritual Naven dos Iatmul,

“inventariando as supostas crenças que o sustentam, ou conjeturando sobre a história dos costumes nativos, ou comparando estes (a não ser de forma secundária e ilustrativa) a similares de outros povos. [...] Como pesquisador passou muitos meses vivendo junto aos iatmul, acompanhando de perto a vida da aldeia e tomando parte nas atividades usuais: pouco à vontade entre eles, mas disposto a entender a natureza de sua sociedade.” (Bateson, p. 24, 2008)

Em Naven, o livro resultante desse trabalho de campo e do árduo debruçamento sobre os dados coletados e situações levantadas, temos uma obra multifacetada e em que alguns momentos, suas discussões não propõem uma conclusão em si, mas uma abertura de possibilidades a serem trabalhadas e aprofundadas por pesquisas futuras, bem como torna-se interessantíssima a sua própria auto-crítica que o autor apresenta em forma de capítulo (capítulo 8 – “Problemas e métodos de abordagem”), ao colocar em questão o método e os dados apresentados e discutidos.

É interessante notar como essas múltiplas faces apresentadas no livro de Bateson, exemplificam de certa forma, toda a sua carreira, onde percorreu diversas áreas do conhecimento, sempre buscando compreender mais a fundo a sociedade (não só de seres humanos) e suas relações.

Dentro desta complexa obra, me chama a atenção o capítulo 11 – “Atitudes diante da morte” – onde o autor vai explorar, através de suas observações etnográficas, a sequência de acontecimentos após a ocorrência de uma morte na aldeia.

Bateson inicia seu relato neste capítulo com a descrição da situação em uma manhã em que depara-se com choros e lamentações pela morte de um rapaz da tribo que já estava doente há alguns meses. As lamentações eram intercaladas por elevações na intensidade a cada momento que algo de sua vida era rememorado pelos presentes.

A partir do breve comentário de um interlocutor que se encontrava um pouco afastado do círculo de lamentações pelo morto, Bateson nos leva a entender que era costume entre os nativos a exposição do corpo do morto numa canoa até o fim das cheias para só depois enterrá-lo, ou ainda, em outras áreas da Papua Nova-Guiné, mas ainda entre os Sepik[6] o morto ficaria na aldeia por um período antes de ser enterrado, mas em ambos os casos, o que observamos é uma imposição do governo proibindo-os de expor o corpo por longos períodos e consequentemente os nativos adaptando seus rituais funerários às condições impostas pelo governo oficial.

Sem grandes extravagâncias ou performances, segundo relatos de Bateson, ele nos informa que sua impressão daqueles eventos “foi a de estar testemunhando uma expressão suave e natural de dor diante de uma perda pessoal” (Bateson, p. 200, 2008).

Sempre presente em sua análise o seu interesse por padrões de comportamento, Bateson procura analisar diferenças comportamentais entre os homens e mulheres com relação a suas atitudes diante da morte. E assim irá construir seu relato baseado em comparações desses comportamentos, desde lamentações e choros em ambos os gêneros, bem como os papéis de cada um e de alguns parentes mais próximos no transporte e enterro do morto.

No dia seguinte saem bem cedo em um grupo de oito pessoas, sendo composto majoritariamente por homens, com exceção da mãe e da irmã do morto, em uma canoa para buscar um terreno mais elevado no pântano – e consequentemente mais seco – para enterrarem seu morto.

Sem maiores complicações o enterro fora realizado, seguindo algumas diretrizes ritualísticas sobre o posicionamento do corpo enterrado em relação ao posicionamento da aldeia, além de lhe depositarem em suas mãos um shilling[7], pressupondo-se alguns acontecimentos pós-morte, segundo suas crenças.

Um informante de Bateson comentou que normalmente a mãe e a irmã do morto ficam despidas durante o enterro, sendo uma menção “à nudez das mulheres quando se deitam diante do herói no naven e à nudez das suplicantes” (Bateson, p. 201, 2008).

Bateson ainda passa ao relato de outra situação diante da morte que ele acompanhou, após o enterro de um grande guerreiro em Palimbai, nesta ocasião, descrevendo mais detalhadamente a materialidade que era utilizada pelos vivos para fazer referência à situações, gostos e trabalho, que simbolizavam em vida aquele guerreiro.

De maneira geral, o que observamos na descrição apresentada por Bateson, além de elementos ligados à materialidade como formas de simbologia, é uma preocupação maior com as reações emocionais padronizadas segundo um determinado modelo, nos apresentando uma espécie de treinamento das pessoas em um determinado ethos, além de suas especificidades e peculiaridades entre homens e mulheres.

A partir de suas observações e da possibilidade de descrever ethos contrastantes, Bateson afirma que é tarefa do cientista “descrever as relações entre os fenômenos, e qualquer ethos[8] que ele encontre em uma cultura deve ser visto, não como ‘natural’, mas como normal para a cultura” (Bateson, p. 204, 2008). Ele nos esclarece que o antropólogo só tem ao dispor de seu relato, adjetivos e expressões da sua própria cultura, o que não necessariamente pode ser o suficiente para compor o relato etnográfico, diante da possibilidade de discrepâncias quanto a ideia de normalidade de uma cultura para outra.

Enquanto no trabalho etnográfico de Bateson, percebe-se uma preocupação em analisar as observações procurando identificar padrões de comportamento diante da morte, em Malinowski e sua obra Baloma, há um enfoque mais proeminente sobre a imaterialidade, mais especificamente nas condições do espírito (Baloma) no pós-morte e em como isso é compreendido pelo mundo dos vivos na mitologia, nas práticas cotidianas e em como esses dois mundos estão conectados.

Bronislaw Malinowski, nascido no final do século XIX, é considerado um dos pais da Antropologia Social e fundador da escola funcionalista[9]. Para Malinowski, dentro da perspectiva funcionalista, deve-se observar cada detalhe da cultura estudada, por mais simples que possa parecer, a fim de reconstruir de forma precisa a lógica daquela cultura. Como Frazer aponta no prefácio de “Argonautas do Pacífico”, o trabalho de Malinowski busca não só registrar, mas também entender o comportamento humano na sociedade. Daí a observação participante[10], metodologia desenvolvida pelo próprio Malinowski, vai se estabelecer como forma de análise balizadora para o fazer etnográfico e que também estará impregnada no trabalho de Gregory Bateson.

O longo período que Malinowski passou em meio aos trobiandeses etnografando e a sua aprendizagem do idioma nativo, proporcionando-lhe uma maior autonomia na coleta de informações sem o atravessamento de um intérprete, conferiu-lhe uma “multiplicidade de dados de alto valor científico referentes à vida social, religiosa e econômica” (Malinowski, 1922). O estudo do idioma nativo no campo do antropólogo irá caracterizar-se como uma prerrogativa importante para a observação participante de Malinowski.

Em Malinowski, quanto à etnografia de aspectos ligados à morte, destaco a escrita do ensaio “Baloma[11]; Os espíritos dos mortos nas ilhas Trobiand”, cuja pesquisa etnográfica foi realizada entre 1915 e 1916. Nesta referência, Malinowski nos apresenta detalhado e riquíssimo relato sobre a função primordial que a magia exerce na vida dos kiriwinianos, desde atividades econômicas, agricultura, caça, pesca e até mesmo a construção de canoas.

Entre os nativos de Kiriwina etnografados por Malinowski, observamos uma série de acontecimentos que se desenrolam a partir de uma morte, sendo que, a grosso modo, trata-se de uma alma que deixa o corpo e vai para o outro mundo, todavia essa transição é acompanhada de performances sobre o corpo do morto e de festividades acompanhadas de distribuição de alimentos aliadas à lamentações pelo morto. Entretanto,

“[...] estas actividades e cerimónias sociais nada tem a ver com o espírito. Não são executadas nem para enviar uma mensagem de amor e pesar ao baloma (espírito), nem para impedir o seu regresso; não influenciam o seu bem-estar, assim como não afectam o seu relacionamento com os vivos” (Malinowski, p. 157, 1916).

A partir do exposto acima, logo percebemos uma discrepância em comparação ao enterro entre os Sepik citado por Bateson, onde há claramente uma preocupação na posição e local de enterro do morto para a sua transição para o mundo dos mortos.

Faz-se aqui necessário esclarecer que como o próprio Malinowski nos explica, as cerimônias fúnebres entre os Kiriwianos são extremamente complexas e não é a proposta de seu referido texto descrevê-las escrutinadamente, tendo seu foco narrativo centrado nas crenças relativas aos espíritos dos mortos e à outra vida.

Para isso Malinowski por meio de sua observação participante e sendo mergulhado no cotidiano de seus interlocutores, irá nos apresentar algumas diferentes formas em que o espírito pode se apresentar, desde sua viagem do mundo dos vivos até a terra dos balomas que acreditam situar-se em outra região geográfica e até o seu retorno por meio da reencarnação que contribui para a ideia fisiológica de concepção entre os nativos, que é impregnada de sua própria mitologia.

Para Malinowski, o “trabalho de campo consiste única e exclusivamente na interpretação da realidade caótica, subordinando-a às regras gerais” (Malinowski, p. 256, 1916). Esta ideia remete à citação de Bateson, já enunciada acima, quando ele nos alerta para o fato de que está à dispor do antropólogo, em muitos casos, apenas o arcabouço cultural que contribui para a sua escrita, limitando assim as formas de apresentação da cultura etnografada.

Conforme o apresentado até aqui, arrisco conjecturar as similitudes que esses dois autores, e mais especificamente as duas obras aqui mencionadas, denotam pela aplicação de aspectos do método funcionalista na análise de suas respectivas sociedades e eventos diante da morte, bem como a etnografia como caminho para a coleta de informações para a reconstrução dos fatos sociais para os leitores.

 

Bibliografia

 Bateson, Gregory. Naven: um exame dos problemas sugeridos por um retrato compósito da cultura de uma tribo da Nova Guiné, desenhado a partir de três perspectivas. Edusp, 2008.

Malinowski, Bronislaw. "Baloma: os espíritos dos mortos nas ilhas Trobriand." Magia, ciência e religião (1916).

Malinowski, Bronislaw. "Argonautas do pacífico ocidental." São Paulo: Abril Cultural 2 (1978).

Documentário sobre a Papua Nova Guiné. Disponível em: <https://youtube.com/watch?v=r3SCecHEiL0&t=1043s>. Acesso em 16/06/2018.

 

Notas

[1] Povo austronésio da Nova Guiné que vivia nas terras baixas do curso médio do Sepik na Papua Nova Guiné

[2] Ritual cerimonialístico entre os Iatmul que precede ou encerra determinados acontecimentos sociais.

[3] Povo austronésio da Nova Guiné britânica localizado nas ilhas Trobiand e que foi etnografado por Bronislaw Malinowski em sua célebre obra “Os Argonautas do Pacífico Ocidental”, publicado originalmente em 1922

[4] Temperamento, padrão afetivo.

[5] Padrão cognitivo.

[6]https://youtube.com/watch?v=r3SCecHEiL0&t=1043s

[7] Unidade monetária que está ou esteve presente em muitos países, particularmente nas ex-colônias britânicas.

[8] Grifo do autor.

[9] A grosso modo, busca explicar fenômenos em termos das suas funções sociais.

[10] Grifo meu.

[11] Espírito do morto.

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Bruno F.
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