O que são "Mutações Constitucionais"?
Por: João C.
06 de Novembro de 2018

O que são "Mutações Constitucionais"?

A possibilidade de alteração informal (não-literal) de uma norma constitucional.

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Certamente, presume-se a ideia de que uma Constituição, por se tratar de verdadeiro instrumento caracterizador e organizador de um determinado Estado, deva ser estável. Entretanto, não devemos confundir a ideia de estabilidade com a de imutabilidade, sendo certo que nos mais diversos ordenamentos jurídicos existem mecanismos de alteração constitucional (v.g. as Emendas Constitucionais - art. 60 da CRFB/88). O objetivo deste artigo é tratar de um método informal de alteração constitucional: as chamadas "mutações constitucionais".

Como bem aludido pelo professor lusitano Jorge Miranda: "Se as Constituições na sua grande maioria se pretendem definitivas no sentido de voltadas para o futuro, sem duração prefixada, nenhuma Constituição que vigore por um período mais ou menos longo deixa de sofrer modificações – para se adaptar às circunstâncias e aos novos tempos ou para acorrer a exigências de solução de problemas que podem nascer até de sua própria aplicação" (MIRANDA, 1990, p. 131). No direito pátrio, como método formal de alteração da CF - ou seja, aquele com procedimento pré-estabelecido pela própria Carta Maior -, temos as já citadas Emendas Constitucionais. Vale ressaltar que balizas existem para delinear de que forma se dará essa modificação, havendo barreiras de cunho material (ou seja, nem toda matéria poderá ser objeto de emenda - como o caso das cláusulas pétreas do art. 60, § 4º da CF/88); ou de cunho formal - a necessidade de votação em dois turnos consecutivos, por 3/5 (três quintos) dos membros, em cada Casa do Congresso Nacional, para se aprovar a modificação constitucional (adição, supressão ou alteração em si da norma constitucional).

Acontece que nem somente de maneira "formal", quer dizer, obedecendo ao rito prévio estipulado, é que se pode alterar determinada norma constitucional. "Notadamente, transformações culturais, socioeconômicas, políticas, judiciais, dentre outras, acabam por acontecer durante a vigência de um ordenamento constitucional sem que haja a mudança do texto literal da norma constitucional" (CARVALHO; COSTA, 2018, p. 110). Em outras palavras, determinadas modificações no espaço político merecem ser acompanhadas pela Carta Maior, ainda que não se altere o texto em si, mas sim se busque um novo alcance da norma, uma nova interpretação à luz dessa tranformação ocorrida no contexto histórico-cultural. Neste contexto, podemos definir as "mutações constitucionais" como sendo alterações informais do texto constitucional, consubstanciadas na transformação do sentido e alcance da norma constitucional, sem que ocorra, todavia, a modificação literal ou expressa de seu texto (BARROSO, 2010, p. 124).

Como exemplo tradicional deste tipo de transformação informal constitucional, temos o que ocorreu com o conceito de família na Constituição brasileira de 1967/1969. O texto constitucional, à época, trazia em seus artigos 167 (1967) e 175 (1969) que a família era constituída pelo casamento, tendo proteção dos Poderes Públicos. De certo que nessa situação se excluia a proteção jurídica familiar àquelas situações em que homens e mulheres convivessem como casados fossem (atual regime de união estável), mas sem a formalização da união. Em que pese a literalidade dos dispositivos, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 60.657/GO no ano de 1970, decidiu pela proteção desse novo tipo de relação/convivência, levando em conta as modificações e evoluções das relações sociais e concepções culturais, mesmo que carecesse ao casal a união matrimonial cível (PEDRA, 2010, p. 17).

Fenômeno correlato ocorreu há pouco tempo atrás, no tocante à consideração como família (e consequente proteção constitucional e jurídica) de casais homoafetivos. A CRFB/88, em seu art. 226, § 3º dispõe que “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. "A despeito de o texto constitucional dizer que somente a união entre homem e mulher constitui a unidade familiar e merece proteção do Estado, podemos dizer que houve mudança no sentido do texto sem sua real alteração, eis que a transformação sociocultural não foi acompanhada pela reforma [formal] da Carta, mas já se é possível, inclusive, o casamento civil destas pessoas" (CARVALHO; COSTA, 2018, p. 111). Ou seja, não houve a modificação literal da norma, mas em virtude da transformação sociocultural, jurídica, e até mesmo política - com a intensificação de movimentos sociais e consequentes manifestações a favor desses direitos - passou-se a garantir proteção a essas novas formas de família[1]. Nesse sentido, o art. 1º da Resolução nº 175/2013 do CNJ: “É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo”. Salientemos que em momento algum a extensão da proteção da familia viola princípios ou fundamentos basilares constitcionais, eis que os artigos 3º e 5º da CF/88 garantem e pregam a igualdade perante a lei, sem distinções de qualquer natureza.

Mas, existem limites para essa alteração informal do sentido e alcance da norma? Com toda certeza, sim. A doutrina aponta para a existência das denominadas "mutações constitucionais inconstitucionais", aquelas que de alguma forma ofendem o "espírito" da Constituição. A inconstitucionalidade de determinada mutação pode advir, num primeiro momento, da clara violação a preceitos fundamentais, ao sentido, ao espírito constitcional, sendo consideradas manifestamente inconstitucionais, facilmente perceptíveis, palpáveis (não se pode, via mutação constitucional, instituir a pena de morte em tempos de paz, por exemplo). Em segundo lugar, temos aquelas que podem desvirtuar em relação a limites materiais ou formais colocados pelo Constituinte, e de observância obrigatória dos órgãos de aplicação - ex: mutação constitucional que vise abolir a forma federativa de Estado. Por fim, pode-se representar a ausência de controle de constitucionalidade apta a ensejar a aplicação de um sentido divergente das diretrizes propostas pela Constituição (FERRAZ, 2015, p. 244-245). "Em um cenário de normalidade institucional, [essas mutações inconstitucionais] deverão ser rejeitadas pelos Poderes competentes e pela sociedade. Se assim não ocorrer, cria-se uma situação anômala, em que o fato se sobrepõe ao Direito” (BARROSO, 2010, p. 153). Um clássico exemplo de mutação inconstitucional vivenciado na história brasileira foi a investidura do Marechal Floriano Peixoto, à época vice-presidente, na Presidência da República. O art. 42 da CF de 1891 prescrevia que, havendo a vacância de um dos cargos (Presidente ou Vice) antes de decorridos dois anos do período presidencial, seriam convocadas novas eleições. "Apesar do texto constitucional, o Congresso Nacional permitiu que o vice-presidente assumisse, embora a renúncia do presidente da República tivesse ocorrido antes de findar o prazo de dois anos" (PEDRA, 2010, p. 22).

Percebe-se que é sim possível a alteração em uma Constituição sem a modificação literal de seu texto, fenômeno conceituado como mutação constitucional, representado como sendo a extração de um novo sentido e um novo alcance da norma constitucional. E é cediço que tal ocorrência se dá pela própria transformação que a realidade da sociedade sofre, seja por meio da política, da cultura, do trabalho, etc., ao passo que nem sempre o constituinte derivado irá acompanhar essa evolução, emendando a CF e adaptando-a a essa nova realidade. Contudo, possível que essas transformações atentem contra o próprio "espírito" da Carta Maior, seus fundamentos, objetivos, princípios basilares, ocasiões em que estaremos diante de mutações inconstitucionais, situações em que o fato se sobrepõe ao direito e merecem ser rechaçadas.

 

REFERÊNCIAS:

 

[1] Para maior aprofundamento no tema, indicamos a obra coletiva "Os novos paradigmas do Direito de Família e as Políticas Públicas", elaborado por alunos do programa de Mestrado e da Graduação da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (FCHS - Unesp), no final de 2017. ALVARENGA, Maria Amália de Figueiredo Pereira (org). Os novos paradigmas do Direito de Família e as Políticas Públicas. Franca: Cultura Acadêmica (Unesp), 2017.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

CARVALHO, João Victor Carloni de; COSTA, Yvete Flávio da. Efeitos vinculantes e “erga omnes” em declaração incidental de inconstitucionalidade: mutação constitucional do art. 52, X da Constituição?Revista Publicum (UERJ). Rio de Janeiro, v.4, n.1, 2018, p. 107-125.

FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de transformação da Constituição. 2 ed. Osasco: EDIFIEO, 2012.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Tomo I – Preliminares; O Estado e os sistemas constitucionais. 5 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1990.

PEDRA, Adriano Sant’Anna. As mutações constitucionais e os limites impostos pela Constituição. Revista brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 101, p. 7-36, jul/dez, 2010. Disponível em: http://www.pos.direito.ufmg.br/rbepdocs/101007036.pdf.

 

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Mestrado: Direito (Universidade Estadual Paulista (UNESP))
Professor de Direito, formado e mestrando pela UNESP. Ministro aulas de explanação, revisão, exercícios, preparação para concursos e OAB..
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em 6 de novembro de 2018

Escrevo esta mensagem para parabenizar-lhe sobre o artigo acima. Está simplesmente sensacional!!
Obs: Gostaria da sua autorização para poder compartilhar este artigo com colegas de profissão.

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em 06 de Novembro de 2018

Obrigado, Letícia, fico

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em 06 de Novembro de 2018

Obrigado, Letícia! Fico lisonjeado com o elogio, sinta-se à vontade para compartilhar com quem quiser.

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