
Adeus às escolas

em 17 de Outubro de 2022
Casa ou lar?
Atualmente é comum ouvirmos previsões a respeito do fim da pandemia. Previsões otimistas e pessimistas, no atacado e no varejo. Algumas delas fazem referência ao funcionamento da economia, outras sobre trabalho e outras ainda falam de uma nova convivência doméstica. A quarentena criará o hábito de dividir as tarefas do lar? A convivência em casa será mais solidária?
O que salta aos olhos de um historiador é a maneira como os conceitos de casa e lar são usados como sinônimos. Mas eles não são. A casa foi o conceito mais utilizado historicamente. Casa é um lugar onde as pessoas iam dormir e fugir do relento, um abrigo contra as intempéries, contra os perigos sociais e em tempos mais remotos da humanidade um refúgio contra os perigos naturais mais imediatos, feras e animais peçonhentos. Está inscrito no conceito de casa a ideia de um refúgio, um abrigo.
Já o conceito de lar, o famosos home sweet home hoje em dia meio fora de moda, mas abundantemente encontrado nas almofadas que as vovós bordavam antigamente, então, este conceito superou o conceito do lugar como um simples abrigo e mais, esse conceito tem data, ele foi criado historicamente, portanto não é natural. O momento da criação do lar tem a ver com a ascensão do modo de vida burguês, ou melhor, com o espalhamento de um ideal de vida simultaneamente com a chegada ao poder das classe burguesas; período que tem início lá nos séculos XV e XVI com as expansões marítimas, mas se consolida como projeto social nos séculos XVIII e XIX. É neste período, a partir do continente europeu, que muitos conceitos são introjetados em outras organizações sociais, entre eles o conceito de lar.
Do que é formado o conceito de lar? Ele se apropria da ideia de casa como refúgio, sem dúvida, mas foram acrescentadas outras formas psicossociais em ascensão que complementam o conceito de lar, por exemplo, a ideia de que a família nuclear é o centro da vida. A família nuclear supera a comunidade como responsável maior pela formação das pessoas para viver em sociedade e para isso ela necessita de um lugar próprio, recôndito, para que seus integrantes ganhem uma grau maior familiaridade e intimidade. Ou seja, no processo de consolidação do lar vemos, simultaneamente, o processo de esfriamento da comunidade, que deixa de ser o lugar ideial de formação dos seus integrantes e passa a ser o lugar de recepção de indivíduos teoricamente já amadurecidos. Podemos olhar os resquícios de sociedades originárias e perceber como a comunidade era tão mais importante que a família, sociedade tribais africanas e americanas ainda guardam traços fortes da comunidade. A título de exemplo, os índios pataxós brasileiros guardam o costume de comunicar o casamento primeiro para comunidade, os anciãos da comunidade devem abençoar, validar o casamento, para só depois, com o consentimento da comunidade, informar os pais do noivo e da noiva.
No entanto, será que todos possuem lares, dentro dessa definição da familiaridade, intimidade e aconchego? No Brasil, temos mais lares ou casas? Talvez alguns dados nos ajude a solucionar essas perguntas.
No Brasil de 2020, 50% das casas não possuem coleta esgoto sanitário. 35 milhões de brasileiros vivem sem água tratada. 25% das moradias contam com três ou mais pessoas vivendo em apenas um cômodo. Portanto, se analisarmos bem rapidamente esses dados, veremos que muitas pessoas têm casas, mas não têm lar, justamente porque essas moradias não favorecem a sociabilidade, o conforto e o aconchego que aquela primeira ideia de lar tenta nos transmitir. Sem contarmos a centenas de milhares de pessoas que não tem casa, muito menos lar, são os chamados moradores em situação de rua.
Portanto, para muitas pessoas o lugar de sociabilidade, de conforto e aconchego são as ruas, pois o lugar de moradia inviabiliza falarmos na formação de um lar clássico.