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em 12 de Janeiro de 2020
Língua Portuguesa para surdos
Obra resenhada:
SALLES, Heloísa M.M.L, FAULTICH, Enilde, CARVALHO, Orlene Lúcia et alii.Ensino da língua portuguesa para surdos: Caminhos para a prática pedagógica. Brasília, 2004. p. 37-53.
Acometidos por preconceitos e invisibilidade, por tanto tempo, os surdos brasileiros sofrem, ou sofriam, com a silenciosa violação de seus direitos à cidadania.
Visando mitigar tal problema, rumo à sua solução final, na obra aqui analisada, Salles et alii têm como objetivo discutir acerca dos sentidos tomados para a cidadania na educação de surdos e destacar a ideia de cidadania ativa no ensino.
E, mediante o proposto pela Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional(9394/96), pelos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, em particular, referentes à sua introdução e aos temas transversais, Cidadania na LDB e nos PCN’s para o Ensino Funda-mental, temos uma indagação reflexiva e pertinente: “Que forma de educação convém às demo-cracias?” Ora, o princípio da educação, em uma república, é a transmissão do respeito à lei funda-do no conhecimento das instituições”. p.161(1).
Neste contexto, os autores de “Ensino de língua portuguesa para surdos: Caminhos para prática pedagógica”, cuja obra destina-se à formação e qualificação profissional de professores em geral, demonstram exercer, como agentes públicos, o papel de fomentadores da cultura surda, dando a esta cultura um protagonismo que, até aquele momento, 2004, ano de sua publicação, por muito tempo, no Brasil, não o teve. Prova disso é que a obra ora resenhada faz parte do programa nacional de apoio à educação dos surdos, do Ministério da Educação.
Neste sentido, uma sociedade multicultural e fraterna poderá ser construída com o apoio tanto de consultores surdos quanto de profissionais do magistério, além de toda a comunidade surda.
Esta obra tem como finalidade discutir algumas das especificidades práticas de letramento de surdos, considerando que tais práticas são constituídas a partir de vivências sociais de língua-gem que envolvem duas línguas - Libras e Português, línguas que compartilham o mesmo espaço/ tempo nos diferentes locus de atividade e que possuem forças econômicas, socioculturais e ideo-lógicas não-simétricas. Essa particularidade linguístico-discursiva determina que práticas de letra-mento em ambas as línguas sejam postas em inter-relação, estabelecendo, no âmago delas, diálo-gos, nem sempre pacíficos, entre línguas/culturas. Considerando tais pressupostos, apresenta-se uma proposta educacional na qual os alunos, a partir da vivência da Libras em sua dimensão discursiva/genérica, têm o desenvolvimento de práticas de letramento nas duas línguas. Busca-se, com este processo, uma ressignificação transformadora da relação histórica que tem constituí-do o diálogo que as comunidades surdas têm estabelecido com a língua portuguesa, como um espaço de atos concretos.
Salles, coordenadora da obra que trata da cultura surda e sua inserção na sociedade brasileira, formula sua reflexão em duas partes, sendo que a primeira parte compreende três unidades abordando a situação linguística e, principalmente, cultural do surdo e considera a aquisição da linguagem numa perspectiva biológica e psicossocial, colocando o ensino do português como segunda língua para os surdos no plano das políticas públicas referentes ao idioma português.
Quanto à segunda parte, que não é objeto desta resenha, consiste de projetos educacio-nais voltados para o ensino de língua portuguesa.
“Quebrar o paradigma da deficiência é enxergar as restrições de ambos: surdos e ouvintes2”. É o que ocorre quando Sam, personagem narrado na obra, à página 37, perguntou à sua mãe se somente a sua “nova” amiga e a mãe dela eram ouvintes. A mãe de Sam lhe explica que era a sua família, a família de Sam, que era incomum e não a da amiga. Porém, ainda de acordo com o texto, “Sam não possuía a sensação de perda” (…) pois “eram os vizinhos que tinham uma perda, uma desabilidade de comunicação”. Notadamente, a narrativa expõe que "deficiente" mesmo é a sociedade em geral pois não compreende a diversidade como componente da cidadania e produz, assim, exclusão social, cultural, econômica, etc., de parcela significativa de indivíduos relegados a serem "meio-cidadãos".
Wrigley, comparativamente, explica, à página 39, que “a surdez é um ‘país’ sem um ‘lugar próprio’; é uma cidadania sem origem geográfica, ou seja, o surdo vive como um estrangeiro em seu país. Situação que parece análoga à do povo Curdo, nação que, no oriente médio, ocupa territórios da Síria, Turquia e Iraque, mas não sentem pertencer a algum deles, são estrangeiros em seu próprio solo. Assim são os surdos no Brasil, sem uma identidade reconhecida e aceita.
figura 1
Assim, segundo Perlin, a identidade que o surdo assume dentro da sociedade pode ser definida de cinco formas: Flutuante (se manifesta de acordo com o mundo ouvinte); Inconformada (não capta a representação da identidade ouvinte e se sente numa identidade subalterna); De transição (contato tardio com a comunidade surda e tem dificuldade de se comunicar); híbrida (nascem ouvintes e se ensurdecem) e Surda (está no mundo visual, ou seja, desenvolve a comunicação por sinais e são intitulados sujeitos culturais).
O contexto do texto, ao retratar a origem de um de nossos problemas, ou seja, a 'questão surda', visa a cultura em geral e a cultura de grupos de surdos nela inserida, mas não tanto reconhecida, visa nossa história, nossa postura frente a um determinado grupo social, postura esta camuflada e ingressada numa sociedade que desconhece, ou finge que desconhece, sua função social de reconhecer diversidades presentes em seu seio. O "ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA PARA SURDOS" inova ao sugerir uma reformulação política dos conceitos existentes em nós, na formulação de um currículo que aborde todas essas questões levantadas e promove maior e melhor integração social.
No que se refere a algumas ressalvas quanto ao compêndio ora analisado, ressaltamos que quando Skliar, em 1998, se expressa e “defende que é possível aceitar (grifo meu) o conceito de cultura surda por meio de uma leitura multicultural, em sua própria historicidade…” estaria, hoje, anacronicamente posicionado, pois não é mais aceita tal colocação, após 20 anos, em 2018, devido aos avanços conquistados no campo da cidadania. Além disso, quando os autores dessa obra resenhada citam a formatação de seu texto, falam que ela está dividida em duas partes com três unidades, mas não esclarecem que se trata, na verdade, de dois volumes, o 1 e o 2, sendo que a três unidades citadas estão no volume 1, e não apenas duas partes de um mesmo livro.
Finalmente, apesar das restrições feitas ao texto do Mec, podemos afirmar que a oficialização da LIBRAS foi um feito glorioso para a Comunidade Surda brasileira. Pois prevê intérpretes em escolas, hospitais, repartições públicas, estabelecimentos comerciais etc., e abre amplas possibilidades de opções que devem ser aproveitadas para se dar ao surdo o acesso à sua cultura, à sua história e à história da humanidade. Educadores e formuladores das políticas educacionais podem descobrir o seu papel nesse cenário, cientificando-se de que cabe ao Surdo o papel principal, um papel que pode influir significativamente no protagonismo surdo, na sua identificação consigo mesmo e com o mundo de uma maneira rica e multicultural. Devem, portanto, promover uma educação fundamentada numa experiência global a ser organizada dentro dos quatro pilares do conhecimento propostos pela UNESCO: aprender a conhecer, a fazer, a viver juntos e a ser.
Referência Bibliográfica:
http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/lpvol1.pdf