Até o ministro da educação pode aprender por aqui
em 12 de Janeiro de 2020
O QUE É LETRAMENTO?
Qual será a percepção e a concepção de homem e de mundo embutida na composição profissional do candidato a dirigente escolar, a gestor dos destinos de milhares de pessoas, a professor alfabetizador e agente envolvido nos procedimentos pedagógicos escolares? A alfabetização escolar exige do alfabetizador que este assuma uma posição pedagógica perante os grandes paradigmas político-ideológicos da sociedade em que esteja envolvido em sua época (capitalismo, socialismo, etc), em relação às teorias organizadoras do pensamento, aos princípios, às metodologias, às estratégias, às escolhas de recursos didáticos, etc.
Este autor já tem elaboradas algumas ideias e opiniões a respeito da alfabetização e do letramento, porém, são incipientes. Os argumentos presentes neste texto não são, necessariamente, a favor ou contra esta ou aquela posição. Também não pretende, neste momento, desvendar quais foram os interesses e os determinantes ideológicos que resultaram em uma teoria pedagógica ou em uma certa representação de idéias a respeito de alfabetização e letramento na sociedade. Isso exigiria um profundo e prolongado estudo. Interesse e oportunidade, porém, não faltarão.
Por estarmos no início de uma caminhada (habilitação em gestão escolar), não temos condições, ainda, de alimentar uma discussão sobre a divisão dualista, claramente desenvolvida por alguns autores, a respeito das possíveis diferenças ou semelhanças entre alfabetizar e letrar. Adotamos uma posição próxima daquela da ilustre pedagoga Emília Ferreiro, com o argumento desta de que em alfabetização já estaria compreendido o conceito de letramento, ou vice-versa (FUNDAMENTOS DA ALFABETIZAÇÃO, AULA 06, págs. 35-37). Assim, alfabetizar e letrar necessariamente devem ser simultâneos.
Fazendo um breve retrospecto da situação escolar no Brasil, podemos dizer que a alfabetização escolar no Brasil iniciou, a partir da década de 1980, um período de novos questionamentos e buscava novos enfoques pedagógicos no intuito de resolver o enorme abismo no qual ainda se encontrava a situação da educação neste país, ou seja, muito aquém do esperado e desejado. O foco das discussões passou a ser a emergência de novas concepções de alfabetização, baseadas em resultados de pesquisas na área da psicologia cognitiva e da psicolingüística. Tais pesquisas apontavam para a necessidade de se compreender o funcionamento dos sistemas alfabéticos de escrita e de se saber utilizá-lo em situações reais de comunicação escrita. Se uma alfabetização básica já estava em curso, com a universalização do ensino básico, havia escola para toda criança em idade escolar, cabia agora atacar o chamado analfabetismo funcional.
Se a sociedade está centrada na escrita com suas múltiplas funcionalidades (bilhetes, cartas, bulas, receitas, poesias, desenhos, ícones metonímicos (a parte pelo todo, como por exemplo, uma colher e um garfo indicando um restaurante de beira de estrada), seja para informar (notícias, gráficos, tabelas, etc.), divertir (fábulas, contos, crônicas, etc.), requerer (requerimentos, ofícios, etc.), etc., os sujeitos, objetos alvos do letramento, devem saber ler, escrever e interpretar adequadamente o que se tem revelado. Porém, muitas vezes, partindo de uma observação empírica na lida cotidiana como professor de ensino fundamental e médio, noto que a alfabetização tal como está sendo desenvolvida nos ambientes escolares tem sido insuficiente para responder adequadamente às demandas contemporâneas.
É preciso ir além da simples aquisição do código escrito; é preciso fazer uso da leitura e da escrita no cotidiano; apropriar-se da função social dessas duas práticas; é preciso letrar-se e também socioletrar-se, ou seja, aprender a ler o que a sociedade produz dentro de seu contexto sócio-cultural.
Por exemplo, em alguns provérbios tais como os seguintes: "quem casa, quer casa", "Com tais premissas ele sem dúvida leva-nos às primícias" (Padre António Vieira), "Exportar é o que importa"' (Delfim Netto), paranomásticos, e expressões outras de uso corrente, não basta letrar ou alfabetizar a criança. Nos exemplos citados, uma criança alfabetizada poderia até lê-los, mas estaria impossibilitada de compreender os seus sentidos. Naturalmente, letrar e alfabetizar não são simplesmente uma questão de figura de linguagem paranomástica (paranomásia ou paronomásia, figura estilística que consiste no emprego de palavras parônimas -com sonoridade semelhante- numa mesma frase, fenômeno que é popularmente conhecido como trocadilho. A paranomásia resulta sempre da semelhança fonética ou sintática de dois enunciados cuja conjunção, comparação ou subentendido -enunciado elíptico, não referido diretamente- cria um efeito inesperado, intencional ou não, aproveitando a sonoridade similar e o efeito de surpresa sobre o ouvinte ou o leitor da junção de significados díspares num mesmo contexto). Mas, e o que dizer do poema “O que é letramento?”, tema desta dissertação? A linguagem poética pode ser decifrada sem antes um conjunto de pré-requisitos por parte da criança? Podemos ter certeza da compreensão de certos trechos tal como este?:
“Letramento é sobretudo,
Um mapa do coração do homem,
Um mapa de quem você é,
E de tudo o que você pode ser”.
Além do domínio do uso das letras, das palavras e das expressões, espera-se da criança compreensão a respeito das idéias no contexto do texto, o que na média da população estudantil brasileira não vem sendo alcançado, conforme comprovam os resultados de provas em escolas públicas, tais como a Prova São Paulo, o SARESP, o ENEM, a prova internacional PISA, etc.
Não é incomum ainda hoje presenciarmos situações nas quais são utilizados rótulos como distúrbios para justificar o fracasso daqueles que não se adaptam a um certo sistema pedagógico escolar. Estamos atribuindo a causas orgânicas ou sociais os fatores de dificuldades de aprendizagem mais facilmente removíveis, como: déficit de atenção, problemas no processamento da informação recebida e comportamento social inapropriado. Ou, ainda, carregada pela imagem negativa da criança da "classe baixa", a escola pode estar transformando questões de ordem social, que têm influência sobre as dificuldades encontradas no processo tradicional de ensino-aprendizagem, em problemas de saúde mental. E joga-se para outras esferas (médicas) as soluções de problemas escolares. A prática escolar adotada pode estar na gênese do fracasso dos alunos. Ao impor-lhes currículos elitistas, práticas de ensino-aprendizagem desvinculadas de sua realidade e um sistema avaliativo que não se adaptam á uma certa clientela, a escola contribui para o atraso do desenvolvimento cognitivo e afetivo de grande parte das crianças.
Com a divulgação das pesquisas sobre a psicogênese da língua escrita (Ferreiro e Teberosky 1986) o enfoque construtivista tornou-se, sem dúvida, um dos mais influentes na elaboração de novas propostas de alfabetização, pois além de revelar a evolução conceitual por que passam as crianças até compreenderem como funciona o nosso sistema de escrita, incorporou a idéia defendida por Goodmann (1967) e Smith (1971) de que ler e escrever são atividades comunicativas e que devem, portanto, ocorrer através de textos reais onde o leitor ou escritor lança mão de seus conhecimentos da língua por se tratar de uma estrutura integrada, na qual os aspectos sintáticos, semânticos e fonológicos interagem para que se possa atribuir significado ao que está graficamente representado nos textos escritos.
A importância das práticas sociais de leitura e escrita também teve o suporte dos estudos que no âmbito da lingüística, da sociolingüística e da psicolingüística enfatizaram as diferenças entre as modalidades língua oral e língua escrita e demonstraram como muitas crianças se apropriavam da linguagem escrita através do contato com diferentes gêneros textuais, explorando através de suas interações com adultos alfabetizados a leitura e a produção de textos, mesmo antes de estarem alfabetizadas de forma convencional enquanto que outras, apesar de alfabetizadas, apresentavam uma ausência de domínio da linguagem utilizada nas formas escritas de comunicação. (Rego 1986, 1988; Abaurre 1986; Kato, 1987).
Concluindo, cabe ressaltar e discutir as atitudes que nós, profissionais da educação, devemos adotar nestes tempos atuais visando a atingir uma eficiência ainda não alcançada no campo escolar. É necessário compreendermos suficientemente as características individuais dos alunos e os fatores intra e extra-escolares que contribuem para a melhoria dos rendimentos escolares.