Fé e modernidade são palavras contraditórias. Apesar disso, no final da década de 30, um arquiteto, um pintor e um escultor romperam os padrões vigentes e venceram preconceitos para atender aos anseios de uma ordem de missionários e da comunidade de imigrantes italianos. Construíram num bairro operário uma igreja moderna, que representava ao mesmo tempo, a memória do país de origem e a esperança de prosperidade. Eram eles: o arquiteto Leopoldo Pettini, o pintor Fulvio Pennacchi e o escultor Galileo Emendabili. A iniciativa da construção da igreja partiu do Padre Francesco Milini, superior provincial da Congregação Carlista, em 1937.[1] A obra contou com o empenho dos expoentes da colônia italiana em São Paulo para angariar os recursos necessários.
O lugar escolhido foi o bairro do Glicério, na época um centro operário localizado entre Cambuci, Moóca e Liberdade, cortado pela rua General Glicério. Padre Milini, com o dinheiro arrecadado, comprou um terreno de 10.000 m², que ocupava toda uma quadra, próxima à fábrica de cigarros Sudan. O projeto não se restringia apenas à construção da igreja, e sim de um verdadeiro centro de convivência comunitária onde seria possível receber os imigrantes recém-chegados e preservar a cultura italiana.[2]
A maioria das igrejas no Brasil era no estilo neogótico, mas independente disto, os arquitetos eram instruídos de que a função básica da igreja era converter o visitante num devoto, criando assim igrejas em que predominava uma atmosfera mística. A partir da conferência realizada em Malines, na Bélgica, em 1909, a finalidade primordial da construção de uma igreja passa a ser puramente prática: dar abrigo à liturgia ou ao culto público.[3]
Segundo Carlos Oswald, em artigo na revista Fede e Arte, publicada pelo Vaticano em 1954, o gosto moderno não era compreendido nem apreciado pela maior parte dos fiéis, tampouco pelo Clero Católico. Por essa razão, são raras as igrejas de arquitetura ou decoração artística modernas. Entretanto a arte moderna, em suas várias formas e tendências, não era hostilizada pela Igreja, que somente se opunha às deformações irreverentes e as imagens insólitas ou incompreensíveis ao público.[4]
Quando a II Guerra já havia se iniciado e os imigrantes, fugindo do horror e da morte, começaram a chegar aos milhares em São Paulo, a igreja se viu compelida a ampliar seu papel dando a essa gente, além do conforto espiritual, o conforto físico. No complexo da igreja, foram então projetados a casa paroquial, uma creche e na quadra vizinha da rua Almirante Muriti, um albergue. Foram construídas também salas para cursos profissionalizantes e de catequese para os filhos de imigrantes e operários que trabalhavam nas indústrias das redondezas. A Igreja Nossa Senhora da Paz, representou dessa forma, “a súplica continua da alma religiosa do povo paulista pela paz mundial, em perene oração diante da Rainha da Paz, pedindo a pacificação mundial”.[5]
No projeto, o arquiteto Leopoldo Pettini demonstra erudição ao estabelecer um diálogo consistente com a tradição italiana e ao mesmo tempo, ser moderno por não imitá-la. Leonardo Arroyo em seu livro “Igrejas de São Paulo”, publicado em 1954, afirmou que a Igreja N. Sra. da Paz “é o mais original de todos os templos de São Paulo.”
Pettini seguiu alguns fundamentos da arquitetura moderna: ausência de ornamentos, funcionalidade, racionalismo e comprometimento com os aspectos estruturais e econômicos. Ao mesmo tempo, interpreta com uma linguagem formal moderna, diversos elementos históricos da arquitetura greco-romana e italiana. Apesar da arquitetura inovadora e arrojada da Igreja Nossa Senhora da Paz, na época nenhum teórico da arquitetura manifestou por escrito suas impressões sobre esse projeto e a razão disso é que a arquitetura modernista não aceitava concessões. Qualquer referência ao passado poderia ser confundida como um retrocesso à arquitetura historicista, a qual era duramente combatida pelos arquitetos modernistas.
Por outro lado, a modernidade do projeto gerou grande resistência tanto por parte dos clérigos como por parte da sociedade. Quando a construção estava em seus alicerces, chegou a notícia de uma denuncia às autoridades eclesiásticas segundo a qual o Padre Mario Rimondi estava construindo um “monstrengo modernista” no Glicério. Felizmente, tudo não passou de intriga e a Cúria Metropolitana manteve firme apoio à iniciativa dos padres carlistas.[6]
O projeto arquitetônico é simples, imponente, simétrico, conciso, racional e equilibrado entre a proporção e o estilo, a forma e a função. O espaço é agradável, acolhedor e continua atraindo os fiéis. A idéia inicial de Fulvio Pennacchi foi acatada pelo arquiteto, sendo então, a arquitetura da basílica paleocristã do período Românico uma referência no projeto da Igreja Nossa Senhora da Paz. Foi nesse período, iniciado em 313, quando o Imperador Constantino permitiu que o Cristianismo fosse livremente professado, que os cultos deixaram as catacumbas, ganhando luz no espaço das primeiras basílicas. A intenção do projeto é promover o retorno aos valores originais da fé cristã, expressos nas linhas simples e austeras da igreja paleocristã.
São varias as semelhanças entre a igreja de Santo Apolinário, erguida em Ravena durante esse período e a Igreja projetada por Pettini. As duas igrejas têm três naves, sendo a nave central mais alta. A basílica está apoiada sobre arcos, sem transepto.[7] Em ambas as igrejas, as janelas superiores, localizadas na altura entre o telhado das naves laterais e o da nave central formam, juntamente com as janelas inferiores, um eficiente sistema de iluminação e de ventilação, utilizado com freqüência até os dias de hoje, que funciona da seguinte maneira: o ar fresco que entra no interior da igreja pelas janelas inferiores, ao se aquecer, torna-se mais leve que o ar frio, se eleva e sai pelas janelas superiores. O ar em circulação se renova permanentemente, mantendo a temperatura interna agradável, mesmo nos dias quentes.
O projeto arquitetônico estabelece diálogos também com a arquitetura de outros períodos. A Nossa Senhora da Paz, assim como os templos gregos, é construída sobre um patamar elevado com vários degraus. A fachada simétrica de tijolos aparentes e totalmente despida de ornamentos possui cinco grandes arcos de volta inteira, que unem seis colunas, formando o pronaos,[8] um espaço de transição entre o espaço profano da rua e o espaço sagrado do interior do templo.
A igreja tem altura de 18 m, 25 m de largura e 49 m de comprimento, ocupando uma área de 1.225 m², com capacidade para 368 pessoas sentadas e 200 em pé.[9] O esguio e simples campanário tem 37,5 m de altura.[10]
A planta da Nossa Senhora da Paz é também muito semelhante à da Igreja Santo Apolinário in Classe. A planta é longitudinal e simétrica, com o pastofório[11] formado no centro pela abside3 onde está o altar, ladeado pela prótese e o diacônico [12]. A planta busca atender ao programa do templo que é baseado na dinâmica da liturgia católica e na movimentação dos fiéis.
O interior do templo, encimado por uma abóbada de berço, possui nas duas naves laterais, oito capelas. A nave central é formada por um vasto espaço longitudinal na extremidade da qual está o altar-mor elevado, tendo por trás uma abside, ladeado por dois púlpitos revestidos de mármore, de formas aerodinâmicas, concebidos de acordo com as linhas puras e geométricas do Art-Déco; no alto, por dois coros elevados que se comunicam com a nave por estreitas janelas arqueadas.
Sobre a arquitetura da igreja, o jornalista Daniel Linguanotto, escreveu em 1949, em reportagem para a revista O Globo:
O fundamental na arquitetura é o arco, que se repete em centenas de vezes, em diversas proporções interna e externamente, dando uma impressão de leveza celeste, de enormidade quando ela é pequena e íntima. Fina e macia definiriam essa impressão. Os arcos projetando as paredes para além do espaço figurado abastecem a ilusão de amplidão sem limites, suave, esgarçante como se as nuvens confinassem o templo, ilusão essa ampliada pelos tons azuis dos afrescos.
As capelas laterais são compostas cada uma, com altar dedicado a um santo para atender as exigências de devoção dos fiéis e a adoração de determinados santos. A decoração do interior da igreja com seus afrescos e esculturas foi planejada juntamente com a arquitetura, como demonstram os estudos para decoração, assim como a maquete interna. Segundo Menotti del Picchia “não há solistas nessa execução sinfônica. O todo – a unidade concepcional – domina as partes.”[13]
Os santos representados na igreja são modelos de virtudes que a igreja pretende disseminar. As pinturas e esculturas seguem um plano didático-moral, que começa no altar-mor com o nascimento da Virgem e vai descrevendo em círculo, o nascimento do menino Jesus, passando para as capelas laterais onde se narram eventos da vida dos santos, fechando com os murais do juízo final. [14]
Em cada capela lateral da igreja Nossa Senhora da Paz, o santo esculpido por Emendabili esta estático ao centro, enquanto ao fundo, dois afrescos de Fulvio Pennacchi se movimentam para narrar episódios de sua história. Os artistas nos chamam a testemunhar os eventos como se eles estivessem sendo representados num palco. Nessas capelas as representações das figuras são em escala natural, mas para obter um efeito de profundidade no conjunto, as esculturas de santos possuem altura um pouco maior que as figuras da pintura. O altar-mor apresenta uma escala maior: A escultura de Nossa Senhora com o menino Jesus tem 3,5 m de altura e as figuras dos afrescos, três metros. Ao centro da abside, separando os dois afrescos, está a pintura monumental do Cristo Crucificado com cerca de sete m de altura.¹
Fulvio Pennacchi e Galileo Emendabili apresentam nos afrescos e nas esculturas dessa igreja uma unidade de linguagem estética. Como imigrantes italianos não abandonam nem renegam as tradições de seu país de origem, pelo contrário, as introduzem, combinando-as na circulação de idéias da arte brasileira. Nesse sentido trabalham a partir da absorção de duas tendências antagônicas: o Novecento, movimento surgido na Itália, ligado ao fascismo, que defendia um “retorno à ordem” e uma revalorização dos ideais clássicos na arte; e movimentos que surgiram na Europa entre o final do século XIX e as três primeiras décadas do século XX, sobretudo a Escola de Paris, que defendiam uma ruptura com os postulados tradicionais da arte defendidos pela academia.[15] Observa-se também nos afrescos, uma clara influência da pintura narrativa de Giotto, pintor italiano, que no séc. XIV cobriu as paredes de uma pequena igreja em Pádua (Itália setentrional) com afrescos que narram histórias inspiradas na vida de Cristo e da Virgem Maria.
Questionado sobre quais seriam suas referências na representação dos santos, Pennacchi deu o seguinte depoimento à revista O Globo: “Sabe, para pintar afresco, a gente precisa ter alguma coisa dentro da gente, não pode haver modelo. Eles estavam dentro da minha cabeça. Fui tirando e pintando depressa, antes que secasse a argamassa, é isso.”
A igreja, em sua concepção arquitetônica e artística, busca uma conciliação entre o passado e o futuro, o céu e a terra. Como é possível observar, Pettini, Pennacchi e Emendabili, utilizam um vasto repertório do passado para conceber uma igreja nova e moderna.
A Igreja Nossa Senhora da Paz, cuja sagração ocorreu em 1954, foi a única de São Paulo escolhida pela comissão nacional para participar da Exposição Internacional de Arte Sacra do Ano Santo, realizada em 1950 em Roma.[16] Quatro anos depois, o trabalho realizado por Pettini, Pennacchi e Emendabili, foi destaque no artigo Arte Sacra Contemporanea in Brasile da revista publicada pelo Vaticano Fede e Arte. As igrejas Nossa Senhora da Paz e Santa Teresa, projeto do arquiteto Archimedes Memória no Rio de Janeiro, são os únicos exemplos de arquitetura moderna apresentados. Segundo o autor do artigo, Carlos Oswald, os dois templos representam o louvável esforço de harmonizar os elementos formais e construtivos modernos com as exigências litúrgicas e canônicas. O artigo mostra também fotografias de dois afrescos de Pennacchi e do cálice de prata desenhado por Emendabili.
[1] GALLO, Revista O Mensageiro da Paz, 1950, nº 135
[2] Idem
[3] A IGREJA através dos tempos, Informativo A Relíquia, setembro de 2005,nº 91, p. 24
[4] Fede e Arte – Rivista Internazionale di Arte Sacra, Vaticano nº 6, p.: 180
[5] IGREJA Nossa Senhora da Paz – A sagração do Altar Mor e a inauguração da Capela Mor do novo templo construído pelos padres da Pia Sociedade dos Missionários de S. Carlos, A Gazeta, S. Paulo, 27/03/1943.
[6] LINGUANOTTO, Daniel, Nossa Senhora da Paz: A mais ‘moderna’ construção sacra do continente depois da Igreja da Pampulha,Revista do Globo, 15 out.1949, p. 27.
[7] Transepto – parte de um edifício de uma ou mais naves, que atravessa perpendicularmente o seu corpo principal.
[8] Pronaos: do grego pro, à frente, e naos templo.
Parte frontal de um templo da Antiguidade greco-romana.
[9] Segundo o projeto arquitetônico e a planta atualizada fornecida pela paróquia.
[10] Pastofório: a parte posterior de uma igreja paleo-cristã.
[11] Abside: Recinto abobadado com planta semicircular, onde fica o altar-mor.
[12] Prótese e o diacônico: locais reservados aos diáconos e aos paramentos sacros.
[13] Estão fazendo uma obra de Arte, in O Mensageiro da Paz, Orgão mensal da Pia Sociedade dos Missionários de S. Carlos Borromeu, nº 135, dez. 1950
[14] LINGUANOTTO, Daniel, Nossa Senhora da Paz: A mais ‘moderna’ construção sacra do continente depois da Igreja da Pampulha,Revista do Globo, 15 out.1949, p: 71
[15] CHIARELLI, Tadeu, in catálogo da exposição de Galileu Emendabili no Conjunto Cultural da Caixa, São Paulo, 2005
[16] LINGUANOTTO, Daniel, Nossa Senhora da Paz: A mais ‘moderna’ construção sacra do continente depois da Igreja da Pampulha,Revista do Globo, 15 out.1949, p. 26