Os Maronitas
em 22 de Setembro de 2019
Abu Bakr Muhammad Ibn Bajjah, Filósofo Andaluz de Saragoça
Em 1018 o Califado de Córdoba na Espanha se fragmentou em diversos estados que ficaram conhecidos como os Reinos de Taifa. Vários deles continuaram o progresso cultural e econômico do reino unificado anterior. Um dos mais importantes foi a Taifa ou Reino de Saragoça, no atual Aragão, nordeste da Espanha. Esse estado existiu por cerca de um século apenas (1018 a 1110-1018), mas o seu papel na história europeia foi enorme, pois a ultima dinastia a governa-lo (os iemenitas Banu Hud) farão de Saragoça um grande centro cultural onde as artes e as ciências terão um grande florescimento no qual participarão intelectuais muçulmanos e judeus. O Palácio de Aljaferia, dos Banu Hud, é um exemplo ainda existente do desenvolvimento cultural desse estado.
Em Saragoça a filosofia, vinda do Oriente, irá terminar o seu processo de amadurecimento nas terras da Espanha Muçulmana. E a principal figura nesse processo será Abu Bakr Muhammad Ibn Bajjah, o Avempace da Europa Católica, natural da própria cidade e cuja vida será caracterizada tanto por uma fecunda atividade intelectual como pelas vicissitudes das lutas politicas do seu tempo e pelas intrigas das cortes em que viveu e onde teve muitos inimigos.
Ibn Muhammad se ligará aos conquistadores Almorávidas (uma dinastia bérbere) do Marrocos que conquistam Saragoça e derrubam os Banu Hud em 1110 colocando Ibn Tifilwit como governador do qual Ibn Bajjah será vizir (Primeiro-Ministro). Nessa corte Ibn Bajjah também será cantor, músico e poeta (sua obra poética foi redescoberta em 1951) e onde escreverá um livro (O Tratado sobre Melodias) a respeito da música que terá grande influencia na música da Espanha Muçulmana e do Norte da África.
Mas será na filosofia e na física que Ibn Bajjah exercerá um impacto maior: ele assimilará tanto o platonismo (presente no mundo muçulmano, mas dominante na Europa até São Tomás de Aquino no século XIII) como a filosofia de Aristóteles (dominante no mundo muçulmano), porem sempre mantendo uma perspectiva mística muçulmana, mas perpassada pelas posturas racionalistas dos Irmãos da Pureza (Ikhwan al-Safa) do Iraque do século X.
Isto significa que Ibn Bajjah irá elaborar uma visão de mundo no qual o idealismo platônico se relacionará com a postura racionalista frente ao mundo e ao homem, típica do aristotelismo, mas numa perspectiva de se alcançar a iluminação divina de acordo com a visão religiosa muçulmana.
Bajjah dividia a humanidade em três grupos: 1) a “grande massa” que assimilava conhecimento à partir do contato com o mundo através dos sentidos e conhece o mundo das coisas singulares e materiais do espaço e do tempo; 2) os homens de ciência que usam a razão para abstrair as noções e leis universais das coisas singulares. Nesse estagio ocorre a introdução ao nível especulativo, mas ainda não ao a separação do mundo material; 3) O nível Superior no qual o intelecto abandona o material, o singular, o espaço e o tempo para contemplar os seres espirituais, os inteligíveis puros trazidos pelo Intelecto Agente que emana de Deus.
Nesta divisão da humanidade vemos a síntese do platonismo e aristotelismo em Ibn Bajjah, pois se as duas primeiras divisões da humanidade remetem a Aristóteles e a Platão igualmente, a última tem uma forte marca deste último.
Essa busca se dá por meio de dois processos: a Solidão e a Conjunção. Nessa última o indivíduo irá alcançar os níveis mais baixos do Intelecto Agente.
Para Ibn Bajjah o terceiro nível era o objetivo da existência humana no qual todo utilitarismo assim como busca de qualquer prazer e felicidade terrena cede espaço a uma felicidade e plenitude mística e o “Homem como animal racional” da concepção aristotélica é substituído pelo “Homem Intelectual” capaz de entrar em comunhão com o Intelecto Agente, intermediário entre Deus e o mundo. Ibn Bajjah acreditava que isso seria possível no mundo terreno por meio do estudo racional, afastamento do mundo e purificação da personalidade do individuo. O Terceiro nível da existência era também uma racionalidade muito além da existente na mente humana, uma supra-racionalidade que permite a alma entender as noções cósmicas emanadas de Deus.
Estas ideias aparecem desenvolvidas em livros como a Carta do Adeus, o Livro sobre a Alma e O Regime do Solitário. Neste último livro Ibn Bajjah defender também a necessidade de que indivíduos racionais e intelectuais dirijam a cidades, isto é o estado, para promover uma ordem social boa no qual a sabedoria dos filósofos comece a ser parte da cultura dos seus habitantes.
Dessa forma ele afirma: “el régimen por excelencia, —dice Avempace— el que se entiende como tal y por excelencia, es el de Dios al crear y gobernar el mundo, del cual el del hombre es solo una derivación y copia defectuosa. Y, dentro del régimen humano —concluye— el que se entiende como tal y por excelencia, es el político, a saber, el del gobierno de la ciudad por parte del gobernante que encamina las acciones de todos sus súbditos racionales hacia el fin supremo de la perfección total y felicidad plena de los mismos y del cuerpo social”. Avempace, El régimen del solitario.
Este texto é baseado na sua experiência conflituosa e ruim dentro da corte dos Almorávidas, quer na Espanha, quer no Marrocos onde, por conta das intrigas políticas dos seus inimigos amargou duas vezes a prisão e acabaria morrendo envenenado, em Fez-Marrocos, em 1139. Por outro também lado representa a aplicação aos seus pensamentos político das ideias de Platão em relação à Cidade Espiritual no qual uma urbe cujas leis são baseadas nas mais elevadas de origem espiritual moldam positivamente a alma dos seus cidadãos. Portanto, para ele, na cidade espiritual os seus habitantes são livres de opiniões errôneas e a verdadeira ciência prevalece.
Outros trabalhos muito influentes de Ibn Bajjah foram dois tratados de botânica, Discurso a Respeito de Alguns Livros sobre as Plantas e o Discurso sobre o Nenúfar que tiveram grande influência no desenvolvimento da botânica europeia. No Discurso sobre o Nenúfar Ibn Bajjah, a o comentar sobre o fato dessa planta aquática não ter raízes fixadas na terra faz a afirmação de que não há uma diferença absoluta entre animais e plantas. Ibn Bajjah chega nesses trabalhos a uma proposição radical que somente seria provada no século XVII por conta das pesquisas do botânico alemão Rudolf Jacob Camerarius: as plantas podem ter sexualidade como os animais, embora ele não chegue a uma conclusão sobre isso. Esses trabalhos tiveram forte influencia no importante trabalho botânico de Santo Aberto Magno no século XIII, o De Vegetalibus, uma das bases dessa ciência na cristandade latina.
Também há um estudo sobre os projéteis que foi lido no Renascimento por Galileu e o estimulou a fazer os seus famosos estudos sobre esse assunto. No campo da astronomia Ibn Bajjah observou dois “planetas” como pontos negros atravessando o sol no qual podem ser manchas solares e sua descrição da Via-Láctea era bem mais próxima da realidade do que a ideia herdade dos antigos gregos: “A Via Láctea é a luz de muitas estrelas que quase se tocam. Sua luz forma uma "imagem contínua" (khayâl muttasil) na superfície do corpo, que é como uma "tenda" (takhawwum) sob o elemento ardente e sobre o ar que ele cobre”. Ibn Bajjah define a imagem contínua como resultado da refração (in‛ikâs) e apoia sua explicação com a observação de uma conjunção de dois planetas, Júpiter e Marte, que ocorreu em 1106-7. Ele assistiu a conjunção e "os viu tendo uma figura alongada", embora a figura deles seja circular.
Com o tempo muitos dos trabalhos de Ibn Bajjah se perderam, mas filósofos posteriores da Espanha Mulçumana, islâmicos e judeus, como Averroes (Ibn Rushd), Maimônides e Ibn Tufail, entre outros, e tradutores para o hebraico como Moises de Narbona, deixaram muitos extratos e comentários desses trabalhos permitindo a recuperação nos séculos XIX e XX do pensamento do filósofo saragoçano. No século XIII suas obras eram conhecidas dos filósofos escolásticos europeus e contribuiu para a incorporação do pensamento de Aristóteles na cultura europeia, antes vista com muita desconfiança e até momentaneamente proibida pelo papado. Entre os cristãos latinos são conhecidos os comentários de Santo Alberto Magno, São Tomas de Aquino e Duns Scoto que ajudaram os estudiosos a reconstruir a parte desaparecida da obra de Ibn Bajjah.