Biblio o quê?
em 08 de Junho de 2020
Todos os sistemas de classificação do conhecimento são passíveis de críticas quando analisados por um agente externo. Isso ocorre porque o modo como organizamos nossos saberes atualmente é constituído a partir de um processo histórico que, em grande parte, acompanhou o surgimento das universidades na Europa, a constituição e consagração das bibliotecas como instituições guardiãs do saber e a necessidade de organizar, manter e registrar a produção do conhecimento científico em enciclopédias.
Neste texto, discutiremos brevemente o processo histórico de organização do conhecimento sob esses três eixos: os currículos dos cursos universitários, as bibliotecas e as enciclopédias. Ainda, apontaremos para a forma como o desenvolvimento das tecnologias transformou e ainda vem transformando o modo de organizar, pesquisar e acessar informações.
Vale lembrar aqui que o ato de classificar, ou seja, dividir um grande grupo de elementos em grupos menores de acordo com um determinado critério, é um procedimento natural de nossa psique. Contudo, todas as vezes que classificamos algo, estamos criando hierarquias que possuem um respaldo em nossa realidade política e social. Justamente por esse motivo é que se faz importante pensar as linguagens documentárias como um processo histórico e não como um processo natural, visto que agrupar, hierarquizar e classificar saberes implica, necessariamente, em aplicar nossa visão de mundo àquilo que estamos classificando.
Podemos destacar que uma primeira divisão dos saberes, comumente feita no início da Europa Moderna, ocorria entre o conhecimento teórico e o prático. Também era comum o conceito de conhecimento público, aquilo que deveria ser compartilhado por todos, e privado, como segredos de Estado ou conhecimento religioso, comumente restrito aos sacerdotes. Divisões como conhecimento “alto” e “baixo”, geral e especializado, quantitativo e qualitativo também estavam presentes nos horizontes de classificação dos saberes dessa época, de forma fluida e orgânica às visões de mundo daquelas sociedades.
Quando pensamos especificamente no conhecimento acadêmico, a primeira metáfora que surge, durante a Idade Média, é a da “árvore do conhecimento”. A partir de seus troncos e ramificações, a imagem nos remete à ideia de áreas do conhecimento que estabelecem relações hierárquicas na organização dos saberes, com ramos maiores dando origem a ramos menores. Essas relações passam, então, a servir de base para a organização dos currículos das primeiras universidades e, consequentemente, das bibliotecas e das enciclopédias em áreas e subáreas do conhecimento. Hoje em dia, as árvores são utilizadas para representar a hierarquização de conhecimentos nas mais diversas áreas do saber.
Em um nível macro, o currículo das universidades, as bibliotecas e as enciclopédias dividiam-se, durante o período da Idade Média, em quatro áreas principais: Artes, Direito, Medicina e Teologia, considerando variações de termos e adaptações que foram sendo feitas ao longo desse período até a Idade Moderna.
Dentro dessas categorias mais amplas, diferentes filósofos e estudiosos de Lógica propuseram subcategorias que foram amplamente utilizadas e adaptadas ao longo dos anos. Justamente por isso, o sistema o sistema de classificação, sendo reforçado pelo tripé universidade, bibliotecas e enciclopédias, passou a ser visto como o modo natural de se classificar, categorizar e hierarquizar os saberes humanos, mas é importante observar que ele se constitui basicamente por uma visão eurocêntrica.
Obviamente, isso não quer dizer que os sistemas de classificação não tenham sido alvo de grandes debates intelectuais e não tenham se modificado ao longo dos anos, muito pelo contrário. Com as transformações históricas, sociais e religiosas que ocorreram na Europa no período de transição da Idade Média para a o Renascimento, muitas coisas mudaram. Os currículos das universidades, as bibliotecas e as enciclopédias sofreram grandes transformações quanto a nomeação de campos e áreas de estudos, hierarquizações e modos de compreensão. A política, por exemplo, antes considerada uma arte passível de ser apreendida por meio de técnicas, passou progressivamente a ser considerada como uma ciência, apreendia por meio de estudos teóricos e análises estruturadas, daí o surgimento do termo Ciências Políticas.
Posteriormente, com a invenção da impressa e o avanço de tecnologias que permitiram a produção em massa de suportes materiais de informação, a forma de produzir e compartilhar conhecimentos científicos modifica-se drasticamente, e os currículos universitários se expandem e se modificam, sendo constantemente revistos e atualizados. Do mesmo modo, as bibliotecas passaram por um intenso processo de reclassificação e, consequentemente, uma gradual mudança na percepção de suas funções, que antes restringiam-se à preservação do conhecimento e, aos poucos, passaram a ser entendidas como espaços de difusão do conhecimento. O mesmo acontece com as enciclopédias, que passaram a ser organizadas em ordem alfabética, o que mostrou-se revolucionário para o período, mas que atualmente, com os mecanismos de busca informatizados e as buscas por palavras-chaves, mostra-se já obsoleto.
Por fim, observa-se que nenhuma classificação será, em nenhum momento, absoluta ou perfeita. Os conhecimentos humanos se expandem e se transformam com o passar do tempo, novos saberes são descobertos e outros, mais ou menos valorizados. Assim, nos resta observar que ao classificarmos o mundo, não estamos simplesmente organizando informações para disponibilizá-las a quem procura, mas estamos também hierarquizando saberes a partir de nossa visão de mundo.
LEIA SEMPRE O ORIGINAL: Esse texto foi escrito tendo como base no texto do historiador Peter Burke, intitulado “Classificação do conhecimento: currículos, bibliotecas e enciclopédias”, capítulo 5 do livro Uma história social do conhecimento, da editora Jorge Zahar.