INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA NO BRASIL
Por: Lígia L.
28 de Julho de 2020

INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA NO BRASIL

Direito Direito Penal Processual Penal

Considerando o conceito, nas palavras de Nucci (2014, p. 23), de que “princípio, no sentido jurídico, significa uma ordenação que se irradia e imanta o sistema normativo, proporcionando alicerce para a interpretação, integração, conhecimento e eficiente aplicação do direito positivo”, devemos observar que os princípios funcionam como orientação no momento da aplicação das normas, tanto limitando como inspirando o intérprete da lei.

Ao mesmo tempo, também devem ser observados pelo legislador no momento da sua atuação, isto é, quando da criação de uma norma, instruindo-o, já que a origem e o motivo das leis estão nos princípios.

1. Conceito e disposição constitucional

Quando falamos sobre a individualização da pena no Brasil devemos considerar, em primeiro momento, que sua concretização ocorre quando aplicada nos três momentos em que o direito penal enfrenta o indivíduo, sendo eles a ameaça, que nada mais é do que a previsão legal das sanções, a imposição no caso concreto e, posteriormente, a execução da pena. Desse modo, segundo a divisão doutrinária e o entendimento jurisprudencial, temos três etapas: a individualização legislativa, a individualização judicial e a individualização executória, em conformidade com a divisão constitucional de competências.

Na individualização legislativa podemos dizer que ocorre uma individualização in abstracto, pois trata-se do momento em que o legislador elabora o tipo penal incriminador determinando as penas em abstrato ao estabelecer os patamares mínimos e máximos que o juízo poderá aplicar ao caso concreto. Assim, para que a individualização seja possível em um segundo momento, é necessária uma margem de variação entre a pena mínima e máxima, de forma que cada agente sofra sanção diferenciada, conforme as peculiaridades do caso concreto.

Importante notar que a garantia da individualização da pena também funciona como um limite ao poder de tipificação do legislador, pois a quantificação deve estar em conformidade com a gravidade da conduta criminosa e da lesão ao bem jurídico protegido, observados os critérios de prevenção geral e proporcionalidade, de forma a garantir que o tratamento dispensado aos indivíduos desiguais não seja o mesmo.

No plano judicial, a individualização ocorre no momento em que o juiz aplica ao caso concreto, na sentença condenatória, o tipo penal, arbitrando a pena concreta dentro dos limites mínimo e máximo estabelecidos abstratamente pelo legislador, o regime inicial de cumprimento de pena, bem como eventuais benefícios, conforme as peculiaridades do caso e do sentenciado.

Por isso diz-se que a dosimetria da pena, apesar de ser discricionária é, concomitantemente, juridicamente vinculada, na medida que o juiz atua dentro dos limites impostos pela legislação.

Assim, a individualização da pena irá dar concretude ao princípio de que a responsabilidade penal é sempre pessoal, jamais podendo transcender a pessoa do condenado. Para Guilherme de Souza Nucci:

A individualização da pena tem o significado de eleger a justa e adequada sanção penal, quanto ao montante, ao perfil e aos efeitos pendentes sobre o sentenciado, tornando-o único e distinto dos demais infratores, ainda que coautores ou mesmo corréus. Sua finalidade e importância é a fuga da padronização da pena, da ‘mecanizada’ ou ‘computadorizada’ aplicação da sanção penal, prescindindo da figura do juiz, como ser pensante, adotando- se em seu lugar qualquer programa ou método que leve à pena pré- estabelecida, segundo um modelo unificado, empobrecido, sem dúvida, injusto. (NUCCI, 2014, p. 29-30).

Mas devemos observar que neste momento o poder judicial da discricionariedade e do livre arbítrio é limitado, a fim de evitar excessos, pelos princípios da culpabilidade e da proporcionalidade, que são desdobramentos do princípio da individualização.

Importante notar que o juízo de valor do julgador é imprescindível devido à arquitetura do nosso sistema legislativo. Isto quer dizer que a lei funciona como um suporte orientador do juízo, mas não é exauriente a ponto de determinar a pena a ser aplicada. O próprio princípio da individualização, por si só, requer que o julgador realize uma análise subjetiva do caso concreto, visto que não é possível que o legislador realize uma predeterminação integral, prevendo todas as situações possíveis de ocorrerem com suas peculiaridades.

 

Esse cenário, entre outros elementos, acarreta a necessidade de que a decisão condenatória, como qualquer decisão judicial, seja motivada, com o objetivo de mostrar a pertinência da valoração judicial e a adequação da norma ao caso concreto, bem como o respeito aos valores constitucionais.

Na execução da pena é a individualização que permite o respeito às diferenças existentes entre os condenados ou internados. Da aplicação do princípio decorre que a pena é alterável no tempo. Importante observar que a sentença condenatória, apesar de ser título executivo judicial a ser cumprido, não é estática, mas mutável. Assim, por exemplo, pode o condenado cumprir sua pena em tempo menor ao arbitrado inicialmente, se tiver bom comportamento e preencher os requisitos legais para valer-se dos benefícios da lei executória, sendo função do juiz da execução realizar a adaptação da pena arbitrada na sentença com as mudanças fáticas e, também, as regras da progressão de regime, bem como conceder outros benefícios previstos legalmente.

Desse modo, a execução penal não pode ser idêntica durante todo o período de cumprimento da pena pelo preso, visto que a Constituição Federal adota o sistema progressivo, sendo a mutabilidade, conforme as circunstâncias objetivas e subjetivas, uma das suas características, a qual é reflexo do princípio da individualização.

Portanto, falar da individualização da pena significa dizer que cada indivíduo receberá tratamento específico também na execução criminal, pois ela não pode ser igual para todos os presos. Compreende-se, assim, que o princípio da individualização se trata de decorrência lógica do princípio da isonomia, pois os desiguais devem ser tratados de forma distinta, na medida das suas diferenças, recebendo tratamento igual os iguais.

Podemos, então, concluir que a individualização executória são as alterações que a pena privativa de liberdade sofre durante o cumprimento, ajustando-se à situação fática do condenado. Até porque uma das pretensões da individualização é dar ao apenado a oportunidade de reinserir-se socialmente, o que deve ser realizado através da análise do agente como ser individual, distinto dos demais, e de seu desenvolvimento durante o período de cumprimento da pena o que pode acarretar tanto a progressão do regime, bem como a regressão se houverem incidentes durante o cumprimento.

Tanto o juiz da condenação como o juiz da execução criminal devem garantir o princípio da individualização através da fundamentação de suas decisões, sendo que para efetivar-se a individualização e o tratamento isonômico faz-se necessário que a norma penal possibilite que haja o tratamento diferenciado e que o aplicador da lei analise as subjetividades do caso concreto, respeitando os parâmetros de flexibilidade da norma na aplicação e na execução da pena.

A individualização é princípio constitucional, presente no artigo 5o da Carta Magna, o qual esboça a necessidade da adaptação da pena ao condenado considerando-se suas características pessoais, bem como seu direito em ter a pena imposta na medida da sua culpabilidade:

XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:
a) privação ou restrição da liberdade;
b) perda de bens;

c) multa;
d) prestação social alternativa;
e) suspensão ou interdição de direitos.

Ainda, colocando em evidência a preocupação com o princípio da individualização, o mesmo artigo, no inciso XLVIII, determina que “a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”. Também deve ocorrer a distinção em relação ao estado das pessoas, conforme evidenciado no inciso L: “às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação”.

2. Aplicação no Brasil

O Código Penal estabelece que nosso sistema criminal para a individualização da pena é baseado no princípio da culpabilidade, dispondo o artigo 59 que o juiz deve verificar a culpabilidade do agente para que possa ponderar à respeito da pena aplicável, sua quantificação, o regime inicial para seu cumprimento quando privativa de liberdade, bem como a possibilidade de sua substituição, sempre verificando a proporcionalidade entre o fato e a culpabilidade do agente, ponderando, ainda, se há necessidade de aplicação da pena.

Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:

I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;
II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;
III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;
IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.

Para Barros (2001, p.123), esta previsão é redundante na medida em que a culpabilidade exteriorizada no fato concreto já engloba todos os demais elementos citados no dispositivo legal para serem analisados pelo juiz.

De qualquer modo, o artigo 59 do Código Penal apresenta as circunstâncias judiciais que devem ser examinadas pelo juiz para a aplicação da pena privativa de liberdade, isto é, os fatores que envolvem o crime, tanto no aspecto objetivo quanto subjetivo. Relevante a explicação do Superior Tribunal de Justiça:

A ponderação das circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal não é uma operação aritmética, em que se dá pesos absolutos a cada uma delas, mas sim um exercício de discricionariedade vinculada, que impõe ao magistrado apontar, motivadamente, os fundamentos da consideração negativa, positiva ou neutra das oito circunstâncias judiciais mencionadas no art. 59 do CP e, dentro disso, eleger a reprimenda que melhor servirá para a prevenção e repressão do fato-crime praticado.

(STJ, AgRg. no HC 270368/DF, Rel. Min. Jorge Mussi, 5a T ., DJe 20/6/2014).

O princípio da culpabilidade exteriorizado no dispositivo legal, em suma, trata- se da reprovação social dispensada ao crime e ao autor do mesmo, conforme o grau de censurabilidade da ação ou omissão do agente, devendo ser avaliada as suas condições pessoais, a situação de fato em que ocorreu a prática delitiva e qual era a conduta exigível naquele momento.

Individualização da pena, além de preceito constitucional, significa a concretização da justiça ao se atribuir a cada um o que é seu, a cada um o que efetivamente merece, valendo-se, pois, da culpabilidade do fato e da culpabilidade do autor, esta se esgotando igualmente no fato. A primeira auxilia na formação dos tipos penais, especificamente do preceito sancionador (limites mínimo e máximo da pena), bem como oferece ao magistrado dados concretos da gravidade do que foi praticado, para a eleição da pena concreta. A segunda serve ao juiz, pois a vida pregressa, a personalidade, a motivação e outros dados próprios de cada réu, devem ser considerados igualmente na fixação da pena justa (NUCCI, 2014, pg. 357- 358)

Assim, pretendeu o Código Penal com essa previsão dar efetividade à exigência do artigo 5o, XLVI, da Constituição Federal, ficando evidente que é um direito do condenado receber a pena individualizada, considerando-se sua personalidade e na exata proporção de sua culpabilidade. Como bem explicitado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

A individualização da pena é um direito subjetivo do acusado de obter, no caso de ser condenado criminalmente, a pena justa, imparcial e livre de qualquer padronização, em decorrência natural e lógica dos comandos de cálculo da pena, cujo objetivo é evitar abusos e arbítrios.

(Ap. 0001232-49.2011.8.13.0026/MG, 2.a Câm. Crim., j. 14.06.2012, rel. Nelson Missias de Morais).

Por tratar-se de um princípio constitucional, como visto, a não observância desse direito do condenado torna nula a decisão, como bem exposto pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná:

A individualização da pena na sentença condenatória é direito constitucional do acusado, que quando desatendida, acarreta à decisão nulidade que pode ser reconhecida de ofício pelo Tribunal.
(ApCrim 0599295-2/PR, 5.a Câm. Crim., j. 18.02.2010, v.u., rel. Maria José de Toledo Marcondes Teixeira).

Ressalte-se que o princípio deve ser observado, inclusive, nas demais circunstâncias que implicam na pena, como nas circunstâncias agravantes e atenuantes e causas de aumento e diminuição de pena.

Conforme observa Barros (2001, p. 132-133), na Lei de Execução Penal o princípio da individualização da pena está calcado, principalmente, nos princípios da personalidade e da proporcionalidade. Segundo disciplina o artigo 5o da lei, “os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal”.

Dessa forma, destaca-se a necessidade de que o agente seja individualmente considerado, de forma que a pena não pode ultrapassá-lo. Também decorre do princípio da personalidade que o condenado a cumprir pena privativa de liberdade deve ser identificado e registrado, não se esquecendo do direito dos presos de estarem separados de acordo com suas características individuais.

Pelo princípio da proporcionalidade, considerado aqui como uma garantia individual, o condenado tem a garantia de que a pena a ser cumprida esteja de acordo com sua pessoa, respeitado o mandamento constitucional da dignidade da pessoa humana, e que a pena não seja uma forma de atender à vontade social.

Bem observa Barros (2001, p. 133) que:

Enquanto a individualização no processo de conhecimento implica proporcionalidade entre crime (fato) e pena e está voltada ao passado, a individualização no processo de execução implica proporcionalidade entre homem condenado e pena em execução e está voltada ao presente e ao futuro do sentenciado.

Interessante notar que a Lei de Execuções Penais também ressalva a aplicação do princípio isonômico, sendo o tratamento específico uma necessidade frente as diferenças durante a execução penal, quando deixa claro em seu artigo 41, inciso XII, a importância da individualização do preso, inclusive sendo a aplicação do princípio durante o cumprimento da pena a única exceção que permite, e deve dar, o tratamento diferenciado entre eles. Todos os presos devem ter os mesmos direitos e deveres, só podendo estes sofrerem limitação quando necessário para que a pena seja individualizada em conformidade com as previsões legais, o que garante, inclusive, a dignidade do indivíduo em cumprimento de pena.

 

 

 

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