Peônias não florescem em abril
Paulo Alexandre Trindade Freire (Licenciado em Filosofia e Mestrando em Literatura e Cultura pela UFBA)
Vulgo Grace é uma obra de ficção com um recorte histórico, escrita pela premiadíssima autora canadense Margaret Atwood, também autora do fenômeno de ficção especulativa O conto da aia. Em Vulgo Grace, objeto de questão para este ensaio, o que vemos é uma elaboração de uma narrativa ficcional baseada num ocorrido do século XIX, que pela densidade e consistência do texto de Atwood, podemos perceber que foi perscrutado muito intimamente pela autora, que ao final da obra fala um pouco sobre sua trajetória de pesquisa para compreender o evento e tratá-lo de uma maneira muito séria e justa.
O ocorrido, se trata de um duplo assassinato e da condenação de duas pessoas pelos crimes, sendo uma delas Grace Marks, que inicialmente fora condenada a forca, tendo ela apenas dezesseis anos à época, e posteriormente “convertida” à prisão perpétua e, quase trinta anos depois, sendo enfim liberta de seu encarceramento, tendo ela passado parte desse período em um manicômio e outra parte na prisão comum, além de prestando serviços como “criada” na casa do diretor do presídio durante os dias, passando somente as noites na prisão.
Muitas coisas são ditas acerca do comportamento moral e sentimental de Grace, mas a despeito disso, Margaret Atwood se preocupa em dar outra visão acerca da personagem. Ela (Grace) já havia sido pintada como uma mulher ardilosa, que por ciúmes quisera matar seu patrão, o Sr. Thomas Kinnear, e a governanta dele, Nancy Montgomery, convencendo outro “criado”, James McDermott, a ajudá-la a levar os assassinatos a cabo, prometendo “favores sexuais” em troca, tal como fica sugerido na versão de Susanna Moodie da história, conforme nos conta Atwood no posfácio da obra (Cf. ATWOOD, 2017 b, p. 506).
É através dessas histórias, “vilanescas”, a respeito de Grace Marks e de todo o caso, histórias que chegam a inserir exageros, coisas que não existiram (que não se tem nenhum registro) e que se propõe a se passar por verdade, que Margaret Atwood tem um primeiro contato com o caso. Me parece que isso, em grande medida, é o que a move a tentar dar o “outro lado” da história, os possíveis motivos que levaram algumas pessoas a lutarem pela liberdade de Grace Marks ao longo dos quase trinta anos. O trabalho de Atwood foi enorme, o que fica sugerido principalmente pela quantidade de agradecimentos aos bibliotecários(as) no apêndice final desta edição, onde a autora demonstra que sem essas pessoas, sem a colaboração delas no processo de investigação dela para a construção do romance, é bem provável que ele não ocorreria, ou ao menos não desse jeito ímpar que pudemos ver.
Atwood busca construir uma narrativa o mais fiel aos acontecimentos possível, mas também se permitindo uma grande liberdade em momentos lacunares, truncados ou muito “obscuros”, onde não se tinha registros muito precisos acerca do que ocorreu. A autora arquiteta a obra de tal maneira que nos insere do modo mais próximo possível da personagem cuja vida encontra-se sendo escrutinada. A maestria pode ser constatada nas passagens de voz de uma narração mais terceirizada, onde podemos encontrar citações, cartas ou mesmo um(a) narrador(a) em terceira pessoa, falando da vida das personagens e de alguns eventos, para uma voz mais íntima e despida de um véu de distanciamento, onde quem nos conta sua história, desde antes da chegada ao Canadá, até depois de ter sido liberta, reencontrar alguém de trinta anos antes, casar-se etc., é a própria Grace Marks, de modo que — inicialmente — acompanhamos o que ela está falando ao Dr. Simon e depois vamos acompanhar o que ela falaria a ele, caso ele não tivesse ido embora, sendo um relato que podemos “assistir” através de uma fala genuinamente sincera aos nossos olhos, mas que a certa altura é colocada em dúvida pelo outro médico e a sugestiva comparação com “as mil e uma noites”.
Ao mesmo tempo em que Grace nos diz que não entende como poderia ser tantas coisas ao mesmo tempo, em se tratando das acusações feitas a ela (Cf. ATWOOD, 2017 b, p. 33), também indica que, naquele contexto, “Pessoas vestidas de certa maneira nunca estão erradas.” (p. 43), o que nos leva a concluir algo a respeito de como o julgamento dela fora conduzido e como ela, por ser “pobre, burra, etc.”, tal como pintaram-na, não deveria ser enforcada. Foi o “melhor” que seu advogado havia conseguido fazer.
Ainda a respeito da personalidade de Grace, da compreensão dela de mundo e da maneira simples e direta com que ela contesta algumas coisas, vale citar um momento em que ela afirma que “Só porque alguma coisa foi escrita, senhor, não significa que seja a palavra de Deus, eu digo.” (p. 285). Neste, como em momentos semelhantes, Grace contesta a “verdade” de sua confissão, mostrando que de alguma maneira ela fora dissuadida a dizer aquelas coisas; ela nos conta que o advogado a convenceu a “criar” uma narrativa que seria mais facilmente aceita pelo júri, de modo que incorreu em ela ter três versões diferentes de sua confissão.
Em outro momento, onde é tentado imputar a ela um “crime”, senão que comprove de alguma maneira alguma perversidade oculta nela, ao menos mostre sua degeneração moral — a despeito das boas intenções do doutor —, Grace é questionada se não pensara em matar, ao que ela afirma que pensara em se ver livre de Nancy. Mas, em decorrência desse tipo de circunstância, Grace consegue dizer algo que em alguma medida toca no âmago daquilo que entendemos por humanidade, ela diz: “[...] Se todos nós fôssemos julgados por nossos pensamentos seríamos todos enforcados.” (p. 351). Atwood nos mostra, por meio da fala de Grace, o quanto há em todos nós um pouquinho de Mary Whitney, que aqui pode ser entendida como uma metáfora para aquela parte obscura em nós, outrora chamada de subconsciente, mas que pode se manifestar sem que “nós-mesmos” nem nos demos conta disso.
Mary, amiga de Grace e fiel companheira quando ela ainda trabalhava na casa dos Parkinson’s, é uma personagem um tanto mais voluptuosa e que tem um papel verdadeiramente importante na construção da figura de Grace, pois ela (Mary) se “manifesta” em Grace. Há toda uma mística criada desde os momentos iniciais acerca da vida de Grace, onde se diz que os espíritos dos mortos precisam de janelas abertas para poderem seguir seus caminhos post mortem. O que não ocorre nem à mãe de Grace, que morre no subsolo de um navio e é jogada ao mar, nem à Mary — inicialmente, mas assim que se lembra, Grace corre até a janela e abre, na desculpa de arejar o ambiente onde a amiga morreu, mas em verdade preocupada com seu espírito e os rumos que ele seguirá.
Sendo o espírito de Mary Whitney, como fica “provado” na sessão de hipnose, ou apenas uma double consciousness, como fica sugerido em alguns momentos, inclusive pela própria personagem — quando vai fazer a colcha com a árvore (Cf. ATWOOD, 2017 b, p. 504), o importante é que Grace Marks não é, ou não se reconhece-lembra como tal, a pessoa a puxar as pontas do lenço amarrado ao pescoço de Nancy Montgomery, ao menos parece ser essa a “conclusão” que podemos tirar da obra de Atwood.
Mas eu iria um pouco além e, apesar dessa discussão a respeito da identidade, de ser ou não ser a pessoa um conjunto-fluxo de consciência-lembranças através do tempo e do espaço me interessar muito, eu acho que podemos extrair outras coisas de valor para o trato com essa obra. Primeiramente, a forma como ela é concebida e construída, tendo uma preocupação muito grande com aquilo que chamei inicialmente de “arquitetura”, ou seja, como é pensado todo o projeto e as “vozes” da obra; também algumas discussões que vão sendo trazidas à baila ao decorrer do livro, tais como as questões religiosas, e aí como a sociedade é construída em grande medida com base em valores religiosos. Entra também nessa discussão a própria cultura, sendo entendida aqui como as manifestações das práticas, valores e costumes da sociedade em questão, ambientada no século XIX, com direito a todos os males e os poucos benefícios do contexto.
Em suma, Margaret Atwood consegue construir, elaborar, uma obra que aspira ao tratamento do que talvez seja o mais interessante no espírito humano. Toda a maneira como o trato a respeito de uma vida interessa às pessoas de uma sociedade, seja para condenar ou para inocentar. Ao final, parece que fica uma grande questão: em última instância, importa mesmo quais eram os fatos? Importa saber o que “verdadeiramente” ocorreu? Parece que nesses casos o que interessa mais é entregar alguém para que a sociedade possa manifestar sua sede obscura de sangue, seja diretamente ou por meio das mãos de terceiros. A morte parece ser o que mais interessa e faz com que as pessoas se envolvam nessas coisas, e não a justiça.
Referências
ATWOOD, Margaret. O conto da aia; tradução de Ana Deiró. - Rio de Janeiro : Rocco, 2017 (a).
_________. Vulgo Grace; tradução de Geni Hirata. - Rio de Janeiro : Rocco, 2017 (b).