O governo democrático de Vargas (1951-1954)
em 04 de Março de 2020
O objetivo deste artigo consiste em dissertar sobre os principais dilemas econômicos e institucionais dos Estados latino americanos no período que segue do final da Segunda Guerra Mundial ao período contemporâneo. Em outros termos, busca-se traçar a trajetória dos modelos de desenvolvimento empregados em países da América Latina durante esse período Com base nisto, é possível compreender os dilemas econômicos e institucionais que afligiram e ainda afligem os Estados latino-americanos. E, não menos importante, tecer-se-ão comentários a respeito da ascensão chinesa na América Latina e seus impactos e das distintas orientações de inserção internacional entre os países latino americanos.
Após o término da Segunda Guerra Mundial, o principal dilema econômico dos países latino americanos era o de industrializar a atividade econômica, de modo a “captar uma parte do fruto do progresso técnico e elevar progressivamente o nível das massas” (PREBISCH, 1949, p.2). Ou seja, era preciso industrializar os países latinos americanos e, assim, reduzir as assimetrias nos valores de troca, que seriam a razão central do sudesenvolvimento. Nas décadas seguintes, elaborou-se, sob a égide da CEPAL, a teoria da dependência, que enfatizava justamente o lugar periférico ocupado pela América Latina na divisão de trabalho internacional.
Sob a estratégia da industrialização por substituições de importações, surge o Estado desenvolvimentista, que tem como características o controle sobre o processo de desenvolvimento interno, a proteção da economia nacional, a promoção da acumulação inicial de capital, a construção de infraestrutura e o planejamento do modelo substitutivo (PINHEIRO, 1995). Os principais ícones desse modelo de Estado desenvolvimentista encontram-se nos países que alcançaram um maior nível de industrialização, qual seja, Vargas (Brasil), Perón (Argentina) e Cárdenas (México). No geral, a diferença do modelo de substituições de importações para o modelo agroexportador reside na centralidade do mercado interno e das variáveis endógenas enquanto motores do desenvolvimento econômico.
Ademais, o modelo substitutivo de importações criou uma estrutura interna oligopolizada e não-competitiva, ao mesmo tempo em que deixou como legado uma elevados índices de inflação e endividamento externo e interno (PINHEIRO, 1995). O fim da paridade dólar-ouro (1971), os choques do petróleo (1973 e 1979), a crise do endividamento externo na década de 1980 e a desintegração da URSS (1991) deram números finais aos modelos de desenvolvimento voltados para “dentro”.
O processo de transição do Estado desenvolvimentista para o Estado “normal” (CERVO, 2000) teve impulso inicial na década de 1980 e se concluiu com a chegada ao poder de Carlos Salinas de Gortari (México), Carlos Menem (Argentina), Carlos Andrés Perés (Venezuela), Alberto Fujimori (Peru) e Fernando Collor de Melo (Brasil). Ora, se nos anos 1950 o dilema era voltado à industrialização e a modernização econômica através da implantação de um modelo estruturalista cepalino, nos anos 1990 o dilema se voltou para a necessidade de se adaptar à nova ordem mundial por meio da integração aos circuitos econômicos de um mundo globalizado.
A transição para o Estado “normal” é marcado por um processo estrutural de redirecionamento dos modelos de desenvolvimento na América Latina, que promoveu modificações estruturais em direção à liberalização da economia e à reforma do Estado (PINHEIRO, 1995). Tais modificações estruturais seguiram os ditames do Consenso de Washington, que consiste em uma cartilha de medidas que foram recomendadas aos países latino americanos como forma de superar os desequilíbrios macroeconômicos. Entre essas medidas, destacam-se a abertura comercial, o equilíbrio fiscal, a privatização de empresas estatais e a desregulamentação dos fluxos de capitais e de investimento (WILLIAMSON, 2004). Sob uma perspectiva mais abrangente, o consenso neoliberal postulava a implementação de parâmetros de conduta como democracia, direitos humanos, liberalismo econômico, proteção ambiental e “responsabilidade estratégica solidária tendo em vista a promoção de tais valores” (CERVO, 2000, p.6).
Os argumentos neoliberais que seduziram a opinião eleitoral nas campanhas presidenciais enfatizavam os malogros deixados pelo esgotamento do modelo desenvolvimentista, como é o caso do endividamento externo e o agravamento da instabilidade monetária, os surtos de hiperinflação e a baixa produtividade sistêmica da economia (CERVO, 2000). De todo modo, os anos noventa na América Latina presenciaram, além da desconstrução do núcleo central robusto de sua economia (CERVO, 2000), a redução no grau de autonomia dos Estados nacionais, o aumento da vulnerabilidade externa, a fragilização financeira e, sob a perspectiva social, o aumento da pobreza e o acirramento da concentração de renda (PINHEIRO, 1995). Em síntese, o receituário neoliberal recomendava altas taxas de juros para manter a estabilidade monetária, a contenção do crescimento para combater à inflação e a privatização de empresas públicas para aumentar a produtividade (CERVO, 2000).
O “consenso” que pairou sobre a América Latina nos anos noventa não tardou para resultar em reviravoltas eleitorais que, além colocar a esquerda e a centro-esquerda no poder, proporcionaram uma redefinição das estratégias tanto de inserção internacional quanto de integração regional para os países latino-americanos. Isto é, o século XXI trouxe novos desafios e impôs novos dilemas a América Latina, que passou por transformações políticas e por uma reinserção na divisão internacional do trabalho, sobretudo em virtude da elevada demanda chinesa por produtos primários (MEDEIROS; CINTRA, 2015).Já no ano 2000, as eleições afastaram do poder os próceres do neoliberalismo no México, no Uruguai, no Chile, na Venezuela e na Argentina (CERVO, 2000) e, anos depois, no Brasil (2002), na Bolívia (2006) e no Equador (2007).
Primeiramente, é importante mencionar alguns aspectos relacionados ao “bolivarianismo” que, irrompido discursivamente a partir da ascensão de Hugo Chávez à presidência da Venezuela (1999), se ramificou para ser adotado por Evo Morales (Bolívia) e Rafael Correa (Equador). Sem a intenção de se aprofundar nesse tema, afirma-se que a fenomenologia do bolivarianismo inclui, dentre outros aspectos, uma orientação de política externa agressiva; a nacionalização de recursos primários e de empresas multinacionais; críticas ao formato liberal de democracia representativa e às oligarquias locais; a proposição de uma agenda socialista do século XXI (LOPES, 2013).
Além dos bolivarianos, Almeida (2014) estabelece dois outros grupos de países para a América Latina do século XXI: os globalizados e os reticentes. Entre os globalizados, destacam-se o México e o Chile, que adotaram o processo de reformas com orientação de mercado de maneira mais profunda. Em menor medida, é possível inserir nesse grupo a Colômbia e o Peru, ambos pertencentes ao bloco da Aliança do Pacífico. No que tange aos reticentes, Almeida (2014) ressalta o Brasil e a Argentina, que alternam avanços e recuos em função dos grupos políticos que assumem o poder.
É importante ressaltar que a ascensão de governos contrários às políticas neoliberais foi possível mediante uma conjuntura de elevação no preço das commodities, que contribuiu para reduzir a vulnerabilidade externa e flexibilizar a política econômica. Na primeira década do século XXI, a demanda chinesa por recursos naturais constituiu um fator central para as economias sul-americanas elevarem suas taxas de crescimento e expandir seus mercados externos. Entretanto, a ausência de iniciativas voltadas à diversificação econômica, a perda de mercados externos e a “primarização da pauta exportadora” conjugariam os riscos da ascensão chinesa (MEDEIROS; CINTRA, 2015).
Em suma, argumenta-se que a segunda década do século XXI impõe, novamente, relevantes desafios e dilemas aos países latino americanos. De um lado, a reprimarização da pauta exportadora, em parte associado à crescente presença chinesa, coloca um importante dilema econômico para a América Latina. Por outro lado, o desenvolvimento da Ásia Pacífico e a sua consolidação enquanto centro dinâmico do capitalismo global suscita questionamentos acerca da possibilidade de desenvolvimento por meio da abertura econômica e da associação às cadeias globais de valor. Sob uma perspectiva institucional, novamente há no cenário latino-americano preocupações a respeito da instabilidade política e social, com destaque para o crescente desgaste do governo Maduro na Venezuela e as negativas implicações da conjuntura do país aos seus vizinhos. Por fim, concorda-se com Malamud (2009) a respeito das evidentes divergências que levam, cada vez mais, à fragmentação da América Latina e, associado a isto, ao esvaziamento das iniciativas voltadas à integração regional.
Referências
ALMEIDA, Paulo Roberto de. A grande fragmentação na América Latina: Globalizados, Reticentes e Bolivarianos. Carta Internacional, Belo Horizonte, v. 9, n. 1, p.79-93, jun. 2014
CERVO, Amado Luiz. Sob o signo neoliberal: as relações internacionais da América Latina, Revista Brasileira de Política Internacional, v. 43, n. 02, pp. 5-27, 2000.
LOPES, Dawisson Belém. A economia política da década bolivariana: Instituições, sociedade e desempenho dos governos em Bolívia, Equador e Venezuela (1999-2008). Estudos Políticos, Rio de Janeiro, n. 6, p.261-277, jan. 2013.
MALAMUD, Andrés. Fragmentação e divergência na América Latina. Relações Internacionais, Lisboa, n. 25, p.61-73, dez. 2009.
MEDEIROS, Carlos Aguiar de; CINTRA, Maria Rita Vital Paganini. Impactos da ascensão chinesa sobre os países latino americanos. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 35, n. 1, p.28-42, mar. 2015.
PINHEIRO, Vinícius C. Modelos de desenvolvimento e políticas sociais na América Latina em uma perspectiva histórica, Planejamento e Políticas Públicas, IPEA, n. 12, jun/dez, 1995.
PREBISCH, Raul. O desenvolvimento econômico da América Latina e seus principais problemas, Revista Brasileira de Economia, v. 03, n. 03, p. 47-111, 1949.
WILLIAMSON, John. The Washington Consensus as Policy Prescription for Development. 2004. Disponível em: <https://piie.com/publications/papers/williamson0204.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2018.