A teoria do Diálogo das fontes
Por: Jhéssika I.
09 de Julho de 2020

A teoria do Diálogo das fontes

Direito do Consumidor.

Direito Civil Direito do consumidor diálogo das fontes

O ordenamento jurídico brasileiro é composto por diversas normas. Para Kelsen as normas são compostas num plano hierárquico que pressupõe a existência de normas superiores e inferiores. (KELSEN, 1998). Para Noberto Bobbio (1999) ainda que as normas jurídicas sejam complexas ela compõe um ordenamento unitário.

Que seja unitário um ordenamento simples, isto é, um ordenamento em que todas as normas nascem de uma única fonte, é facilmente compreensível. Que seja unitário um ordenamento complexo deve ser explicado. Aceitamos aqui a teoria das 5 construção escalonada do ordenamento jurídico, elaborada por Kelsen. Essa teoria serve para dar uma explicação da unidade do ordenamento jurídico complexo. Seu núcleo é que as normas de um ordenamento não estão todas no mesmo plano. Há normas superiores e inferiores. As inferiores dependem das superiores. Subindo das normas inferiores àquelas que se encontram mais acima, chega-se a uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior, e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento. (BOBBIO, 1999, p. 48/49)

O pluralismo legislativo existente resulta num conflito entre normas no caso concreto. Maria Helena Diniz define com clareza o que vem a ser essa antinomia jurídica.

Antinomia é o conflito entre duas normas, dois princípios, ou de uma norma e um princípio geral de direito em sua aplicação prática a um caso particular. É a presença de duas normas conflitantes, sem que se possa saber qual delas deverá ser aplicada ao caso singular. (DINIZ, 2001, p. 469)

Posto isso, os critérios clássicos para solução desse conflito são: cronológicos, da especialidade e da hierarquia. O primeiro critério estabelece que a norma posterior prevaleça em detrimento da anterior. O segundo que a norma especial prevalece sobre a norma geral. E por fim o último critério consiste na prevalência da norma superior devido a relevância normativa do texto constitucional.

Todavia, Erick Jaynme idealizou na Alemanha um novo instrumento hermenêutico denominado “Diálogo das fontes” capaz de interpretar as normas conjuntamente. Jayme (1999) afirma que o sistema jurídico deve ser coerente e evitar contradições de modo que. “[...] O juiz, na presença de duas fontes... com valores contrastantes, deve buscar coordenar as fontes, num diálogo das fontes (Dialog der Quellen)” (Jayme, 1999).

No Brasil, essa teoria foi proposta por Claudia Lima Marques, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e teve bastante repercussão na ADI 2591, quando em 2006, o Supremo entendeu que embora exista uma lei complementar que regulasse as atividades bancárias era Constitucional a aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Claudia Marques (2003) nos ensina que o Dialogo das fontes é um novo método de interpretação do nosso ordenamento jurídico

[...] “diálogo” em virtude das influências recíprocas, “diálogo” porque há aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção voluntária das partes pela fonte prevalente (especialmente em matéria de convenções internacionais e leis modelos) ou mesmo a opção por ter uma solução flexível e aberta, de interpenetração, ou a solução mais favorável ao mais fraco da relação.

O uso da teoria ocorreu, primeiramente, entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil por decorrência da similitude dessas normas. Ressalta-se que o diálogo das fontes pode ser feito através três formas: diálogo sistemático de coerência; de complementaridade e subsidiariedade; diálogo de coordenação e adaptação sistemática

a) Em havendo aplicação simultânea das duas leis, se uma lei servir de base conceitual para a outra, estará presente o diálogo sistemático de coerência. Exemplo: os conceitos dos contratos de espécie podem ser retirados do Código Civil mesmo sendo o contrato de consumo, caso de uma compra e venda (art. 481 do CC).
b) Se o caso for de aplicação coordenada de duas leis, uma norma pode completar a outra, de forma direta (diálogo de complementaridade) ou indireta (diálogo de subsidiariedade). O exemplo típico ocorre com os contratos de consumo que também são de adesão. Em relação às cláusulas abusivas, pode ser invocada a proteção dos consumidores constante do art. 51 do CDC e ainda a proteção dos aderentes constante do art. 424 do CC.
c) Os diálogos de influências recíprocas sistemáticas estão presentes quando os conceitos estruturais de uma determinada lei sofrem influências da outra. Assim, o conceito de consumidor pode sofrer influências do próprio Código Civil. Como afirma a própria Claudia Lima Marques, “é a influência do sistema especial no geral e do geral no especial, um dialogo de doublé sens (diálogo de coordenação e adaptação sistemática)”.( MARQUES, Claudia Lima, 2003)

Aplicar o Código de Defesa do consumidor juntamente com outras normas não fere o principio da especialidade tendo em vista que o objetivo do dialogo das fontes é justamente atender ao direito Constitucional de Defesa do Consumidor (CF, art. 5º, XXXVII)

código de defesa do consumidor é uma lei especial em relação ao código Civil. No entanto, o próprio art. 7º deixa claro que não será uma lei exclusiva para tratar das relações de consumo, pois será aplicada a norma mais vantajosa para o consumidor. Nesse Diapasão, o Código de Defesa do consumidor não afasta a aplicação do Código Civil, normas como, por exemplo, as que se referem à plano de saúde, transporte aéreo, locações de imóveis entre outras

[...]O CC aplica-se às relações de consumo, naquilo em que suas normas não conflituarem com as do CDC. É possível, por exemplo, aplicarem-se às relações de consumo as cláusulas gerais, notadamente as contidas no CC 421 (função social no contrato), no CC 422 (boa-fé objetiva), no CC 187 (abuso de direito) etc. Quanto à prescrição, nada obstante clara a regra clara do CDC 27 sobre a prescrição quinquenal, o STJ tem aplicado o prazo geral do CC (CC 205 – dez anos; CC/1916 177 vinte anos) à relação jurídica de consumo, nas situações que especifica. (Nelson Junior,2014)

O STJ decidiu pela aplicação doCódigo de defesa do consumidorr no tocante a negócios jurídicos de compra de imóvel durante a construção, não obstante a existência da lei nº4.59111/64 o que é uma clara demonstração do uso do diálogo das fontes para resolver os conflitos

DIREITO CIVIL. CONTRATO DE INCORPORAÇÃO. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. APLICABILIDADE. RESTITUIÇÃO DE PARCELAS PAGAS. SÚMULA N. 7/STJ. 1. Em que pese o contrato de incorporação ser regido pela Lei n. 4.591/64, admite-se, outrossim, a incidência do Código de Defesa do Consumidor, devendo ser observados os princípios gerais do direito que buscam a justiça contratual, a equivalência das prestações e a boa-fé objetiva e vedam o locupletamento ilícito. 2. Aplica-se a Súmula n. 7 do STJ na hipótese em que a tese versada no recurso especial reclama a análise dos elementos fáticos produzidos ao longo da demanda. 3. Recurso especial não-conhecido.(STJ.REsp: 747.768-PR 2005/0074645-6,Relator: Ministro João Otávio de Noronha, Data do Julgamento: 06/10/2009, T4- QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/10/2009)( grifo nosso)

Outro exemplo da aplicação do Diálogo das fontes na relação de consumo é a Súmula 297 do STJ em que enuncia que “o código de defesa do consumidor é aplicável as instituições financeiras”.

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CDC. SÚMULA 297 DO STJ. INDENIZAÇÃO. INSCRIÇÃO INDEVIDA EM CADASTRO DE INADIMPLENTES. DÍVIDA INEXISTENTE. DANO MORAL CONFIGURADO. SENTENÇA MANTIDA. 1. "O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras" - Súmula 297 do STJ. 2. A inscrição indevida nos cadastros de inadimplentes enseja a reparação por dano moral. 3. Recurso conhecido e desprovido.(TJ-DF - APC: 20130111474179, Relator: SEBASTIÃO COELHO, Data de Julgamento: 09/12/2015, 5ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 15/12/2015 . Pág.: 208)

Outra demonstração de diálogo das fontes é a aplicação da súmula 194 do STJ. A súmula enuncia que prescreve em 20 anos a pretensão de exigir indenização do Construtor por obras defeituosas. Todavia, o art 7º do Código Defesa do Consumidor prevê um prazo prescricional de 5 anos para mesma pretensão supra mencionada. Destarte, o STJ adotou o entendimento mais favorável ao consumidor abandonando o dispositivo do art. 7 do CDC a aplicando o prazo prescricional de 20 anos.

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE DO CONSTRUTOR. DEFEITOS DA OBRA. CAPACIDADE PROCESSUAL. PERSONALIDADE JURÍDICA. SÚMULA N. 7/STJ. PRAZOS DE GARANTIA E DE PRESCRIÇÃO. 618/CC. SÚMULA N. 194/STJ. DECISÃO MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. IMPROVIMENTO. I. Na linha da jurisprudência sumulada desta Corte (Enunciado 194), 'prescreve em vinte anos a ação para obter, do construtor, indenização por defeitos na obra'. II. O prazo estabelecido no art. 618 do Código Civil vigente é de garantia, e, não, prescricional ou decadencial. III. O evento danoso, para caracterizar a responsabilidade da construtora, deve ocorrer dentro dos 5 (cinco) anos previstos no art. 618 do Código Civil. Uma vez caracterizada tal hipótese, o construtor poderá ser acionado no prazo prescricional de vinte (20) anos. Precedentes. IV. Agravo regimental improvido.( grifo nosso)(STJ - AgRg no Ag: 991883 SP 2007/0291689-6, Relator: Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, Data de Julgamento: 12/06/2008, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 04/08/2008)

Portanto, percebe-se que o Direito não é estático, ele é dinâmico. Essa dinâmica tanto social quanto normativa resulta em diversas colisões de normas, principalmente por decorrência do pluralismo legislativo Brasileiro. O Diálogo das fontes é, sem dúvida, uma ferramenta hermenêutica eficaz para dirimir os conflitos de normas e, por conseguinte os conflitos sociais. Nesse diapasão as fontes não mais se excluem, pelo contrário, se “comunicam” entre si de forma coordenada para melhor atender a unicidade do ordenamento jurídico.

Apesar de a Constituição Federal ter determinado a criação do Código de Defesa do Consumidor, no art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, este Código não é o único instrumento capaz de regular as relações consumeirista. Nesse sentido a melhor solução para o caso concreto será aquela mais favorável ao consumidor, por ser hipossuficiente na relação jurídica, utilizando em conjunto as fontes diversas do Direito, para com isso garantir a efetiva proteção do consumidor.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil. Disponível em. Acesso em: 16 fev 2015

______. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em 16 fev. 2015

______ Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 747.768/PR. Relator: Ministro João Otávio de Noronha.

Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=6614214&... 6456&data=20091019&tipo=5&formato=PDF >. Acesso em: 17 fev. 2015

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. trad. Maria Celeste C. J. Santos; apres. Tercio Sampaio Ferraz Júnior. 10ª. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

JAYME,Erick. Visões para uma teoria Pos Moderna do Direito Comparado. Revista dos tribunais,v 759. São Paulo: Revista dos Tribunais. Jan 1999- p. 24

KELSEN, Hans, Teoria pura do direito. trad. João Baptista Machado. 6ª. ed. São Paulo: Martins Fontes.

MARQUES, Claudia Lima. Diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil: do diálogo das fontes no combate às cláusulas abusivas. Revista de Direito do Consumidor, v. 45, jan.-mar. 2003, p. 71 e ss.

__________; BENJAMIN, Ântonio Herman; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 34/35. In: MARQUES, Cláudia Lima. Diálogo das Fontes: do conflito à coordenação de normas do direito brasileiro. 2ª Tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 75-77

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