DANO MORAL OU MERO ABORRECIMENTO?

Direito Civi dano moral Direito Constitucional Geral Consumidor

Os dissabores da vida cotidiana

E a "Accountability"?

 

Accountability é a exigência constitucional da fundamentação da decisão. O artg 93,IX da Constituição brasileira estabelece que os julgamentos devem ser públicos e as decisões bem fundamentadas, vejamos:

 

todos julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

Livre convencimento ou solipsismo?

 

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Essa liberdade de decisão, muitas vezes incorre em decisões solipcistas. Termo atribuído por Lênio Streck, significa “a si mesmo” ou seja, solipista é aquele que age conforme a sua própria consciência, o que reflete na discricionariedade positivista, presente na esfera jurídica.

“O que acontece é uma “mixagem produzida no âmbito do senso comum teórico” dos juristas, que por vezes interpretam em conformidade com o paradigma da filosofia da consciência ao mesmo tempo em que apostam na metafisica clássica” (STRECK, 2013)

O Mero Aborrecimento ( e os dissabores da vida cotidiana)

 

Majoritariamente, os pedidos de dano moral são indeferidos sob o argumento de que o fato é um "mero aborrecimento", que fazia parte dos "dissabores da vida cotidiana". Mas por que isso acontece? e como rebater essa tese?

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Mas de onde veio esse argumento?

 

Em 2005 foi editada a SÚMULA 75 TJ/RJ que enunciava que:

O simples descumprimento de dever legal ou contratual, por caracterizar mero aborrecimento, em princípio, não configura dano moral, salvo se da inflação advém circunstância que atenta contra a dignidade da parte.

Todavia, o Órgão Especial do TJ/RJ cancelou a Súmula da Corte, em 2018, através do Processo Administrativo nº 005671618.2018.8.19.0000, instaurado a requerimento do Centro de Estudos e Debates do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro - CEDES, mediante provocação da Ordem dos Advogados do Brasil- Seção Judiciária do Rio de Janeiro. (OAB/RJ).

Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor/perda do tempo útil

Para fundamentar o cancelamento da referida Súmula, a OAB/RJ sustentou a Teoria do Desvio produtivo do Consumidor e a perda do tempo útil. Com base nessa teoria, todo tempo desperdiçado pelo consumidor para a solução de problemas gerados por maus fornecedores constitui dano indenizável.

Conforme OAB:

Assim, nas relações de consumo, não faz o menor sentido que o consumidor perca seu tempo já escasso para tentar resolver problemas decorrentes dos bens concebidos exatamente com o objetivo de lhe poupar tempo.

Ademais, a OAB/RJ apontou que, a expressão “mero aborrecimento” é demasiadamente subjetiva, que dá ensejo em decisões judiciais que violam os princípios da isonomia e da segurança jurídica.

Nesse mesmo sentido, o Desembargador Alcides da Fonseca Neto teceu considerações acerca da necessidade de cancelamento da súmula. Vejamos:

 

sobretudo, por conta da expressão “mero aborrecimento”, que, além de ensejar uma interpretação ampla e subjetiva de cada julgador, acaba por dispensar uma fundamentação concreta em cada caso específico dos motivos pelos quais o inadimplemento contratual gerou apenas mero dissabor, e não efetivamente dano moral, contrariando, assim, o teor da CRFB, em seu art. 93IX. ( fragmento da decisão)

Mas a culpa é só do Juiz?

 

O cancelamento foi relativamente recente (há 2 anos). Contudo, a Súmula vigorou por 13 anos, e mesmo depois de seu cancelamento os Magistrados continuam indeferindo o dano moral, com o mesmo fundamento da Súmula cancelada. ( veja que a decisão que eu citei no inicio do texto foi proferida em 2019)

Contudo, muitos advogados, ao fundamentar um pedido de dano moral reforçam seus argumentos em um caráter teatral: (alegam que o cliente perdeu o sono, teve abalos mentais, que o fato causou tanto sofrimento). O que faz com que o drama sobreponha à fundamentação jurídico/teórica.

Mas, desde quando é preciso um sofrimento estritamente psicológico para a caracterização do dano?

O advogado precisa convencer o Juiz do direito que foi lesado (direitos da personalidade, dignidade humana, etc.) e justificar de que maneira houve essa lesão, e para isso, deve fazer uso das ferramentas hermenêuticas e dos conhecimentos profundos do Direito, com uma base sólida e acadêmica.

 

Considerações finais

 

É importante perceber o papel do advogado para a construção do Direito. Não devemos, tão somente, reproduzir o Direito. Os autores e professores usam cada vez mais uma linguagem simplificada a fim de facilitar o “entendimento” ou muitas vezes para aumentar a venda de livros, é o que Lênio Streck (2013) classifica de "periguitização do Direito".

A consequência disso tudo é a perca da capacidade crítica dos alunos e dos bacharéis em Direito, que podem até decorar o aprendizado e treinar para ser aprovado em concurso público (através da leitura de "esquematizados").

Todavia quando deparam-se com um caso concreto, em que é preciso uma crítica e reflexão, o operador do Direito, em detrimento desse ensinamento "fast food", não saberá como agir.

Nós, como advogados, temos um papel fundamental para a crítica e construção do Direito. É comum um certo desespero quando nos deparamos com jurisprudências totalmente desfavoráveis. Contudo,para construir argumentos consistentes e quebrar alguns paradigmas é preciso interagir o Direito com outras áreas de conhecimento, fazendo com que o Direito dialogue com a filosofia, sociologia, economia, etc, a fim de, efetivamente, alcançar o acesso à justiça.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição Federal de 1988- Art. 93.

_____ PJERJ. Orgão especial. PA nº 0056716-18.2018.8.19.0000. Relator: Des. Mauro Pereira Martins. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/dl/leia-decisao-tj-rj-cancelou-sumula-mero.pdf> acesso em: 04 de Abril de 2020.

STRECK Lenio Luiz. Compreender direito: desvelando as obviedades do discurso jurídico – SãoPaulo: Editora Revista dos Tribunais,2013.

STRECK, Lenio Luiz. O que é isto- decido conforme minha consciência? 4ª ed. - Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2013.

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