Identidade nacional e honra
em 24 de Maio de 2020
Este ensaio pretende fazer uma análise sobre a situação religiosa do Brasil no nordeste brasileiro, ao longo dos séculos XVI e XVII, de modo que seja possível perceber as formas de comportamento que vigoravam nessa região, o perfil das pessoas envolvidas, e a política imposta pela Igreja, através da Inquisição e de seus agentes, para com os considerados cristãos novos, na colônia sul-americana. Estruturalmente, o trabalho se dividirá em duas partes: Uma voltada à discussão historiográfica e a outra com a intenção de analisar uma fonte escolhida do período. Antes disso, algumas considerações devem ser levadas em conta.
Uma delas é o fato do Brasil, à época colônia espanhola, ter sido anexado aos territórios desta coroa em função da crise sucessória no reino português, no qual o trono ficara vazio e se fez necessário que o rei espanhol o ocupasse. Dito isto, podemos compreender a política inquisitorial implementada tanto em Portugal como no Brasil a partir do final do século XVI, algo que antes não era praticado pela coroa portuguesa.[1] A outra era a relevância que o território brasileiro possuía em termos econômicos, sendo uma das principais regiões produtoras de açúcar para exportação. Essa importância chamou a atenção de concorrentes externos que buscaram tomar o território brasileiro junto à coroa da Espanha, como foi o caso dos holandeses em Pernambuco e outras localidades, inimigos dos espanhóis desde a Guerra dos 30 anos, que junto com a Companhia das Índias Ocidentais (WIC), contribuíam para o refino e o comércio do açúcar para a Europa.
Durante o período das invasões holandesas, inclusive a Bahia estava em guerra. A posição social dos cristãos novos nesse contexto era complicada, já que estavam inseridos na lógica cotidiana da região, tendo eles se adaptado econômica, política e socialmente na maioria dos casos. Isso ocorreu pelo fato do Tribunal do Santo Ofício, na Europa, ter outras prioridades de ação, apesar da presença judaica na Bahia e em outros locais do Brasil serem atestadas por diversas fontes. Dessa forma, o Brasil como totalidade territorial, e o nordeste como regionalidade expressiva dessa configuração, se viram relativamente pouco expressivos quando se tratava da perseguição aos judeus, especialmente se comparado ao México, e até mesmo a Goa, territórios nos quais havia um tribunal Inquisitorial.
Isso não significa que não houvessem judeus no território. Ao contrário, denúncias chegavam com frequência à Castela por parte dos agentes da Igreja, fossem “comissários”, “visitadores” ou “familiares” que se deparassem com a presença destes elementos em território brasileiro. A pesquisadora Anita Novinski, em seu livro “Cristãos novos na Bahia”, demonstra que o contato entre estas autoridades e cristãos novos era frequente. Em muitos casos, contudo, a burocracia exigida, além da ausência de um Tribunal do Santo Ofício no território dificultava a ação destes agentes da igreja, mas isso não significava que não havia perseguição e prisão.
Essa presença maciça de cristãos novos nas colônias se devia em especial aos exílios que ocorriam em função da perseguição no próprio reino, e que não deixaram de ocorrer após o perdão de 1605[2]. Como bem lembra Anita Novinski, o Estado e seus agentes possuíam o dever de perseguir e executar as penas prescritas aos réus, enquanto a Igreja e seus agentes se encarregavam do julgamento. As prisões do reino se abarrotaram de presos religiosos ao longo do reinado de Filipe II, um dos que mais defenderam a fé católica. Como o nordeste brasileiro era menos “vigiado” pela Inquisição, como foi mostrado aqui, do que outras áreas do reino, os cristãos novos aqui estabelecidos encontraram um território no qual puderam desenvolver suas atividades de forma bastante desprendida, especialmente no setor comercial, como foi o caso do mercador André Lopes de Carvalho, um dos cidadãos mais antigos da Bahia, denunciado em 1618.
Após a vinda dos holandeses percebe-se uma perda de poder político por parte do pilar econômico principal do nordeste que era a lavoura canavieira. O poder econômico que possuíam, entretanto, não foi diminuído, mas afirma-se que a postura holandesa para com cristãos novos na colônia era, ao contrário da postura ibérica, de liberdade. Rômulo Nascimento afirma que muitos cristãos novos tiveram a oportunidade de se inserirem na sociedade e de se tornarem pessoas notáveis no que chamamos de Brasil Holandês. Isso fez com que o estigma religioso que acompanhava os cristãos novos fosse substituído por um estigma político em tempos de guerra com a Holanda, de modo que as “práticas judaizantes” passaram a ser condenadas com mais afinco pelo Santo Ofício. Anita Novinski, a esse respeito, afirma:
“(...) Os historiadores não hesitaram em afirmar que os cristãos novos do Brasil foram responsáveis pela invasão holandesa na Bahia e pela perda da cidade. É ainda [Charles] Boxer que nos mostra a ingenuidade de tal afirmação, pois os navegantes e marinheiros holandeses, perfeitamente familiarizados com os portos brasileiros, não necessitavam, nas expedições de 1624 e 1630, dos judeus para guiá-los. Os cristãos novos, então como em outros períodos da História, foram apontados pelas classes dominantes como o “bode expiatório” para justificar o desastre e a fraca resistência da população portuguesa.” [3]
As acusações que recaíam sobre estes elementos, portanto, além do estigma que teriam ganho de terem auxiliado na tomada pela Holanda de parte do nordeste brasileiro, eram aquelas relacionadas às práticas judaizantes, que são resumidas pela autora de “Cristãos novos na Bahia” na página 140. Entre estas práticas estão: “fazer sujidades junto à cruz, ter “sinagoga”, criticar o Santo Ofício, ter dois nomes, ter um tesouro escondido para socorrer os que saíam penitenciados, fazer ajuntamentos, inclinar-se para o inimigo [Holanda], virar a cara na Igreja, comer o cordeiro pascal, comer depois de comungar, açoitar um crucifixo”, entre outras práticas consideradas pela Igreja como heréticas.
Para Anitta, contudo, de volta à página 120 de seu livro, “As práticas judaicas, que vagamente lembravam e algumas vezes praticavam, faziam parte menos de uma necessidade interior de caráter religioso do que de um conjunto de atitudes, que respondiam a uma necessidade de adesão, participação e identificação.”. Ou seja, as ações consideradas heréticas pelo Santo Ofício, em muitas ocasiões ocorriam devido à uma necessidade de se posicionar que essas pessoas sentiam, em meio a um contexto de perseguição. Era, portanto, uma maneiro de demonstrarem que estavam inconformados e que eram capazes de resistir àquele cenário.
A figura do conde João Maurício de Nassau como governante e líder da Companhia se torna aí um aspecto interessante. Isso porque, conforme o historiador clássico José Antônio Gonsalves de Mello afirma, apesar de querer a expulsão e eliminação imediata dos membros da elite ibérica do território conquistado, sua atitude perante ao restante da população, o restante produtivo, diga-se de passagem, foi de acolhimento, pois não esperava controlar um território sem respeito às atividades que ali se desenvolviam. Portanto, o conde foi um dos poucos a buscarem uma política conciliatória entre portugueses e brasileiros.
A relação entre brasileiros e holandeses, porém, ficou mais instável por conta do fator religioso, segundo o próprio José Antônio Gonsalves de Mello. Em seu livro “Tempo dos Flamengos”, o autor afirma que
“Muitos documentos mostram-nos que os holandeses consideravam como inimigos não apenas os brasileiros ou portugueses em geral – já que contavam com o auxílio de vários deles “e não dos mais abatidos do povo” – mas, particularmente, os católicos, mesmo os de suas próprias fileiras. (...) Certa carta chega a declarar que os papistas eram aqui os piores inimigos dos holandeses, sem distinção de origem.”[4]
Casos de deserção de soldados franceses e ingleses, católicos, que chegavam ao Brasil e se recusavam a lutar contra seus irmãos de fé foram frequentes. Mesmo assim, Nassau foi importante nessa relação, afastando as propostas mais radicais vindas de seus ministros protestantes para evitar choques mais duros com autoridades religiosas e mesmo seus seguidores. Padres e frades católicos foram firmes nas críticas e na difamação do inimigo holandês em território brasileiro, mas boa parte da população buscou uma forma de, sob a nova administração, seguir com seus atos de fé, já que os holandeses deram aos brasileiros total liberdade de consciência. Essa liberdade de consciência, contudo, não se traduzia sempre em liberdade de culto, conforme lembra J. A. G. de Mello, algo que Nassau buscava em princípio respeitar.
Sobre a população judaica de Pernambuco, à qual José Antônio Gonsalves de Mello chama “a nação judaica do Recife”, não é possível fixar um período exato dessa migração para o Brasil, mas muitos vieram junto da Companhia, como soldados ou demais empregados. Outros que já residiam no nordeste brasileiro, após a instauração da liberdade de consciência na região pelos holandeses, puderam se revelar, mudando de nome para outros mais israelitas. Estes eram os chamados marranos. Aqueles contrários à religião judaica no Brasil não eram só os católicos. Holandeses reformados também tinham suas críticas, mesmo que permitissem que professassem sua fé e até mesmo que construíssem sinagogas. O culto, por exemplo, deveria ser feito de portas fechadas de modo a não perturbar os calvinistas. Formou-se, então, uma verdadeira comunidade, que ao mesmo tempo que se inseria na sociedade em alguns momentos, sua essência era proibida de ser manifestada em público.
Economicamente, sobressaíam-se os judeus sefardins. Por conta de terem vindo da Europa junto com a Companhia, conheciam a língua holandesa e a portuguesa, além de possuírem ativos na Europa e conhecimento da prática fiduciária e comercial. Assim, eram preferidos até mesmo pelos próprios holandeses entre si, sem falar na própria concorrência que travavam com os católicos que tentavam exercer seus negócios. Em 1637 e 1641, temos o exemplo dessa disputa, na qual requerimentos foram redigidos pela Câmara dos Escabinos de Cidade Maurícia em prol da privação da comunidade judaica de exercer a atividade comercial, possuindo lojas ou vendendo produtos livremente, além da prática de corretores, a qual faziam mais e melhor do que a maioria.[5]
Todavia, no Brasil os judeus conseguiram se firmar principalmente por conta dessas razões econômicas. Como lembra José Antônio Gonsalves de Mello em “Tempo dos Flamengos”, “No Brasil gozavam eles [judeus] de direitos que em Amsterdam não lhes eram concedidos, como manter lojas ou ter solicitadores seus no foro” (MELLO, Pp. 259). A cobrança de impostos também foi uma atividade que aos poucos passou para o domínio dos judeus, o que contribuiu também para que senhores de engenho e outros proprietários de terras alimentassem desprezo por esta camada da população. Muito em função disso, segundo ainda Gonsalves de Mello, a deserção de muitos fazendeiros teria se dado, preferindo viver em locais isolados a serem explorados por judeus.
Para esta parte final do trabalho iremos analisar de forma sucinta uma fonte histórica do período, de modo a buscar as convergências com as visões expostas aqui pelos autores. A fonte utilizada serão as crônicas de Francisco de Brito Freyre, intituladas “Nova Lusitânia – História da Guerra Brasílica”, escrita em 1675. Para começar, é necessário compreender quem era Francisco Freyre, que posição ocupava na sociedade brasileira e quais suas intenções ao escrever estas crônicas.
Francisco de Brito Freyre foi um soldado na Guerra de Restauração, contribuindo para a expulsão dos holandeses do território, principalmente na Batalha de Montijo em 1644. Era também fidalgo e também chegou a ocupar o cargo de governador geral de Pernambuco de 1661 até 1664. Em suas crônicas, das quais foram selecionados trechos que se pretende analisar de acordo com a proposta do ensaio aqui escrito, Francisco narra a história da batalha portuguesa pela América, desde sua conquista até o momento da expulsão dos holandeses, o que significaria o sucesso da coroa de Portugal na manutenção de seu domínio sobre aquela colônia.
Um momento de sua crônica chama a atenção quando busca explicar a tomada da Bahia pelos holandeses. Antes de tudo, é possível reparar que não é atribuído aos judeus nenhuma espécie de motivo para a derrota sofrida, visão que vimos em muitos momentos a historiadora Anita Novinski criticar, justamente, devido à falta de consistência dessas teses. Em suas crônicas, Francisco de Brito Freyre se atém aos aspectos militares, sem tocar muito na religião para explicar os acontecimentos, devido à posição que ocupava. Em certo momento, enquanto narra a tomada da Bahia, ele escreve:
“(...) porque havendo estes [holandeses] promulgados editaes, para os que quisessem voltar a suas casas, lhes ser geralmente concedido, o uso livre das consciências, & das fazendas, dissimulando os grilhões da servidão, com estas aparências de liberdade, mais de duzentos, quase todos degradados por graves crimes, se acomodarão a viver entre os contrários.”[6]
Neste recorte é possível observar claramente o que nos havia dito José Antônio Gonsalves de Mello a respeito da política holandesa frente aos portugueses e brasileiros, em especial para o caso de Nassau em Pernambuco, mas que pode ser expandido também para a Bahia no período em que lá estiveram presentes. Ou seja, os holandeses buscavam ao máximo manter a população local, respeitando suas liberdades, de modo a tornar a região conquistada economicamente próspera. Se preocupavam antes com a produtividade e a composição econômica, já que quem vinha governar não era a Holanda especificamente, mas sim a WIC, que se concentrava nas formas de enriquecimento que aquele território oferecia, além de outros aspectos. A população também, é importante notar, em sua maioria só queria um local para produzir livremente suas mercadorias, e a questão religiosa acabava se tornando secundária perante as urgências maiores que tinham.
Em outro momento, Francisco de Brito Freyre faz alusão à tendência ao comércio dos holandeses que haviam chegado, dessa vez em Pernambuco, no ano de 1631. Alegava, nas escrituras, que os holandeses tinham cessado com a atividade militar expansiva de modo a priorizar outras:
“Os Olandeses, que no Estado do Brasil, aplicavam toda a diligência em prosseguir a conquista, buscaram caminho novo de penetrar a campanha; & estabelecer o commercio, entre os Moradores. Porque em Olinda, & no Recife, estavam mais como sitiados, do que victoriosos, pela contínua, e & valerosa opposição dos Portugueses, que assistiam nos postos do Real, os terem apertado de maneira, que não só comiam o pão, mas queimavam a lenha de Olanda, naquelas praças, onde começam os bosques, junto das portas.”[7]
Aqui temos o momento, descrito por Francisco Freyre, no qual os holandeses teriam optado por exercer o comércio na região conquistada e não seguir com as campanhas militares. Este trecho é interessante justamente pelo fato do comércio ser promovido com os Moradores, ou seja, com a gente daquela nação, pré estabelecida, independentemente do credo ou da posição social que se encontravam, já que também se encontravam em penúria os invasores dos Países Baixos. Tipicamente calvinista, este pensamento em prol do lucro e do comércio se encaixou como já vimos na mentalidade daqueles que já residiam aqui e buscavam uma forma de enriquecer. Os judeus, como já vimos tando com Anita Novinski como José Antônio Gonsalves de Mello, foram aqueles que realizaram muitas das tarefas necessárias à edificação da sociedade holandesa no Brasil, entre elas o comércio, a corretagem e o financiamento de investimentos. Os marranos eram aqueles que, dentro da população local, puderam se ver dentro de um contexto favorável mesmo em meio à todo esse caos.
Como as passagens de Francisco de Brito Freyre falam pouco da religiosidade e focam mais no desenrolar do confronto entre as duas partes envolvidas, foi necessário um exercício mais minucioso de análise de modo que fosse possível encontrar alguns indícios desse panorama. Porém, é possível notar, quando narra um episódio envolvendo uma nau espanhola, em 1624, que continha franceses huguenotes. Ao longo da viagem, segundo Francisco, foi possível ver todos os cinco huguenotes convertidos e professando a fé “correta”, tendo se desfeito de seus vícios e se confessado em meio à embarcação que partia da Ilha da Madeira à mando da Rainha de Navarra.[8]
Os huguenotes, calvinistas franceses, não poderiam chegar ao Brasil ainda protestantes, ou não encontrariam aspectos de identificação entre aqueles que auxiliaria no combate. Sem contar que a presença de hereges no território já era demasiada para os espanhóis. Este exemplo serviu apenas para demonstrar a importância do motivo pelo qual lutavam, em última instância, espanhóis e holandeses, católicos e protestantes. Portanto, podemos chegar à conclusão, a partir da fonte, que os holandeses de fato teriam dado maiores oportunidades e liberdades àqueles que se juntassem ao território recém conquistado, fosse na Bahia ou no Recife, nem sempre colocando em primeiro lugar a questão religiosa quando se tratava de controlar o território. A relação entre holandeses e aqueles que aqui estavam foi baseada na desconfiança, devido ao choque de sociedades e culturas que se dava a partir de sua chegada ao Brasil em 1624.
[1] NOVINSKI, Anita; Experiência Inquisitorial na Bahia. In. Cristãos novos na Bahia. 2ª Edição, São Paulo, Ed. Perspectiva. 2013. Pp. 109.
[2] Perdão concedido pela Igreja aos cristãos novos, que depois não se concretizou, apesar de centenas de prisioneiros terem sido libertados.
[3] NOVINSKI, Anita; Experiência Inquisitorial na Bahia. In. Cristãos novos na Bahia. 2ª Edição, São Paulo, Ed. Perspectiva. 2013. Pp. 119-120. Acréscimo meu.
[4] MELLO, José A. G. “Atitude dos holandeses para com os portugueses e os judeus e as religiões católica e israelita.” In: Tempo dos Flamengos. Ed. Pp. 240
[5] MELLO, José A. G.; “Atitude dos holandeses para com os portugueses e os judeus e as religiões católica e israelita.” In: Tempo dos Flamengos. Ed. Pp. 256-57.
[6] O trecho se encontra no Livro Segundo das escrituras, página 84. Link para download da edição utilizada: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4715
[7] Algumas alterações na escritura original foram promovidas por mim a fim de facilitar o entendimento do leitor, mas a intenção foi manter o texto e sua estrutura intactos em seu sentido. O trecho se encontra no Livro Quinto das publicações de Francisco de Brito Freyre, na página 204.
[8] O episódio encontra-se narrado nas paginas 79 e 80, no livro segundo. Itens 152, 153 e 154.