Identidade nacional e honra
Por: Miguel A.
24 de Maio de 2020

Identidade nacional e honra

As "revoluções morais" da América hispânica e inglesa

História História Mundial História Moderna e Contemporânea História dos Estados Unidos Profissional Curso superior

Independência e honra

         Os processos de emancipação dos estados americanos no século XIX tiveram diferenças e similaridades, isso é inegável. Neste trabalho me esforçarei para introduzir novas ideias dentro desse debate, que vieram à luz do livro “O Código de Honra: como ocorrem as revoluções morais”, do filósofo Kwame Anthony Appiah, para ilustrar essas características revolucionárias no contexto dos Estados Unidos, e compará-la com a independência das colônias hispânicas. Me agradaria também poder abordar o caso específico haitiano, mas isso não será possível neste ensaio.

            Para começar, o raciocínio de K. A. Appiah me parece, à primeira vista, muito útil para pensar os comportamentos humanos. Uma das ideias propostas por ele é a de que existem códigos de honra espalhados nas diferentes culturas, e que ditam portanto aquilo que se deve fazer em determinadas situações. Esses códigos ajudam a formar identidades sociais, os grupos com os mesmos códigos se reconhecem e interagem entre si (mesmo que isso pressuponha uma hierarquia entre os membros daquela cultura), e em caso de desobediência ao código, a reação da parte prejudicada na relação deve ser legítima e proporcional. Essa é uma espécie de teoria geral da honra, que busquei simplificar bastante aqui.

            O que importa identificar é que os processos de independência não estão vazios de uma inspiração alimentada pela honra. É claro, outras motivações, como a econômica e a política são preocupações legítimas, mas pensando com a ajuda da honra, podemos ver nas emancipações dos séculos XVIII e XIX uma ruptura moral, uma desagregação daquele ideal de Império que radiava da metrópole para os outros territórios. Afinal, o que é a moral senão o elemento sentimental que nos mantém unidos como sociedade e cultura? A última consequência da importância da moral é sua institucionalização, pela política, e isso K. A. Appiah deixa claro em diversos pontos do livro.

            As novas ideias trazidas pelos europeus para as colônias americanas despertavam a imaginação e ganhavam novos significados quando absorvidas nos contextos americanos. Seguindo a linha de John Pocock e Quentin Skinner[1], podemos analisar os conceitos que passaram a ser utilizados nos debates parlamentares para termos uma ideia da dimensão de como ocorria, e o que, realmente, causou esse desmoronamento, além de descobrir em que momento a crítica moral passou a ser realmente feita às metrópoles, assim como a tentativa de diferenciação em relação à esta, não a identificando mais como parte integrante de seu grupo.

            Um país, no cenário internacional, dessa perspectiva, pode agir como um indivíduo dentro de um Código de Honra. Nesse caso, se considerarmos os processos de independência da América Hispânica de Nova Espanha, Nova Granada e do Peru, podemos notar a diferença do nível do sentimento de pertencimento de cada uma dessas colônias, e até aonde estavam dispostas a mudar para conseguir o que queriam. Ainda seria possível notar o que foi conservado das relações anteriores, dos comportamentos e das instituições do Império Espanhol. Acima de tudo, o processo se caracteriza por uma localidade que acaba por ter sua honra ferida, ao ver que o centro do Império não atendia a certas expectativas depositadas por eles colonos sobre as autoridades peninsulares. A reação e sua intensidade, porém, dependiam das ferramentas que os colonos possuíam, ferramentas estas que podemos chamar de ideias e argumentos.

            No momento das independências se desenvolveu na Europa, especialmente a partir da Segunda Escolástica e do contratualismo a ideia da legitimidade da ruptura do povo com o seu soberano, em determinadas situações de tirania. Essa ideia foi explorada por autores como Jean-Jacques Rousseau, Thomas Hobbes e John Locke, desde o século XVII, e é claro, era amplamente difundida nas Américas. O contratualismo prevê, portanto, um compromisso moral entre súditos e soberano, ou seja, limites e deveres para ambos. As repercussões dessas ideias na América Inglesa, por exemplo, foram a base para o texto da Declaração de Independência, que é antes de tudo um documento moral, antes de político, além de terem iluminado os outros processos.

            A intensidade com que tais conceitos e ideias são absorvidos e reinterpretados pelos territórios coloniais possuem uma ampla relação com os acontecimentos daquele período. Não seria possível pensar a independência dos territórios hispânicos sem pensar na invasão da Península Ibérica por Napoleão em 1808, ou a independência norte americana desatrelada do contexto pós-Guerra dos Sete Anos para o Império. A Revolução Francesa, tanto em seu arcabouço intelectual como em seu arcabouço factual, junto com a Revolução Americana, teve um peso enorme para a independência dos territórios hispano-americanos.

            O republicanismo, o governo representativo, as liberdades civis,  tudo isso chegara ao longo do século XVIII às colônias, formou o ideário daqueles povos e configurou seu “mundo da honra”, para usar a expressão de Appiah, de modo que passaram a ver nessas ideias um caminho para melhorar as próprias relações com a Coroa Espanhola, em um primeiro momento, como explica o autor François Xavier Guerra. Quando a Felipe VII foi destituído do trono e José Bonaparte foi posto em seu lugar por Napoleão, a rejeição por parte da colônia foi tão grande quanto a dos peninsulares. As perspectivas mostradas por F. X. Guerra que eram possíveis de ser pensadas nas colônias espanholas eram a cidade e o reino podem nos ajudar um pouco a compreender o que unia os colonos aos peninsulares:

O reino remete, na verdade, a uma unidade política completa englobando múltiplas comunidades locais num território dotado das mesmas instituições e de um mesmo governo. Ele implica também uma unidade moral pelo sentimento que seus habitantes têm de uma filiação e de uma diferença comuns com comunidades análogas. (...) O reino, como a nação moderna, é uma “comunidade imaginada”, cuja construção demanda tempo. (GUERRA, 1999: 15)

            A independência pressupõe a saída dessa “unidade moral” que é o reino, para uma nova. Veremos no próximo ponto o caso das independências hispânicas, para que depois possamos analisar mais a fundo a Revolução Americana e extrair destas duas seus aspectos morais mais relevantes.

 

Independências hispânicas e a unidade moral

         Para que seja possível pensar cada caso, iremos apenas sugerir algumas ideias que podem servir para identificar a questão da moral dentro da criação dessas novas nações. Primeiramente, devemos colocar que, como bem lembra Benedict Anderson em seu Comunidades Imaginadas, tanto Estados Unidos como os territórios espanhóis eram estados “crioulos”, ou seja, eram formados por descendentes de europeus, com quem compartilhavam não só a língua, mas valores e costumes em comum. Para que o processo de emancipação fosse bem sucedido, seria necessário encontrar uma identificação maior com as terras americanas do que com o passado europeu.[2]

            Contudo, essa ruptura passava por um impasse, que Benedict Anderson assinala com precisão em seu livro:

Longe de “tentar conduzir as classes inferiores à vida política”, um fator essencial que impulsionou a luta pela independência em relação a Madri (...), foi o medo de mobilizações políticas das “classes baixas”: a saber, a revolta dos índios ou dos escravos negros. (ANDERSON, 2008: 86)

            Essas elites crioulas gozavam de privilégios na sociedade do Antigo Regime, no qual o pacto moral se manifestava muito mais nos níveis da tradição e do comportamento, e até do personalismo, do que a nível de instituições legais. Aliás, uma das marcas da moralidade moderna é a sua institucionalização, como já disse anteriormente, da qual a política é o caminho essencial. Hoje temos uma noção de modelo moral de organização do Estado, de instituições democráticas como o voto e a representatividade, de divisão de poderes, tudo isso faz parte do mesmo arcabouço fundamental. A maior representação de nossa cultura política Ocidental pode ser a Constituição, que reúne os direitos fundamentais do cidadão.

            A Constituição passou a ser um símbolo da limitação dos poderes reais, junto com outras premissas que sua elaboração trazia. A ânsia por representatividade era grande tanto na península como na América, mas as Juntas Governativas falharam em assegurar representatividade às colônias, que viam no monarca destituído a única representação possível do poder legítimo para os territórios coloniais do Império. Nesse sentido, a falha das Juntas foi vital, pois acabou por despertar nos colonos um sentimento de pertencimento único e capaz de unir a todos os colonos americanos. François Xavier Guerra chamou esse sentimento de “americanidade”.

            Por mais que tenham passado a desejar a independência, os processos foram diversos pelos países da América Espanhola. O caso da Nova Espanha, por exemplo, é um caso peculiar, e assim como o do Chile (1817), de bastante pioneirismo. É bem verdade que as Sociedades de Leitura já haviam se desenvolvido bastante no início do século XIX, e muitas ideias provindas do iluminismo estavam circulando há algum tempo. Porém, a ideia de democracia ainda não era tão popular, ao menos como entendemos a democracia nos dias de hoje. Houve sim uma tentativa de diferenciar as antigas elites crioulas do restante, leia-se índios e escravos. Na Nova Espanha havia uma tradição cultural que era o Culto à Virgem de Guadalupe, e que servia como elemento simbólico para todos que ali viviam. Era, como diz Guerra, “o elemento unificador de todos os componentes da sociedade mexicana”.

            Essa identidade compartilhada, fosse pela americanidade ou pelo culto à virgem, leva a um processo de reafirmação que tem a Igreja Católica como principal pilar de sustentação. O mito fundacional mexicano passa pela noção de uma conquista dolorosa enviada pela Previdência Divina, a conquista de um território que deveria ser mantido para preservar a fé católica. A lealdade ao Rei também era outro aspecto marcante dos movimentos pela independência no México.

            Isso nos dá base para pensar a independência da Nova Espanha como um movimento que buscava a reafirmação de suas raízes, que se viam destruídas na Europa. Se utilizando dessa linguagem conservadora, personagens como José Maria Morelos de Caracuaro, padre crioulo membro do movimento de Querétaro, considerava a guerra de independência uma guerra santa. É possível notar que os vínculos que os definia enquanto espanhóis, havia se rompido com a deposição de Fernando VII, e agora medidas revolucionárias eram necessárias para garantir os interesses da Nova Espanha.

            O inovador, como lembra Maria de Fátima Gouvêia, quanto à independência da Nova Espanha, foi sua capacidade de contemplar, em meio às novas formas de representação, o povo, que se tornou as bases dessa nova fundação. Por mais que o movimento mexicano tenha se caracterizado pela pluralidade de eventos e por sua extensão, e portanto ganhando característica de processo e de acontecimento ao mesmo tempo, em 1824 foi instalado, através de uma reação militar a um governo reacionário implantado por Agustin Iturbide, uma República Federativa, com Congresso e garantia de união, religião e independência. O homem capaz de derrubar Iturbide do poder foi Antonio Lopes de Santa Ana.[3]

            Uma nova noção de soberania foi forjada no México, que repousava não nas mãos de um monarca ou da Igreja, mas do povo. As novas instituições refletiam o conteúdo do vocabulário político da época, e configuravam o caminho mais legítimo para a honra dos defensores da independência, atribuindo ao Estado elementos modernos. Contudo, podemos dizer que muitos comportamentos e relações sociais se mantiveram, de modo que a ruptura da moral seria bem mais difícil, a exemplo da crença católica, principal moldadora dos costumes dos mexicanos. A ruptura foi, portanto, no campo político, tanto que foi sistema político que não se manteve, diferente, por exemplo, do caso brasileiro.

            Para ter uma ideia da representatividade dos crioulos na sociedade espanhola, a qual buscavam se livrar com o movimento de emancipação, Benedict Anderson nos mostra alguns dados interessantes:

(...) num total de 170 vice-reis na América Espanhola, apenas quatro eram crioulos. (...) No início da revolução no México, havia apenas um bispo crioulo, embora a proporção do vice-reino fosse de setenta crioulos para um peninsular. (...) Se os funcionários espanhóis podiam ir de Saragoça a Cartagena, a Madri e Lima, o “crioulo” mexicano ou chileno geralmente servia apenas nos territórios coloniais do México ou do Chile: os seus movimentos laterais eram tão restritos quanto a sua ascensão vertical. (ANDERSON, 2008: 97)

            O caso peruano foi diferente. Apenas em 1826 o Peru conseguiu sua independência. Isso ocorreu muito por conta, segundo sugere Maria de Fátima Gouvêia, do fato do Peru ter sido um bastião dos interesses imperiais na América durante todo esse tempo. No Peru, não foi possível a transferência da soberania para outra instância, como o povo serviu para o caso mexicano, o que atrasou sua desconexão com as ideias conservadoras do antigo regime. O caso peruano, conta Maria de Fátima Gouvêia, estaria mais ligado à um elemento cultural do que político, por conta do mito inkarrí[4], que funcionava como uma espécie de mito do retorno messiânico baseado na história de Tupac Amaru, líder mestiço que lutou contra os colonizadores espanhóis.

            A carência de uma elaboração conceitual e de uma renovação do vocabulário, como ocorrera no México, pelas classes letradas do Peru impediu que sua consciência nacional se desenvolvesse mais cedo. Dessa forma, podemos identificar o papel da tradição e da honra, antes da política em si, na formação dos interesses emancipacionistas no território. Mitos e memórias da história do povo inca marcavam o imaginário, mas a ausência dessas ferramentas de diálogo e reivindicação, também muito em função da proibição do estabelecimento de juntas de governo à época da deposição de Felipe VII, levaram o processo de independência peruano a ser o retardatário dos movimentos, e apenas quando todos os principais já estavam concluídos vimos de fato o Peru como uma República independente.

            A revolução do Peru, portanto, pode se encaixar em uma interpretação na qual os outros países, como era o caso do vice reino da Nova Granada que já era emancipado, que compunham as ex-colônias espanholas passaram, então, a pressionar pela independência do Peru, último guardião dos interesses da coroa espanhola.

            O caso da Nova Granada, por outro lado, teve uma sólida base intelectual. A Sociedade Patriótica de Caracas já permitia que as pessoas conversassem sobre a natureza dos direitos e outros tópicos. Os líderes da revolução em Nova Granada, Simon Bolívar e Francisco de Miranda, eram europeus que haviam participado das guerras napoleônicas no Velho Continente e traziam consigo ideais que fundamentariam o movimento separatista da região. Contudo, estes homens não podem ser considerados revolucionários de fato pois lutavam pela independência, mas também pela manutenção de seus privilégios na sociedade, e Bolívar acaba por assumir uma postura bastante autoritária, apesar da defesa pelo fim da escravidão, chegando a propor um poder moral, junto das outras três instâncias.

            Em 1816 Bolívar começaria sua investida contra os realistas defensores dos interesses da monarquia, e em 1819 estaria ocorrendo o Congresso constituinte de Angostura.

            Podemos notar que nesses três movimentos, a tentativa de encontrar uma nova forma de representar a união simbolizada pelo novo pacto desses três territórios recém-emancipados teve diferentes expressões. A moral desses povos caminhou de forma muitas vezes relutante quanto à ruptura com o império, muito em função do ceticismo em relação à classes mais baixas. Os crioulos, apesar de pouco representados na totalidade imperial, eram uma elite e gozavam de privilégios que procuravam manter, porém sob novas bases e fundamentos. Podemos dizer que estavam defendendo a honra de seus compatriotas, e que tinham como novas bases para essa convicção de que a emancipação seria o caminho moral e certo as ideias que a Revolução Francesa e a Revolução Americana traziam como mensagem, que em seus territórios ganhavam novos significados de acordo com quem as lia.

 

Os Estados Unidos e a honra nacional

         O caso norte-americano será tratado aqui separadamente, pois podemos notar que se trata de um caso peculiar de formação nacional, que até os dias de hoje conserva as bases morais fundamentais de sua independência. Essas bases foram formadas a partir do amplo debate que se deu durante as duas Assembleias Continentais, antes da produção da Declaração de Independência. O que importa veicular aqui, em comparação com as instituições da América Hispânica, era que o povo das Treze Colônias vinha de uma tradição que prezava pela limitação do poder real já fazia muitos séculos. Esse país, a Grã Bretanha, vinha de duas revoluções que ocorreram no século XVII e que contribuíram para que, por exemplo, uma carta de direitos (Bill of Rights) fosse produzida para conservar as liberdades civis no país.

            O enriquecimento dos Estados Unidos se refletiu após a relevância cada vez maior da colônia para as importações da metrópole. O algodão, o tabaco, o milho e outros produtos eram constantemente trazidos da América do Norte para as ilhas britânicas. A história que compartilhavam os colonos da América e os Britânicos era parte essencial das relações desses homens, tradicionalmente unidos pela língua, pela cultura, e pelos laços políticos. Até 1740 é possível dizer que essa identidade britânica era ainda compartilhada pelos americanos, até que a Guerra dos Sete Anos (1756-1763) explodiu e, inclusive com batalhas sendo travadas nos territórios americanos, a Grã Bretanha se viu cada vez mais enfraquecida.

            Como consequência da guerra, a Inglaterra se via destruída financeiramente e abalada militarmente. Ao tentar impor tributos novos às colônias americanas, como a Lei do Selo (1765) e a Lei do Chá (1773), a reação norte americana foi imediata. As discussões a respeito de uma eventual emancipação, porém, não eram, como observa Jack Greene em seu texto “Identidade dos estados e identidade nacional à época da Revolução Americana”, o processo de independência em si se deu de maneira desorganizada e mal planejada. Greene demonstra que havia, no debate que antecedeu a Declaração de Independência, ainda muitas divergências sobre se era mesmo viável o projeto de nação que se buscava pensar ali nas Assembleias Continentais.

            A independência vinha como forma de conservar a antiga identidade britânica que estes colonos se julgavam dignos de possuir, e que, portanto, criavam expectativas quanto ao tratamento que receberiam da metrópole. Ao verem como necessária a união das províncias e a formação de uma nação independente entre elas do restante do Império Britânico, vemos que as províncias surgem como ambiente destaque dentro dessa unidade. Explico: a diversidade cultural, econômica, populacional, política entre as províncias era tida como um entrave aos interesses de uma comunidade passível de ser imaginada na América do Norte. É por isso que inclusive Benjamin Franklin, grande entusiasta da causa americana, antes de 1770 nem conseguia considerar a possibilidade das Treze Colônias formarem uma única nação.[5]

            Não era apenas Franklin que via com ceticismo essa possibilidade, mas também os próprios delegados das províncias, como Samuel Ward, ou Joseph Galloway, e se preocupavam com a fragilidade de uma eventual união entre elas, temendo que alguma província tente tirar vantagem do pacto. John Adams, por sua vez, advogado de Massachusetts, era um defensor da união. Adams inclusive chegou a criticar a província de Nova York pela sua falta de intelecto, valor e espírito público. É possível notar que, para um momento no qual o cenário do Antigo Regime ainda era nítido no mundo inteiro, as Treze Colônias elaboraram um plano de estratégia muito bem embasado, com fundamentos explícitos na Declaração de Independência, muito influenciada pelas ideias  dos filósofos Montesquieu e John Locke.

            A união política se deu no primeiro momento, portanto, como instrumento para evitar os abusos do governo inglês à soberania das colônias, denunciando sua interferência excessiva nos assuntos competentes ao território inglês nas américas. O vínculo e a identidade norte-americana ainda não haviam sido forjados, já que as províncias possuíam memórias muito diferentes entre si. O caráter moral da Declaração de Independência demonstra a total consciência dos direitos e deveres cívicos pelos políticos norte-americanos, e nela fica evidente o momento de ruptura dos colonos, em prol da criação dos Estados Unidos da América, que se configurou na “longa série de abusos e usurpações”, que acenavam para o propósito de “submetê-lo a um despotismo absoluto”, nesse caso, “é seu direito, é seu dever, derrubar esse governo e providenciar novos guardas para sua futura segurança”[6].

            Esse texto é um exercício de moral cívica, e podemos entendê-lo realmente como um manifesto, antes de tudo. Um manifesto dos representantes das províncias americanas, que apesar de muito distintas entre si e deterem interesses muitas vezes conflitantes quanto ao comércio ou às leis, acabaram vendo na emancipação o caminho mais coerente para a defesa de seus interesses. A ruptura moral e política com a Inglaterra, como podemos analisar com esse caso, precedeu a formação de uma identidade nacional. A Constituição de 1787 marcaria o desfecho de uma guerra sangrenta pela liberdade em território americano, selando a vitória da nova união de estados e o pacto moral que havia sido feito, em termos políticos e legais, dessa vez.

 

Conclusão

            Para concluir, gostaria de dizer que pensar a honra para as nações é um tanto mais complicado do que pensar para os indivíduos, que expressam sozinhos suas reações e expectativas a respeito dos acontecimentos. Mesmo assim, quando Simon Bolívar, ou José Maria Morelos, ou John Adams expressam seus sentimentos e desejos de emancipação, é porque conseguem enxergar que, frente aos acontecimentos do presente, a relação colonial anteriormente existente passaria a configurar uma espécie de abuso, e a defesa da soberania da nação perpassava pela reivindicação da independência e pela defesa do governo representativo, de modo a resgatar uma honra perdida.

            É bem verdade que os processos revolucionários na América Hispânica e na América do Norte, como vimos, tiveram características, inicialmente, mais conservadoras, defendendo a união com a metrópole, mas quando a soberania das colônias se viu prejudicada (no caso espanhol com a queda do Rei Felipe VII e no caso norte-americano com o abuso do poder metropolitano após a Guerra dos Sete Anos), um arcabouço intelectual serviu como uma luva para criticar as antigas relações coloniais e reivindicar a independência. Essas ideias, dependendo do local, eram trazidas com mais ou menos intensidade, e suas discussões também eram mais ou menos frequentes. O caso de Nova Espanha, como vimos, é um exemplo da onde essa discussão intelectual teve lugar e conseguiu se desenrolar a ponto de encontrar uma nova fonte para a soberania: o povo. Diferente foi o Peru, que não deu tanto espaço a essas discussões, e seu processo de emancipação acabou sendo um dos mais atrasados.

            O caso norte-americano, podemos dizer, foi aqui o grande exemplo de uma revolução moral, ou de uma “economia moral” norte americana, para utilizar do vocabulário de E. P. Thompson, que viu, a partir de certo momento, os abusos da Coroa como um pretexto para a criação de algo novo, um novo “Mundo da Honra”, independente do corpo imperial britânico e com suas próprias bases e instituições fundamentais, um novo corpo capaz de unir as Treze Colônias britânicas apenas no combate pela honra dos cidadãos, já que a Constituição só seria promulgada em 1787, e a sua identidade nacional muito depois.

            Portanto, podemos aqui traçar uma ordem essencial para os acontecimentos das rupturas coloniais com suas metrópoles. A ruptura política e econômica vêm, ambas, acompanhadas, e se não precedidas, pela ruptura moral, que serve como crítica pioneira, e tem o papel de denunciar os abusos da coroa, denúncia esta que não aceitará um não como resposta, sendo a própria vida dos cidadãos um instrumento válido para a defesa dessas críticas. A trajetória posterior de estruturação política será variada de acordo com cada caso, mas podemos ressaltar aqui que onde essa crítica moral à legitimidade do sistema colonial não se encontrava, os padrões modernos de civilização tardaram mais a aparecer, e as instituições tradicionais se mantiveram por mais tempo. É só a partir de uma diferenciação objetiva, ou seja, não apenas instrumentalista, para com a metrópole, com a criação de uma nova identidade, que este novo “Mundo da Honra” poderá se formar, já que nos momentos anteriores a crítica moral ainda carecia de um elemento cultural, político, econômico, que lhe desse forma material.

            A moral de um povo é, portanto, a primeira coisa que se pode observar em formação, durante esses processos de emancipação, e sua constituição enquanto um novo “Mundo da Honra”, com expectativas e reações independentes, mas também é a última coisa que irá surgir após a estruturação dessa nação em termos políticos, econômicos, sociais. A moral representa os valores de um povo, que não estão totalmente encerrados, por exemplo, na oposição à Lei do Selo de 1765, mas estão em constante mutação mesmo após a promulgação de uma Constituição como a de 1776 nos Estados Unidos (A guerra civil americana também simbolizará isso). É a nossa moral que em primeiro lugar leva certas ideias e argumentos para as discussões, pois é ela que estabelece, como na Declaração de Independência, certas verdades consideradas “evidentes por si mesmas”.

Bibliografia:

- ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. Cap. 3: Pioneiros Crioulos. Companhia das Letras, 2008.

- APPIAH, Kwame Anthony. O Código de Honra: como ocorrem as revoluções morais. Companhia das Letras. 2012.

- GUERRA, François Xavier. A nação na América Espanhola: A questão das origens. 1999.

- GOUVEIA, Maria de Fátima. Revolução e Independências: Notas sobre o conceito e os processos revolucionários na América Espanhola.

- GREENE, Jack P. Identidades dos estados e identidade nacional à época da Revolução Americana.

 

 

[1] John Pocock e Quentin Skinner, ambos formados em Cambridge, fazem parte da escola historiográfica das linguagens políticas, na qual analisam os conceitos, seus momentos de fundação e sua repercussão no cenário internacional. Para saber mais, ver “Linguagens do Ideário Político”, de J. Pocock ou “Liberdade antes do Liberalismo”, de Q. Skinner.

[2] GUERRA, François X. A Nação na América espanhola: A questão das origens. 1999.

[3] GOUVEIA, Maria de Fátima. Revista estudos históricos. Vol. 20. Pp. 285-286. 1997

[4] Maria de Fátima Gouvêia explica o mito dizendo que ele ganhava força naquele momento que ele narrava a possibilidade da volta messiânica do inca de modo a restaurar os direitos primitivos. A autora explica que no século XVIII o mito teria influenciado diversas rebeliões contrárias ao colonialismo no Peru, dentre elas a rebelião de Tupac Amaru, índio mestiço de nome José Gabriel Condorcanqui, que visava restaurar o passado glorioso frente à autoridade real de Carlos III.

[5] GREENE, Jack P. Identidades dos estados e identidade nacional à época da Revolução Americana. Pp. 103.

[6] Trecho da Declaração Unânime dos Treze Estados Unidos da América, em CONGRESSO, 4 de julho de 1776.

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Graduação: História com licenciatura plena (Universidade Federal Fluminene)
Professor de História Licenciado pela Universidade Federal Fluminense.
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