Sociologia e História em Norbert Elias
Por: Miguel A.
23 de Maio de 2020

Sociologia e História em Norbert Elias

O cerimonial da Sociedade de Corte

História Sociologia história Curso superior Profissional História Geral História Cultural e Social

O livro de Norbert Elias “A Sociedade de Corte”, um clássico da sociologia, foi fruto do trabalho de graduação do autor, ainda nos anos 1930, mas só foi ser publicado no final dos anos 60. Nesta obra, Elias traça as origens de uma formação social que, para ele, ficara de fora, ou não havia sido privilegiada o suficiente nos estudos históricos, com exceção daqueles trabalhos que faziam o esforço de mapear os feitos dos monarcas à época da centralização do poder real, sob o que conhecemos como monarquia absolutista. Portanto, o autor procura demonstrar o processo que levou à formação, na França, deste modelo de sociedade baseada na proximidade de seus membros à figura do rei, e na interdependência destes agentes, o que rompe com uma perspectiva que Elias tinha da história em seu tempo, de que esta tratava exclusivamente de questões únicas e não buscava um paralelo no tempo ou no espaço.

            O livro inicia com uma crítica à historiografia do início do século XX, ainda engessada sob uma percepção muito simplista da história como a análise pelo historiador de um documento. Segundo o autor, não há uma verdade naquilo que se estuda na história, mas apenas no resultado de uma pesquisa, e falta à ela conexões, teorias e hipóteses que possam dar sentido pleno àquele problema estudado. Faltava, portanto, estudar não a um rei em particular, mas a função real e todas as complicações engendradas por essa ocupação, e para isso a sociologia teria um papel fundamental. É compreensível a preocupação do autor com esse problema da historiografia, apesar de muitas mudanças terem ocorrido para os nossos dias atuais na produção histórica. Roger Chartier, autor do prefácio do livro, resume essas preocupações em 3: A primeira o já citado caráter único do trabalho feito pelo pesquisador da história; a segunda, a superestimação dada às liberdades e ações individuais pelo historiador; e a terceira, a atribuição das evoluções das épocas e de períodos do que Elias chamaria de “equilíbrio social” aos atores detentores do poder.

            Com essas premissas, o autor rejeita uma série de conceitos que para os historiadores poderiam ser considerados pedras sólidas, e entre eles está a própria ideia de um “absolutismo”. Se o rei está inserido dentro de uma rede de interdependência, na qual o equilíbrio depende de sua capacidade de administrar as pressões existentes, para o  caso da França do antigo regime, de uma burocracia burguesa ascendente desde o século XIII e de uma nobreza aristocrática ligada ao rei por suas relações pessoais e títulos adquiridos por nascimento, a ideia de um absolutismo monárquico é incapaz de nos explicar a possibilidade de ação de um monarca dentro desse contexto, assim como suas ações. A corte pressupõe essa concentração de poder derivada do fim do poder dos senhores feudais e de uma tentativa de unificação do território sob um único líder. Porém, a posição real passa a ser aí plausível de muitas ameaças, como temos exemplos ao longo da história da França e de outros países nesse período. É daí que Norbert Elias desenvolverá sua metáfora do tabuleiro de xadrez, muito precisa em termos didáticos para explicar sua teoria, pois só é possível entender de fato a rede de interdependências que ligam os membros de uma sociedade como a de corte a partir dos diversos movimentos feitos, do conhecimento de cada agente e de suas capacidades, além é claro, das regras do jogo. Na corte, a etiqueta era necessária para se dirigir ao rei e ao restante dos membros, era um local de extrema regulação, onde o rei poderia facilmente conservar seu poder por conseguir manter perto aqueles que se diziam fiéis ao reino, sendo assim capaz de controlá-los frequentemente.

            O que chamamos de absolutismo na historiografia será resumido por Elias a partir de dois processos fundamentais. Primeiramente, o autor usará o termo centralização do poder, e as duas causas principais, definidas como um duplo monopólio: o primeiro era o monopólio da cobrança de tributos, de modo que o soberano tivesse assim uma receita suficiente para pôr em prática seus desejos políticos e até mesmo pessoais[1]; O segundo monopólio característico da sociedade de corte do antigo regime era o monopólio da violência, que garantia ao monarca a possibilidade de expandir seu território de influência através de guerras e forçar a cobrança de tributos das terras dominadas. Nesse momento, a política, a economia e a sociedade ainda não se encontram totalmente dissociadas, e nem são conceitos tão consolidados como hoje entendemos a ponto de podermos afirmar que os motivos de uma conduto foram puramente econômicos, ou políticos. Pelo contrário, a atmosfera dessa sociedade de corte confundia a política, as relações familiares, as amizades, a economia, tudo em um mesmo espaço no qual o monarca tinha a situação sob seu controle.

            Tal “formação social”, termo utilizado por Elias, só poderia ser compreendida a partir de seus próprios valores e códigos de conduta, e esses valores não eram abstrações, mas exigências daquela sociedade. Certas categorias psicológicas que existiam à época são inteiramente pertencentes àquele grupamento social e possuem um valor próprio para tal circunscrição histórica, e por isso é um erro grave tentar compreender essa sociedade a partir de nossos padrões atuais. Os conflitos e tensões existentes na sociedade de corte são capazes de assegurar, se bem administrados pelo rei, é claro, a sobrevivência dessa formação social, sob a condição de certas mudanças nas relações de interdependências. A visão sociológica auxilia muito o olhar do historiador nesse sentido, pois revela o que está por trás do que parece ser uma simples querela entre facções. Aquela formação depende daqueles conflitos acontecerem, e da formação de um novo equilíbrio dentro da sociedade, e isso irá caber à forma como o monarca é capaz de administrar essas tensões, pois não sendo capaz de preservar tal equilíbrio, sua cabeça estará facilmente em jogo, já que, como já foi dito, a posição real era muito cobiçada por diversos membros da corte, que estavam ali esperando sempre uma oportunidade de ver sua reputação ser alçada ao topo.

            Esse processo constante de ruptura e reconstrução de um equilíbrio a partir das relações de interdependência garantidas pela competência e pela prudência do monarca dentro de sua capacidade de gerenciar o duplo monopólio que está ao seu dispor é, digamos, a essência de uma teoria da sociedade do antigo regime e de sua preservação, e para entender a ruptura com essa sociedade é preciso antes compreender esse funcionamento básico. Isso nos faz também eliminar a ideia de que o rei seria dependente ou fantoche de um grupo social, já que é possível ver que sua função ali é manipular o equilíbrio que o possibilita governar. Dessa forma, Elias trata a “mediocridade” conservadora de Luís XIV como um papel pertinente ao seu posto, já que naquele momento era necessário acima de tudo regular e equilibrar os conflitos existentes dentro dos diversos grupos que o influenciavam, além, é claro, e isso é tão importante quanto a capacidade ativa do monarca, que ele também se submetesse aos mecanismos de controle que a vida na corte supunha, e isso incluía não só a adesão às regras de etiqueta, mas que compreendesse o funcionamento daquele aparato e soubesse da melhor forma gerenciar os grupos de modo a se manter no poder, pois o poder provinha dos grandes gestos, da capacidade do rei em ser benevolente em momentos de necessidade, mas também de ser severo em situações que requeriam tal conduta. (pp. 140-151)

            A questão do problema da atribuição do poder ao rei e dessa intensa centralização, para Elias, está em uma sociedade de alto nível diferenciação que se aproxima de um momento quando a influência, ou a ambivalência do poder dos grupos sociais ligados ao poder administrativo se torna tão equilibrada que um conflito se torna impensável, a menos que se deseje destruir uma formação social inteira. Dessa forma é atribuído ao rei esse duplo monopólio, mas também a responsabilidade de usá-lo com prudência, dentro daquele ambiente de influências no qual se encontram as diversas facções.

            Essa vida na corte, o ambiente regulado pelo soberano mas passível de interferências pelas outras partes envolvidas, pressupunha o que seria para muitos a tese central dessa obra de Norbert Elias: o desenvolvimento de um autocontrole pelos homens ali presentes, que fornecerá o molde de conduta para o homem civilizado moderno. As sensibilidades e comportamentos se modificam intensamente durante o recorte temporal feito pelo autor (século XIII-XVIII), e um processo de adaptação desses cortesãos se faz necessário para que possam seguir vivendo em sociedade. Na corte, a vida privada e pública se confundem ainda, ou ainda poderia ser dito que tal distinção nem sequer existia dentro das categorias psicológicas daquele tempo, o que gera uma espécie de economia aristocrática própria daquele formação, onde a representação e a credibilidade tinham muito valor, e os gastos governamentais nem sempre eram regidos pela receita que era possível acumular. Como bem resume Roger Chartier, esses comportamentos e controles incluíam “a arte de observar, aos outros e a si mesmo, a censura dos sentimentos, o domínio das paixões, a incorporação das disciplinas que regem a civilidade” (pp. 21), e a civilidade era justamente essa competência de ser digno da vida na corte, possuidor de crédito, detentor de reputação, prudência, competência e outros atributos que compunham o processo de curialização.

            Nesse sentido, podemos concluir esta breve resenha de modo a ressaltar justamente esse aspecto dos costumes gerados pela sociedade de corte, que foram fundamentais, dentro da lógica dessa sociedade, para a sua manutenção. É interessante como isso não foi aceito, como bem demonstra Elias já ao final de seu livro, sem resistências, e algumas provas disso é a persistência de um romantismo aristocrático que faziam alusão ao comportamento aventureiro e aos ideais de cavalaria antigos e caros à uma aristocracia que estava em processo de curialização e racionalização. Cada vez mais a conduta e o controle das tentações se faziam necessários para preservar aquela condição privilegiada, e o rei não estava fora dessa lógica. Com isso, o equilíbrio social do antigo regime pela sociedade de corte, considerada por Norbert Elias como a sua essência, era muito dependente desses comportamentos serem absorvidos pela nobreza que circundava a figura real, já que as relações de interdependência se tornavam cada vez mais fortes e centralizadas, concentradas e vigiadas.

A raíz do homem moderno e de seus hábitos civilizados está na corte, e a compreensão deste processo pode ser ainda melhor entendida se lermos a obra prima de Norbert Elias, publicada depois de “A Sociedade de Corte”, intitulada “O Processo Civilizador”. Nestes dois volumes o autor estuda mais profundamente as origens dos costumes e das regras de etiqueta que foram capazes de moldar os homens de seu tempo (vol. 1), desde o final da Idade Média, até o momento em que a centralização do Estado se faz necessária e a padronização desses costumes, além da própria vigilância se tornam mais intensas. Norbert Elias é um autor dotado de grande capacidade de compreensão de modelos sociais, além também de conseguir expô-los de uma forma bastante original e autêntica, e é claro muito esclarecedora do sentido de uma ação individual dentro de uma formação social, e por isso é de suma utilidade no complemento do trabalho do historiador até os dias atuais.

[1] Johan Huizinga (1872-1945) é um historiador que, já no século XIX, fala bem sobre essa suscetibilidade dos reis de seguirem um desejo muito mais pessoal em suas decisões do que de fato racionais, politicamente falando.

Referência Bibliográfica:

  • ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Ed. Zahar. Rio de Janeiro. 2001.
  • HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. Ed. Cosac Naify. São Paulo. 2010.
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Miguel A.
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Graduação: História com licenciatura plena (Universidade Federal Fluminene)
Professor de História Licenciado pela Universidade Federal Fluminense.
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