A fotografia e a construção das subjetividades
Por: Robert P.
26 de Novembro de 2018

A fotografia e a construção das subjetividades

Filosofia

Esse artigo tem como propósito discutir o papel da fotografia no processo de constituição da subjetividade. Para tanto, desenvolveremos uma reflexão baseada na ontologia da fotografia. De acordo com Dubois, a fotografia não é uma reprodução fidedigna, ela opera segundo a ideia de verossimilhança. Por verossimilhança entende-se a capacidade da fotografia de deixar rastros do real, pois a imagem é uma codificação do real e constrói um discurso do que entendemos por mundo. Mas o que queremos dizer por discurso?

Para Debouir, existe um sistema de escolhas e definições e esses dispositivos de discurso estão ocultados no espaço fotográfico. Tal sistema é construído conforme o uso de três signos, a saber, (1) o ícone; (2) o índice e (3) o símbolo, e todos esses signos convergem para o objeto ou referente fotografado. Ou seja, a imagem é uma emanação do objeto (referente) e deixa rastros (raios de luz) de algo que realmente existiu. Assim a fotografia constrói a nossa visão de mundo.

Esse sistema de representação apresenta o fazer fotográfico como um processo consciente de percepção das coisas do mundo através da semiótica da fotografia e a imagem como um noema ou isso foi dado dentro desse contexto. Portanto, ao abordar o tema fotografia utilizamos a imagem como a constituição última de um processo epistemológico. Para Dubois, tal epistemologia da fotografia envolve cinco elementos de representação, a saber, (1) tempo; (2) espaço; (3) o fotógrafo; (4) o punctum e (5) o stundium. Ao fazermos uma análise formal da fotografia consideramos todos esses elementos dispostos na imagem na forma de rastros, o que implica uma relação entre espectador e o operador.

 

A fotografia como a busca pelo belo

 

No seu ensaio “Sobre a fotografia: o heroísmo da visão”, Susan Sontag afirma que o que move as pessoas a tirar fotos é descobrir algo belo. De acordo com a autora, Fox Talbot patenteou a fotografia em 1841 como calótipo, pois do grego Kalos significa belo. Dessa forma, o papel da câmera no embelezamento do mundo foi tão bem sucedido que as fotos, mais do que o mundo, se tornaram o padrão de belo (SONTAG, p.12). As fotos criam o belo de tal forma que as pessoas passam a ver a si mesmos como atraentes através da fotografia.

A influência da fotografia foi tamanha em 1855 um alemão inventou a primeira técnica de retocar as imagens e ao expor as duas versões (a original e a alterada) em Paris a população parisiense ficou chocada. De acordo com Sontag, a notícia de que a câmera podia mentir tornou muito mais popular o ato de se deixar fotografar.

O que leva a autora a inserir uma distinção fundamental para o trabalho que se segue, a diferença entre mentir na fotografia e na pintura. Sontag afirma que uma pintura falsa (cuja autoria é falsificada) falsifica a história da arte, já a fotografia falsificada (modificada) falsifica a realidade, pois essa reclama para si uma condição de verdade que a pintura nunca poderia pretender (SONTAG, p. 104).

Tal condição de verdade abre o campo fotográfico em um novo modo de assimilar a realidade, conforme duas características distintas, a saber, (1) o embelezamento que provém das belas artes e (2) o ideal moralizado de se contar a verdade. Dessa forma, a capacidade desveladora própria da fotografia, faz com que ela entre de chofre na atividade de desmascarar a hipocrisia e combater a ignorância. 

Em um primeiro momento, ao assumir a tarefa para qual a pintura era um processo muito lento, devido a sua rapidez, o fotógrafo transformava a visão em um novo tipo de projeto, qual seja, reconciliar a pretensão de veracidade com a necessidade de achar o mundo belo. Em lugar de simplesmente registrar a realidade, as fotos tornaram-se a norma para a maneira como as coisas se mostram a nós, alterando, por conseguinte, a própria ideia de realidade e realismo. (SONTAG, p.104)

O fotógrafo era visto como um observador, mas quando se percebeu que ninguém tira a mesma foto da mesma coisa, a suposição de que s fotos representavam uma imagem impessoal, rendeu-se ao fato de que as fotos são indícios daquilo que o indivíduo vê. A fotografia inaugurou um novo modelo de atividade autônoma: permitir que todas as pessoas manifestem determinada sensibilidade singular e ávida.

Alfred Stieglitz representa muito bem essa ideia ao registrar a foto intitulada “Fifth Avenue, winter”, na qual o fotógrafo se orgulha de ter passado mais de três horas em uma nevasca, na renomada Avenida de Nova York.

Ou seja, a busca tornou-se a marca registrada do fotógrafo. Nesse período o close passou a ser a principal ferramenta utilizada. A nova técnica teve o seu auge entre 1920 e 1935, objetos domésticos, nus, eram retratados nas suas minúsculas cosmogonias da natureza. A capacidade desveladora da fotografia, junto a sua capacidade embelezadora, nessa época, estava mais ligada como uma ponte entre ciência e arte, como uma forma de aprimoramento didático da percepção.  Segundo Sontag, essas imagens independiam das ideias sobre o que é digno de ser visto e, nesse sentido, temos a imagem de fotógrafos como Harold Edgerton, intitulada “Respingo de leite”.

As imagens mais abstratas fazem parte da contra influência da pintura, pois o etos da fotografia quando busca abstração se assemelha mais ao etos da poesia. “O compromisso da poesia com o concreto e com a autonomia da linguagem corresponde ao compromisso da fotografia com a visão pura” (SONTAG, p. 110)

As características em comum são a descontinuidade, formas desarticuladas, coisas fora do contexto e a associação das coisas de forma mais elíptica. A tarefa assumida pelo fotógrafo nessa época é contestar o belo. O resultado é a descoberta da sugestão erótica de uma forma ostensivamente neutra como a foto “As pimentas” de Edward Weston.

Contudo, no início de 1930 a fotografia com close em plantas e pedras já estavam banalizadas e a visão fotográfica teve de ser renovada. Segundo Weston, na proporção em que a fotografia descasca o envoltório seco da visão rotineira, cria outro hábito de ver, intenso e frio, solicito e desprendido, encantado pelo detalhe insignificante, viciado na incongruência (SONTAG, p. 115).

A técnica imperfeita passou a ser apreciada exatamente porque rompia a entorpecida equação entre natureza e beleza. As fotos de Weston estavam ligadas a um otimismo da era moderna, o sentimento que agora imperava era o desencanto, em função de crises sociais e econômicas.

 

Virgínia de Medeiros: Fotografia e subjetividade

 

De acordo com as discussões em sala percebemos que a fotografia abre espaço para os seguintes questionamentos: O que uma fotografia quer dizer? Como falar sobre fotografia? Como uma fotografia faz sentido? Fica evidente na trajetória que desenvolvemos até o momento, que a imagem representa um espaço discursivo, e podemos analisá-la a partir de uma perspectiva histórica e teórica. Embora essa duas perspectivas tenham campos culturais diferentes, pressupõem expectativas diferente por parte do espectador e veiculam dois tipos distintos de saber, quando analisadas juntas sob a ótica do etos da fotografia, fazem com que a imagem adquira um status de conhecimento capaz de mudar o lugar da obra, do artista e da maturação do artista.

A fotografia se torna um elemento importante de escavação de uma arqueologia do saber, no sentido de identificar como pensamos, como adquirimos conhecimento. Ou seja, sob qual episteme as nossas vidas estão regidas. O que nos leva ao problema central desse ensaio: O que é possível conhecer com o nosso modo de nos compreendermos no mundo?

A fotógrafa Virgínia de Medeiros explora essa ideia de forma muito delicada no seu ensaio “Fábula do Olhar”. Nascida em Feira de Santana, Bahia, em 1973, a artista vive e trabalha em São Paulo e em 2006, teve a obra “Studio Butterfly” selecionada pelo Programa Rumos Itaú Cultural  para a 27º Bienal de São Paulo. Em 2009, participou da residência artística “International Women for Peace Conference”, em Dili, Timor-Leste. Em 2010 participou da 2ª Trienal de Luanda “Geografias Emocionais, Arte e Afectos” e em 2011, do 320 Panorama de Arte Brasileira, MAM São Paulo. Em 2012, ganhou a Bolsa Funarte Estímulo à Produção em Artes Visuais com o projeto “Jardim das Torturas” e foi premiada no 18o Festival de Arte Contemporânea Videobrasil com o Prêmio de Residência ICCo – Instituto de Cultura Contemporânea no Residency Unlimited – Nova York, EUA.[1] Nesse mesmo período a artista foi responsável pela instalação chamada “Fábula do olhar”, que consistia em uma série de entrevistas e ensaios fotográficos com moradores de rua da cidade de Fortaleza, Ceará.

A artista instalou um estúdio fotográfico em dois refeitórios destinados aos moradores de rua da cidade de Fortaleza. Os retratos dos 21 moradores de rua, foram expostos em uma série fotográfica em preto-e-branco, foram colhidos depoimentos em vídeo sobre a história pessoal de cada um dos colaboradores e no decorrer da entrevista a fotógrafa fazia uma pergunta-chave que direcionava e identificava a natureza da obra: “Como você gostaria de se ver ou ser visto pela sociedade?”.

 Esta questão, muito bem formulada pela fotógrafa, abriu espaço para o campo da subjetividade dos indivíduos retratados que, ao fabular sobre sua própria condição, se fazem personagens da obra. O momento da fabulação se dá quando a diferença entre aquilo que é real e aquilo que é imaginado se torna indiscernível, quando por esse processo o indivíduo se constitui como um sujeito da cena e não como um mero objeto que é observado. Esse momento possibilita que o indivíduo, agora sujeito da cena, possa criar um mundo, e nele se projetar. A artista convidou o fotopintor Mestre Júlio dos Santos que, através da técnica da fotopintura digital, coloriu os retratos em preto-e-branco interferindo nas imagens de acordo com as revelações dos moradores de rua. Como resultado temos uma exposição delicada e bela que punha em ação este jogo entre o real e a imaginação do sujeito, no momento em que se vê parte da obra.           

É interessante notar que a cada imagem temos o repertório cultural de cada uma das pessoas fotografadas e a cada imagem o espaço discursivo muda. No imaginário construído por cada um dos fotografados, podemos observar uma noção de belo, um código de vestimenta próprio para cada gênero, além da educação que tiveram para construir essa auto-imagem. No caso de Jéssica, por exemplo, a juventude a levam a se imaginar em um cenário mais inocente e delicado, com um belo vestido rosa, com uma flor no cabelo e com joias no pescoço e orelhas, nos remetem ao imaginário de um mundo fantástico de príncipes e princesas. A câmera torna-se um instrumento para captar o olhar da própria pessoa retratada, com a sua subjetividade produz um tipo de beleza otimista e esperançoso.

As fotos de Virgínia de Medeiros estão ligadas a um otimismo da identidade do sujeito fotografado, o sentimento que impera no imaginário de cada imagem descasca o envoltório seco da visão rotineira, cria outro hábito de ver, solicito e desprendido, encantado com o repertório cultural não só da beleza da fotografia em si, mas também da beleza do imaginário dessas pessoas que, em sua maioria, são tratadas como se não tivessem um repertório cultural próprio.

 

Referências Bibliográficas

 

DUBOIS. P. O ato fotográfico e outros ensaios.  São Paulo. 1998. Editora Papirus.

KRAUSS. R. O Fotográfico. Editora Gustavo Gil Port

LICHENSTEIN, J. Platão: imitação, obra e simulacro (A república, o sofista). In Lichenstein, Jaqueline (org). A Pintura, vol. 5: da imitação à expressão. São Paulo: Editora 34, 2004, pp. 17-22.

SONTAG. S. Sobre a fotografia: O heroísmo da visão. São Paulo. 1983. Companhia das Letras.

 

[1]Ver. http://virginiademedeiros.com.br/bio/. Acessado em 13/08/2016 às 14:00hs.

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