Filosofia da Ciência: a metodologia de Bacon
Por: Robert P.
26 de Novembro de 2018

Filosofia da Ciência: a metodologia de Bacon

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O início da idade moderna foi com certeza um dos períodos mais transformadores no desenvolvimento de um conhecimento verdadeiro e analítico da filosofia em um âmbito empirista e racionalista. Neste sentido, desenvolver maneiras de fomentar a criação de uma metodologia que torne visível uma mudança de paradigma estrutural do conhecimento da época, é de fundamental importância à construção de um indivíduo, ministro e intérprete da natureza.

Por conseguinte, o objetivo final de todo processo do conhecimento deverá ser fazer de seus atores, indivíduos ativos e em constante transformação, aptos a desenvolver e aplicar a filosofia de acordo com métodos de antecipação e interpretação da natureza, e não de um conhecimento dado, imposto por uma tradição filosófica.

A filosofia construída nesse período seria, portanto, um movimento de transição que parte de uma relação entre o mundo sensível; a interpretação e; a transformação da natureza, percorrendo um caminho de experimentação, análise, alteração e criação de novas formas de potencializar a capacidade humana e dominar a natureza.

Francis Bacon define o homem como naturae minister et interpres, que se insere no mundo para “conhecer e dominar a natureza pelo saber” transformando o conhecimento em algo útil e proveitoso para a vida humana. A natureza nessa perspectiva é uma máquina e a ciência/filosofia é a técnica de exploração desta máquina.

A filosofia assim deixa de ser passiva e passa a se tornar o domínio de uma técnica que permite o conhecimento da matéria para o controle do movimento que possibilita a potencialização da capacidade humana em prol do bem estar. A filosofia baconiana, no limite, se configura como o ponto de partida para a mudança de um paradigma estrutural platônico-aristotélica que perdurou por cerca de mil e setecentos anos.

O presente artigo pretende contribuir para o entendimento das bases estruturais da filosofia de autores como Francis Bacon, que repensou o modo de se fazer ciência/filosofia, com a criação de um alicerce teórico e prático de um campo, que longe de ser simples, é crucial para compreensão de uma epistemologia moderna, berço do significado de fazer ciência dos dias de hoje.

O período moderno da filosofia ocidental é marcado pela negação do pensamento antigo e por filósofos como Hobbes, Locke e Francis Bacon (1561-1626), o qual contribuiu para a filosofia ocidental com as suas reflexões sobre método experimental, interpretação da natureza e dominação da natureza pelo saber. Da sua obra constam títulos como Instauratio magna, Partitiones scientiarum e Novum Organum, livro central no trabalho a seguir. Alguns de seus estudos discutem a busca do conhecimento verdadeiro através da nova e certa via da mente, que provém das próprias percepções sensíveis.

No seu livro Novum Organum, Bacon argumenta sobre a magnitude vasta e complexa da natureza, segundo ele, “todos que proclamaram a natureza como um assunto exaurido para o conhecimento, causou dano à filosofia e às ciências, pois interromperam e extinguiram as investigações.” (Novum Organum, Prefácio) Logo, a natureza se estabelece como um lócus para a experimentação, a partir do qual o indivíduo, em um segundo momento, pode interpretar; alterar e criar nesse ambiente vasto que a natureza proporciona.

Esse processo, no entanto, é minuciosamente construído por Bacon na medida em que se fundamenta uma filosofia que parte da negação dos ídolos[1], passa pela experimentação das percepções sensíveis, é sistematizada e analisada a partir de uma filosofia natural[2]; para mais além, uma vez estabelecido o escopo da ciência ela possa deduzir e derivar novos experimentos.

Em função dessa imensidão o homem não teria a capacidade de conhecer completamente a natureza, contudo ele tem o poder de dominá-la através do seu saber, sem esta capacidade ele seria apenas um tolo, como Bacon coloca de forma clara, no exemplo do obelisco dado no prefácio do Novum Organum. Dessa forma, podemos nos perguntar: Em que medida o método baconiano representa os alicerces de uma filosofia positiva que busca a potencialização da capacidade humana através do saber?

Por isso, para elucidar essa questão é preciso entender a metodologia apresentada por Bacon nos primeiros aforismos do livro I e II do Novum Organum, em que é delimitado o papel da natureza no entendimento do fazer científico.

 

Desenvolvimento

 

No contexto da filosofia Baconiana, há maneiras diversas de justificar o trabalho a seguir, a respeito do processo de conhecimento experimental e interpretação da natureza. Uma delas consiste em entrar de chofre em uma área específica da reflexão de Bacon, a saber, o problema da conversão do conhecimento em algo útil, proveitoso e frutífero para a vida dos homens, uma vez que o conhecimento da filosofia natural inclui não só conhecimento pelas causas, mas também a produção por nós dos efeitos. (ZATERKA, 2004, pp. 109-110).

A esse respeito Bacon anuncia:

I O homem, ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais. II Nem a mão nua nem o intelecto, deixados a si mesmos, logram muito. Todos os feitos se cumprem com instrumentos e recursos auxiliares, de que dependem, em igual medida, tanto o intelecto quanto as mãos. Assim como os instrumentos mecânicos regulam e ampliam o movimento das mãos, os da mente aguçam o intelecto e o precavêm. III Ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frustra-se o efeito. Pois a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece. E o que à contemplação apresenta-se como causa é regra na prática. IV No trabalho da natureza o homem não pode mais que unir e apartar os corpos. O restante realiza-o a própria natureza, em si mesma. (Novum Organum, I,  I – IV)

Ao ler o trecho citado, logo nos damos conta de que não é sequer possível formular as questões, nessa área de investigação, sem partir da teoria formulada por Bacon a respeito do processo metodológico de investigação.

Em uma análise do Novum Organum, Farrington fala sobre o significado da natureza como um elemento essencial na teoria baconiano do conhecimento. Segundo Farrington, “A natureza atua sobre o ser humano, porque o ser humano não possui conhecimento ou poder, à parte de sua captação da ordem da natureza.” (FARRINGTON, 1950, p. 105).

O problema do conhecimento fica evidente na literatura de Bacon, na medida em que nos deparamos com a vastidão atribuída à natureza, já que mesmo sendo um ambiente incerto e vasto, é através dela o meio possível para a busca de um conhecimento significativo e verdadeiro. Farrington argumenta a esse respeito:

A função de sua posse mais preciosa e distintiva, a mente, é a apreensão da ordem da natureza. Mas ao mesmo tempo, a natureza necessita do ser humano. Esse a ajuda e a interpreta. Pode entendê-la e fazer que se desenvolva melhor do que se desenvolveria sem ajuda. A essência da história humana é o registro desta ação e interação entre ser humano e natureza (FARRINGTON, 1950, p. 105).

Ainda sobre essa questão, Bacon ressalta o fato de que nada está mais próximo do intelecto humano do que a natureza, e de que ele (o intelecto) não conhece por si mesmo, apenas quando é estabelecida uma relação entre homem e natureza é possível entendê-la e fazer com que se desenvolva.

A natureza, portanto, é entendida como instrumento mecânico que regula e amplia o movimento da mente, ao aguçar o intelecto e o precaver. Investigar esses conhecimentos e esclarecer a sua peculiaridade é a tarefa assumida pelo filósofo no processo de investigação.

Por conseguinte, busca-se tornar o homem um objeto ativo na busca do próprio saber, dentro desse contexto a busca pelo conhecimento, é dado a partir dessa relação colocado por Bacon “Pois natureza supera em muito, em complexidade, os sentidos e o intelecto” (Novum Organum, I, X).

Percebemos que existe uma tendência do homem de refletir sobre o conhecimento do mundo pertencente à sua natureza. Contudo, Bacon afirma que esse processo é bloqueado pela mente, em função de uma filosofia que distorce o discernimento do que é verdadeiro, o qual Bacon busca reparar através da negação dos ídolos. O autor afirma:

XII A lógica tal como é hoje usada mais vale para consolidar e perpetuar erros, fundados em noções vulgares, que para a indagação da verdade, de sorte que é mais danosa que útil. XIII O silogismo não é empregado para o descobrimento dos princípios das ciências; é baldada a sua aplicação a axiomas intermediários, pois se encontra muito distante das dificuldades da natureza. Assim é que envolve o nosso assentimento, não as coisas. XIV O silogismo consta de proposições, as proposições de palavras, as palavras são o signo das noções. Pelo que, se as próprias noções (que constituem a base dos fatos) são confusas e temerariamente abstraídas das coisas, nada que delas depende pode pretender solidez. Aqui está por que a única esperança radica na verdadeira indução. (Novum Organum, I, XII – XIV)

Essa realidade se apresenta em função de uma tradição filosófica Aristotélica que prioriza os silogismos nas demonstrações de argumentos, que para Bacon são confusos e sem solidez. Portanto, deve-se ultrapassar esse conhecimento raso através da verdadeira indução e iniciar uma busca que começa com a limpeza da mente das falsas noções.

Bacon é taxativo: “os maiores obstáculos do intelecto provêm da incompetência e das falácias dos sentidos.” (ZATERKA, pg.107) E são de quatro classes os ídolos que bloqueiam a mente humana, a saber, os Ídolos da Tribo, Ídolos da Caverna Ídolos do Foro e Ídolos do Teatro.

Os Ídolos da Caverna somam-se a limitação da própria natureza humana há mais outra insuficiência, uma distorção no entendimento semelhante a uma caverna, corrompedora da  luz que vem da natureza, luz essa que traria a informação reveladora da verdade e realidade.  Essa caverna é a variação da predisposição dos indivíduos, acrescida de uma natureza singular influenciável por opiniões externas e informações de diversos meios. Tudo isso ofuscando para que a consciência não perceba e entenda o verdadeiro conhecimento.

Os Ídolos do Foro Bacon entende como as relações sociais, com seu jogo de palavras que dissimulam através da dialética, também corrompem o entendimento e clareza da ciência e do saber em todos os campos do conhecimento. Há, portanto, um distanciamento da ciência objetiva.

Os Ídolos do Teatro representam os falsos conceitos, são as ideologias sejam de quais forem as doutrinas, elas, por pretenderem representar o mundo em um sistema,  atuariam como que um drama fictício, tornando o mundo, por esses sistemas, um teatro de ilusão. Essas ideologias são produzidas por engendramentos filosóficos, teológicos, políticos e científicos, todos ilusórios. “Dessa forma, são de três tipos as fontes dos erros e das falsas filosofias: a sofística, a empírica e a supersticiosa”. (Novum Organum, I, LXII)

Por fim, os Ídolos da Tribo encontram-se na própria natureza humana e são pertences à espécie humana. Para Bacon os sentidos e o intelecto humano são comparados a um espelho que distorce e corrompe aquilo que reflete, o universo. Por isso essas faculdades, por si só, não são suficientes para interpretar a natureza. (nossos sentidos e opiniões nos enganam com miragens e devaneios). O aforismo L do livro I do Novum Organum é neste sentido bastante elucidativo:

Mas os maiores embaraços e extravagâncias do intelecto provêm da obtusidade, da incompetência e das falácias dos sentidos. E isso ocorre de tal forma que as coisas que afetam os sentidos preponderam sobre as que, mesmo não o afetando de imediato, são mais importantes. Por isso, a observação não ultrapassa os aspectos visíveis das coisas, sendo exígua ou nula a observação das invisíveis. Também escapam aos homens todas as operações dos espíritos latentes nos corpos sensíveis. Permanecem igualmente desconhecidas as mudanças mais sutis de forma das partes das coisas mais grossas (o vulgo sói chamar a isso de alteração, quando na verdade se trata de translação) em espaços mínimos.16 Até que fatos, como os dois que indicamos, não sejam investigados e esclarecidos, nenhuma grande obra poderá ser empreendida na natureza. E ainda a própria natureza do ar comum, bem como de todos os corpos de menor densidade (que são muitos), é quase por completo desconhecida. Na verdade, os sentidos, por si mesmos, são algo débil e enganador, nem mesmo os instrumentos destinados a ampliá-los e aguçá-los são de grande valia. E toda verdadeira interpretação da natureza se cumpre com instâncias e experimentos oportunos e adequados, onde os sentidos julgam somente o experimento e o experimento julga a natureza e a própria coisa. (Novum Organum, I, L)

A respeito da teoria dos ídolos Farrington afirma, que às várias classes de doutrinas e os seus séquitos, devem ser repudiados com firmeza e determinação para um entendimento liberado e purificado. (FARRINGTON, 1950, pg. 108) Nesse sentido, apenas após a destruição desses ídolos o homem pode partir para uma investigação analítica do mundo. A esse respeito Zaterka afirma:

Parece, assim, que no combate aos ídolos Bacon distingue entre aqueles que são naturais e aqueles que são adquiridos. No caso dos ídolos provenientes da natureza humana, o procedimento será o de fornecer guias e apoios seguros para o conhecimento; no caso dos adquiridos, o procedimento será a crítica demolidora. Neste sentido, não as eliminando, mas detectando as principais fontes dos erros humanos, teremos acesso ao conhecimento verdadeiro e seguro. E aqui se encontra o aspecto positivo do empreendimento baconiano. (ZATERKA, pg. 109)

Bacon, dessa forma, estabelece um caminho que parte por duas vias. Na sua concepção, que dava extrema importância ao método indutivo e da experimentação, Bacon citou as duas operações básicas pelas quais a indução deve passar: (1) a negativa e a (2) positiva.

(1)  Na operação negativa, o sujeito deve se libertar dos erros comuns, causados por tradições com raízes profundas na sociedade e de seus preconceitos. A análise dos nossos erros/preconceitos é dada antes da formulação de uma filosofia positiva, para discutir o problema do conhecimento do ser e o que está além do ser.

(2)  Já  a positiva realiza-se através da descoberta das verdades cientificamente comprovadas, e não apenas postuladas. A verdade é o produto de um processo analítico. Assim lemos a seguir:

Só há e só pode haver duas vias para a investigação e para a descoberta da verdade. Uma, que consiste no saltar-se das sensações e das coisas particulares aos axiomas mais gerais e, a seguir, descobrirem-se os axiomas intermediários a partir desses princípios e de sua inamovível verdade. Esta é a que ora se segue. A outra, que recolhe os axiomas dos dados dos sentidos e particulares, ascendendo contínua e gradualmente até alcançar, em último lugar, os princípios de máxima generalidade. Este é o verdadeiro caminho, porém ainda não instaurado. (Novum Organum, I, XIX)

Buscando pelo que está mais próximo de si, o homem encontra um amontoado de noções adquiridas pela tradição que distorcem a sua visão, contudo se o indivíduo ultrapassa essa barreira encontra uma nova perspectiva, a saber, um processo ascendente de busca pela máxima generalidade que Bacon procura instaurar. Portanto, reconhecer a limitação do conhecimento posto é penetrar em um percurso verdadeiro do conhecimento. Dessa forma segue-se:

A questão inaugural posta por Bacon indica que o filósofo pretende resolver o problema concreto deixado pelos ídolos: como atribuir uma ou mais propriedades específicas a um corpo? O objeto baconiano é a investigação das propriedades de uma natureza dada. Por que essa investigação exige um método? Porque frente à natureza dos corpos, ou seja, de alguma propriedade observáveis, é preciso determinar a estrutura interna dos corpos, se se pretende ter deles conhecimento verdadeiro. É preciso buscar a forma. (ZATERKA, pg.110)

Fica evidente no modelo apresentado por Bacon a necessidade de buscar as propriedades fundamentais dos corpos, pois a forma para Bacon é um arranjo invisível que explica essas propriedades, que somente podem ser alcançadas pela verdadeira indução. (ZATERKA, pg. 111) É no livro II do Novum Organum que o filósofo formula a tarefa e o fim do poder do homem, que consistem em produzir novas naturezas ou induzir num corpo dado uma nova natureza.

Assim, Bacon apresenta os primeiros estágios do processo metodológico. A primeira considera o corpo como um conjunto ou conjugação de naturezas simples. A segunda se detém na descoberta do processo latente, um processo que não procede das naturezas simples, mas dos corpos concretos, tal como se encontram na natureza em seu curso ordinário. Contudo, esse segundo movimento se insere em uma dinâmica que começa a interferir no processo dos corpos, pois não se trata agora de mera observação, mas sim de um processo continuado na geração e transformação dos corpos. A noção de processo latente é definida por Bacon na passagem a seguir:

O processo latente de que falamos está longe daquilo que pode ocorrer à mente dos homens, com as preocupações a que ora se entregam. Não o entendemos, de fato, como medidas, ou signos ou escalas dos processos visíveis dos corpos, mas como um processo continuado, que na maior parte escapa aos sentidos. Por exemplo, em toda geração ou transformação de corpos, e necessário investigar o que se perde e volatiliza; o que permanece ou se acrescenta; o que se dilata e o que se contrai; o que se une e o que se separa; o que continua e o que se divide; o que impele e o que retarda; o que domina e o que sucumbe; e muitas outras coisas. (Novum Organum, II, VI)

Desta maneira, Bacon está a procura de um método que o capacite a encontrar as explicações últimas da natureza. (ZATERKA, pg.114) Pois, no limite, descobrir a forma de algum corpo é descobrir os seus constituintes últimos e de que maneira estão dispostos. Neste sentido Bacon constata:

Pois a forma de uma natureza dada é tal que, uma vez estabelecida, infalivelmente se segue a natureza. Está presente sempre que essa natureza também o esteja, universalmente a afirma e é constantemente inerente a ela. E essa mesma forma é de tal ordem que, se se afasta, a natureza infalivelmente se desvanece; que sempre que está ausente está ausente a natureza, quando totalmente a nega, por só nela estar presente. Finalmente, a verdadeira forma é tal que deduz a natureza de algum princípio de essência 16 que é inerente a muitas naturezas e é mais conhecido (como se diz) na ordem natural que a própria forma. Novum Organum, II, IV).

É evidente a tentativa de Bacon em estabelecer as estruturas de uma nova forma de se relacionar com a natureza. A capacidade do filósofo de enxergar a busca de uma ciência verdadeira no esmiuçamento da matéria se explicita no cuidado dado no decorrer do Livro II do Novum Organum na sistematização dos diversos conteúdos da matéria, constatamos, portanto, um meio de conhecer para dominar pelo saber. O aforismo XI do Livro II do Novum Organum é neste sentido bastante elucidativo:

A investigação das formas assim procede: sobre uma natureza dada deve-se em primeiro lugar fazer uma citação perante o intelecto de todas as instâncias conhecidas que concordam com uma mesma natureza, mesmo que se encontrem em matérias dessemelhantes. E essa coleção deve ser feita historicamente, sem especulações prematuras ou qualquer requinte demasiado. Como exemplo, imagine-se uma investigação sobre a forma do calor: Instâncias conformes (convenientes) na natureza do calor: 1. Os raios do sol, sobretudo no verão e ao meio-dia. 2. Os raios do sol refletidos e condensados, como entre montes ou por muros e sobretudo sobre espelhos. 3. Meteoros ígneos. 4. Raios flamejantes. 5. Erupções de chamas das crateras dos montes, etc. 6. Chamas de todas as espécies. 7. Sólidos em combustão. 8. Banhos quentes naturais. 9. Líquidos ferventes ou aquecidos. 10. Vapores e fumaças quentes, e o próprio ar que adquire um calor fortíssimo e violento, quando fechado, como nas fornalhas. 11. Certos períodos de seca causados pela própria constituição do ar, fora de estação. (Novum Organum, II, XI).

O desdobramento que sucede a essa investigação é o esquematismo latente, pois segundo Bacon “Ainda nos encontramos nos átrios da natureza e não estamos preparados para adentrar lhe os íntimos recessos” (Novum Organum, II, VII) A investigação e a descoberta do esquematismo, portanto, dependem do desvendamento de todas as propriedades ocultas e virtudes específicas das coisas e donde, também, se retiram as normas capazes de conduzir a qualquer alteração ou transformação.

Para Bacon, “nenhum corpo pode ser dotado de uma nova natureza, ou ser transformado, com acerto e sucesso, em outro corpo, sem um completo conhecimento do corpo que se quer alterar ou transformar” (Novum Organum, II, VII) À vista disso, a luz verdadeira e clara, que desfaz toda obscuridade e sutileza, que resulta desse processo investigativo só pode provir os axiomas na sua máxima generalidade.

O resultado desse processo contínuo é a criação de um escopo das ciências que possibilita o acesso ao conteúdo das formas, a saber, a metafísica, que se ocupa com a busca pelas causas eternas, ou seja, pelo seu princípio e lei; e a física, que se ocupa com a causa eficiente dos processos latentes e dos esquematismos latentes, e subdivide-se em: mecânica e a magia. O aforismo IX deixa claro essa divisão feita por Bacon:

Das duas espécies de axiomas antes estabelecidas origina-se a verdadeira divisão da filosofia e das ciências, devendo-se, bem entendido, ajustar vocábulos comumente aceitos (os mais apropriados para indicar o que pretendemos) ao sentido que lhes emprestamos. Assim, a investigação das formas que são (pelo seu princípio e lei) eternas e imóveis constitui a Metafísica. A investigação da causa eficiente, da matéria, do processo latente e do esquematismo latente (que dizem respeito ao curso comum e ordinário da natureza, não a leis fundamentais e eternas) constitui a Física. E a elas subordinam-se duas divisões práticas: à Física, a Mecânica; à Metafísica, a Magia (depois de purificado o nome), em vista das amplas vias que abrem e do maior domínio sobre a natureza que propiciam. (Novum Organum, Livro II. IX).

E, finalmente, uma vez estabelecido esse escopo passamos às determinações em um âmbito mais seguro no trato com a natureza. E o propósito acerca da interpretação dessa natureza compreende duas partes fundamentais: a primeira, que consiste em estabelecer e fazer surgir os axiomas da experiência; e a segunda, em deduzir e derivar experimentos novos dos axiomas. Assim sendo, não devemos perder de vista o objetivo de Bacon em sua proposta de uma nova epistemologia, e a esse respeito o filósofo argumenta:

Ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frustra-se o efeito. Pois a natureza não se vence, senão quando se lhe obedece. E o que à contemplação apresenta-se como causa é regra na prática. (Novum Organum, I, III)

 

Considerações Finais

 

Bacon é considerado um dos fundadores do processo metodológico e dedicou ao sua vida no estudo de uma nova filosofia. E o resultado dessa vida dedicada à estruturação e a sistematização de uma nova forma de se relacionar com o mundo elevou a ciência ao status de meio primordial da obtenção da verdade.

A filosofia construída por ele se configurou, portanto, como um movimento de transição do conhecimento filosófico à relação entre o mundo sensível; a interpretação e; a transformação da natureza, percorrendo um caminho de experimentação, análise, alteração e criação de novos axiomas, permitiu a entrada do ser humano para um universo de possibilidades.

Potencializar a capacidade humana e dominar a natureza por meio do saber torna a filosofia criada por Bacon também uma relação entre o empirismo e o racionalismo, dessa forma, é errônea a tentativa de enquadrá-lo em categorias separadas, uma vez que todo o seu estudo se baseia na relação mútua dessas duas vertentes.

Ao definir o homem como naturae minister et interpres, Bacon tem como meta um indivíduo que prioriza o bem estar da humanidade, ao transformar o conhecimento em algo útil e proveitoso para a vida humana. A beleza nessa perspectiva mostra uma visão do uso da ciência ativa, apta para o que existe de melhor no ser humano.

Com efeito, a filosofia deixa de ser passiva e passa a se tornar o domínio de uma técnica que permite o controle dos meios que possibilitam a potencialização da capacidade humana em prol do bem estar. A filosofia baconiana, no limite, se configura como o ponto de partida na criação dos alicerces da maneira de fazer ciência da sociedade atual.

 

Referências bibliográficas

 

BACON, Francis. Novum Organum. Disponível em: http://www.lucianazaterka.com.br/downloads/novum-organum.pdf. Acesso em: 23 de mar. 2015.

FARRINGTON, Benjamin. Francis Bacon, filósofo de la revolución industrial. Trad. Rafael Ruiz de la Cuesta. Editorial Ayuso, 1950. 196 p.

ZATERKA, Luciana. A filosofia experimental na Inglaterra do século XVII: Francis Bacon e Robert Boyle. Associação Editorial Humanitas: São Paulo, 2004. 300 p.

 

[1] A expressão “teoria dos ídolos” é cunhada pelo próprio Francis Bacon para designar o que o autor coloca como entraves no processo de conhecimento, o filósofo dedica à temática nos aforismos XXXIX à XLIV do Novum Organum.

[2] O termo “filosofia natural” determina a sistematização do arcabouço teórico na investigação filosófica.

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