O Ensino de Filosofia e a lei número 10.639/03.
Por: Robert P.
26 de Novembro de 2018

O Ensino de Filosofia e a lei número 10.639/03.

Filosofia Ensino Médio Enem Geral

Esse artigo tem como propósito discutir o ensino de filosofia e a lei número 10.639/03 que torna obrigatória em todas as modalidades de ensino e níveis de educação os estudos de História e Culturas, Africanas e Indígenas.

No ensino de filosofia, desenvolver maneiras de articular a reflexão filosófica com as questões transversais ao cotidiano escolar significa desenvolver uma prática que torne visível as origens culturais, o pertencimento à classe social, as distinções de gênero, de sexualidade, de etnia e de geração, ou seja, todos os aspectos que atravessam o ensino curricular.

Esse processo é de fundamental importância para a construção de um ensino atual e plural que de espaço ao pensamento de outra pessoa, na medida em que, o objetivo final de todo professor deverá ser fazer de seus estudantes, indivíduos emancipados e empoderados em relação a sociedade.

Contudo, a filosofia foi e, em certa medida, continua sendo um campo que faz poucos debates a respeito das relações étnico-raciais, do racismo antinegro e sobre os desdobramentos das relações entre colonização, política e a invisibilidade concernente aos saberes africanos.

A educação, no entanto, é um processo em construção tanto do estudante que se insere nesta estrutura desde os primeiros passos, quanto para o docente que ao lecionar está questionando a sua própria prática. E nesse sentido, a filosofia seria um movimento de transição que parte de uma relação mútua entre o subjetivo e o objetivo, para percorrer um caminho de análise, ressignificação, desconstrução e criação de novos conceitos.

O argumento que o artigo pretende apresentar está pautado na ideia de que para uma educação plural e antirracista a formação filosófica deve conter temas que desnaturalizem a depreciação e inferiorização dos saberes africanos, suas relações etnicoraciais, o racismo antinegro, a relevância da história da África para a filosofia e os processos de subalternação das produções africanas.

A partir dessa perspectiva, o desafio diante destas questões está em articular o ensino de filosofia e em promover relações etnicoraciais e equânimes do estudo de história e cultura afro-brasileira e africana. Desse modo, o que é próprio da filosofia que pode contribuir para horizontes antirracistas na sociedade brasileira? O que a filosofia tem a dizer sobre o racismo antinegro? Existem pontos de contato entre a filosofia e a história da África?

Responder essas questões significa entrar em um debate atual e necessário para o desenvolvimento de um conhecimento plural. Afinal, a formação filosófica é um processo contínuo, nunca se termina de aprender e de ensinar, e para que alguém possa ser sujeito ativo e atuante dessa aprendizagem, é preciso que a filosofia assuma o seu papel como instrumento de desconstrução e desmistificação.

O ensino de filosofia, dessa forma, quando assume essa tarefa possibilita um diálogo horizontal com os estudantes, valorizando as suas subjetividades e o seu contexto social. Ao problematizar o seu próprio fazer filosófico se coloca em um lugar de desconstrução e apresenta uma imagem a respeito do conhecimento como algo incerto, apto a ser desenvolvido e aplicado e não de um conhecimento dado, o que a meu ver, é o papel da filosofia.

Despertar esse espírito problematizador no que concernem às questões antirracistas significa mostrar que a filosofia está presente nas demandas atuais da sociedade, enquanto disciplina que deve fomentar o pensamento crítico e não se constitui por um conhecimento inútil.

O presente ensaio se propõe a mostrar uma perspectiva de como a investigação filosófica pode partir do ambiente cotidiano, na medida em que problematizamos o mundo ao nosso redor, para dessa forma, despertarmos um olhar filosófico e uma atitude filosófica que estremeça as concepções do senso comum e direcione a investigação em uma análise filosófica do mundo em que vivemos.

E, assim, entender que a filosofia é atual e se faz necessária no Ensino Médio, uma vez que o peso de dois mil e quinhentos anos de filosofia representa um acúmulo de conteúdos filosóficos que distanciam e intimidam os estudantes. Criar um espaço onde o aluno se sinta à vontade para se inserir na filosofia e dessa forma encontrar uma perspectiva filosófica que a ele seja mais atraente é o objetivo do ensaio apresentado.

 

O ensino de Filosofia e a História da África

 

Para pensar o ensino de filosofia de uma forma condizente com essa imagem de filosofia é preciso se debruçar primeiramente sobre a constatação de que a filosofia é a mais branca dentre todas as áreas no campo das humanidades, como afirma o professor Charles Mill[1]. Essa ideia estaria ligada ao fato de que o continente africano foi definido pela antiguidade greco-romana como um espaço desprovido de civilidade.

Dessa forma, a filosofia desenvolvida em qualquer outra região que não fosse europeia era automaticamente deslegitimada, ao que se denomina eurocentrismo colonial, ou seja, a colonialidade perpetua a ideia de povos menos desenvolvidos e epistemologicamente imaturos.

Essa hegemonia, no caso da colonização do continente africano, passou a desqualificar e invisibilizar os saberes tradicionais, proporcionando uma completa desconsideração do pensamento filosófico desses povos e a isso se denomina Racismo Epistêmico[2].

Por racismo epistêmico entende-se a desqualificação de qualquer pensamento que não seja ocidental, e no caso da filosofia, o racismo epistêmico sustenta que apenas o mundo ocidental pode garantir um olhar filosófico verdadeiro de qualquer saber.

Essa desqualificação culmina na zoormofização sistemática desses povos e é fundamentada nessas noções que se embasam a escravização da população negra. Recusando a existência de um elemento presente em todas as civilizações humanas, a capacidade de pensar e refletir criticamente sobre a realidade.

Grandes autores da tradição filosófica europeia apresentavam opiniões extremamente problemáticas a respeito da comunidade negra e a ideia de povo menos desenvolvido, constituiu e impregnou a produção filosófica hegemônica. Kant declarava:

“Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo, o senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão.” (NOGUEIRA, 2006, p.18)

É em função de declarações como as de Kant que se veem necessário abordar outras perspectivas filosóficas que não sejam europeias, pois de maneira implícita, a filosofia de Kant está impregnada pela ideia de que a civilização africana é inferior.

Para encarar filosoficamente essas questões é preciso desconsiderar qualquer classificação, homogeneização e categorização que inferiorize os saberes africanos. Assim, um primeiro passo seria desmitificar essa noção de civilizações que “vão” ser alguém, mas que, pelo contrário, já o são.

Nesse sentido, como a filosofia se desvincula dessa ideia de racismo epistêmico? E como ela pode ser capaz de suscitar questões relacionadas às relações étnicos raciais? É, justamente, problematizando a si mesma que a filosofia encontra o caminho de articulação. O ensino de filosofia precisa encarar esse desafio ampliando a perspectiva, ou seja, reescrevendo a história da filosofia em uma afroperspectiva.

Logo, a filosofia, enquanto local de problematização, se se pretende abordar questões étnicas relacionadas ao racismo antinegro, deve problematizar a sua própria origem como sendo grega, uma vez que essa constatação é invariavelmente problemática por ser marcada pelo racismo epistêmico.

 

A origem Africana da filosofia

 

Se a filosofia não “nasceu” na Grécia, onde então ela teria a sua origem? É a partir deste questionamento que alguns estudos apontam o nascimento da filosofia na África, mais precisamente no Egito Antigo, uma civilização sofisticada, amplamente desenvolvida, e de população negra.

A partir das pesquisas realizadas por Cheikh Anta Diop conseguiram-se provas de que a população do antigo Egito era negra[3]. O pesquisador conseguiu isolar e medir a concentração de melanina, através da exumação de múmias e constatou-se que se tratava de membros negros da civilização egípcia. Então, por que nos dias de hoje a civilização do Egito antigo é retratada como branca? É a partir dessa apropriação cultural que se faz necessária a recuperação da ancestralidade negra, pois é necessário que as pessoas negras se reconheçam como parte fundamental na constituição de um pensamento filosófico.

O legado deixado por essa civilização é enorme e significa dizer que os filósofos gregos têm uma dívida impagável com os filósofos egípcios que permanecem pouco conhecidos e raramente aparecem nos manuais de História da Filosofia. Filósofos como Pitágoras afirmam em seus próprios escritos ter estudado no Egito e atribui grande parte de suas concepções filosóficas a esse período de estudos na África.

Um dos livros mais antigos da civilização egípcia é o Maat, escrito entre 1580a.c à 1200a.c. A obra reúne mitos e postulados filosóficos africanos resultado de reflexão de vários autores. Erroneamente traduzido como Livro dos Mortos, o Maat é mais precisamente o Livro da Verdade, e representa um grande trabalho a respeito da ética e dos debates metafísicos feitos pelos filósofos egípcios.

Filósofos como Ptah-Hotep (2414 a.c), Amenemope (1290 a.c), Imhotep (2700 a.c), entre outros, deixaram papiros com os seus escritos e postulados filosóficos dos mais variados gêneros. Reflexões sobre ética, o amor, a existência, vida após a morte, ou seja, questões relativas à condição humana inerente de cada civilização. Nesses escritos o termo filosofia aparece em hieróglifos através da denominação “rekhet” muito antes de Tales de Mileto e Sócrates falarem de filosofia.

Contudo, a forma do fazer filosófico africano vai muito além da literatura, as reflexões filosóficas e as suas perspectivas foram preservadas e transmitidas por meio de outros registros, como mitos, aforismos, máximas de sabedoria, provérbios tradicionais, contos e, através da religião. Percebe-se, dessa forma, uma grande valorização da tradição oral e dos ensinamentos passados de geração para geração. É nessa perspectiva que se insere o conceito de oraliteratura, ou seja, uma forma de se fazer filosofia através da tradição oral.

Estes dois aspectos estão muito presentes na cultura africana e tentar encontrar uma hierarquia entre os dois, seria uma tarefa contraproducente. Para um melhor entendimento e estudo da filosofia africana é preciso encará-los como equivalentes.

Portanto, afirmar uma afroperspectiva para a história da filosofia possibilita a consideração do pensamento filosófico de outros povos que não o povo europeu, uma forma de escapar da etnocentralidade do pensamento desenvolvido na Europa um projeto, como afirma Renato Nogueira, de passar a limpo a história da humanidade. Tanto para extinguir as consequências negativas de marginalizar culturas e povos não ocidentais do hall do pensamento filosófico, como para desfazer as hierarquizações que advêm desse processo. E mais além, conceber uma afroperspectiva da filosofia é desenvolver um rico manancial epistêmico para o empoderamento e emancipação do pensamento de jovens negras e negros que se veem marginalizados e oprimidos pelo próprio discurso filosófico branco e europeu.

 

Considerações Finais

 

As questões abordadas nesse ensaio dizem respeito ao empoderamento do pensamento filosófico negro, tema fundamental a ser desenvolvido no ensino de filosofia. O etnocentrismo da produção filosófica europeia anula o reconhecimento de indivíduos negros com o pensamento africano e com o encontro de suas próprias raízes. Para que a subjetividade seja trabalhada para o descobrimento de uma possível atitude filosófica, é preciso que o ensino de filosofia encontre o seu lugar no debate de questões fundamentais para a formação da identidade dos sujeitos.

Contudo, como a concepção mesmo diz esse processo não é simples e preciso. Colocar em xeque a história da filosofia significa ampliar a perspectiva do fazer filosófico para além da Europa. O que se pretende ao reivindicar a origem da filosofia como sendo africana é, justamente, problematizar o local do discurso filosófico na produção de conteúdos.

No ensino de filosofia a prioridade seria apresentar uma afroperspectiva, para problematizar a centralidade de um fazer filosófico, ao desenvolver um pensamento filosófico plural que respeita o período histórico, a cultura, o meio social, gênero e tudo mais. Enfim, mostrar que a filosofia está apta a atuar no meio dessa multiplicidade.

Para que, a partir das diversas perspectivas o fazer filosófico possa desenvolver e aprofundar conhecimentos de modo a conceber uma filosofia (radical, rigorosa e de conjunto) sem se desvincular das questões relacionas as relações étnicas, cultura, sociedade, gênero e diversidade sexual.

 


 

[1] Ver. MILLS, Charles W. The Racial Polity In BABBIT, Susan E; CAMPBELL, Sue. Racism and Philosophy. New York: Cornell University Press, 1999.

[2] Ver. NOGUEIRA, Renato. O ensino de filosofia e a lei 10.639. 2006. Pallas Editota. p.19

[3] Idem

 

 

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