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em 11 de Janeiro de 2025
Iluminismo: filosofia e reformas na construção do papel do Estado
Introdução
A passagem do século XVII para o XVIII foi marcada por mudanças profundas na forma Ocidental de pensar vários aspectos fundamentais da sociedade como a religião, a natureza, a produção de conhecimento e o Estado. O renomado historiador francês Paul Hazard abre seu livro Crise da Consciência Europeia com a passagem:
“Que contraste! Que evolução tão brusca! Hierarquia, a disciplina, a ordem garantida pela autoridade, os dogmas que regulam a vida com firmeza: eis o que os homens do século XVII amavam. Sujeições, autoridades, dogmas, eis o que detestam os homens do século XVIII”
A partir disso, é interessante compreender as origens desse fenômeno que parece à primeira vista contraditório. Como em tão pouco tempo a percepção das pessoas sobre aspectos fundamentais da sociedade mudam tão radicalmente? Para isso, é preciso partir do princípio de que, por um lado, os movimentos iluministas que surgem na Europa respondem a problemas filosóficos e teológicos que já há muito estavam colocados no processo de formação do Estado Moderno, apesar de apresentar formas novas de pensar sobre eles. Por outro, lidam com uma nova conjuntura de crise, desgaste das monarquias absolutistas e o papel central da opinião pública.
O momento que antecede ao iluminismo e cuja conjuntura serve de inspiração para os pensadores esclarecidos, é marcado pelos impactos da Reforma Protestante que questionou a autoridade da Igreja Católica e levou à fragmentação da unidade religiosa da Europa. O que também acarreta na crise de fé única e inquestionável e a estrutura religiosa vigente. Ao mesmo tempo, o Renascimento e a Revolução Científica promoveram uma mudança profunda na forma de pensar a construção de saberes, colocando a razão e a observação empírica no centro da compreensão do universo. Isso resultou em um aprofundamento do questionamento dos dogmas religiosos e tradicionais e também na forma de pensar a organização política. Mais importante ainda para o nascimento do iluminismo é o Estado absolutista. Neste caso não como inspiração positiva, mas como aquilo que se opunham, ou seja, o poder tirânico que não governa para os interesses do povo. Afirma Koselleck em Crítica e Crise que: “A consciência histórica e filosófica dos iluministas — queira-se ou não — só adquire sentido político como uma resposta à política absolutista.”
A Europa contém diferentes arranjos políticos que estão em constante movimento, com conflitos internos e externos que criam dinâmicas de poder particulares. A partir disso, mesmo considerando que o iluminismo assumiu diferentes formas em cada local em que se desenvolveu. Mesmo assim, é possível destacar algumas características marcantes que se repetem. Uma destas é a importância central assumida pela racionalidade. Nessa concepção o misticismo cede espaço para uma ordenação do mundo baseada no pensamento científico, lógico e racional. Nesse processo está inclusa a secularização de uma série de processos antes regidos pela esfera confessional, processo que como já citado tem como ponto de partida os fundamentos já difundidos pela Revolução Científica.
Revolução Científica e iluminismo
Analogamente ao período de surgimento do iluminismo, a origem da revolução científica está em um momento no qual o “velho” estava sendo questionado, mas o novo ainda não estava estabelecido, ou seja, um momento de instabilidade social e política. A partir disso, cria-se as condições para a ascensão de grupos que pensam novas formas de enxergar a sociedade e seu papel dentro dela.
É fundamental para este movimento a produção de conhecimento fora dos espaços clericais e das universidades, o que cria as bases para o que depois será o conhecimento produzido pelo iluminismo. A grande efervescência da ciência estava em espaços de classe média e era feita e utilizada por mercadores, artesãos e navegadores. Nesse contexto, crescia o número de manuais científicos com preços acessíveis sem perder a qualidade e, um aspecto muito importante, traduzidos para o inglês. Grande parte do conhecimento produzido nas universidades era feito em latim, língua que a população não tinha acesso. A ciência do período da Revolução Inglesa, portanto, era voltada para as classes médias e se preocupava em resolver as questões que afligiam esses indivíduos. O Matemático inglês John Dee justificava a tradução das obras forma de ajudar o grande número de “simples artífices” que, graças “à habilidade e à experiência que já possuem poderão [...] descobrir e conceber novas obras, máquinas e instrumentos invulgares, cuja aplicação servirá aos mais diversos propósitos da comunidade” Além disso, já existia também um processo de secularização de alguns aspectos da vida social e individual a partir do puritanismo. O protestantismo como um todo previa uma nítida separação entre o natural e sobrenatural, permitindo um desenvolvimento científico independente dos preceitos teológicos, assim, minimizando a área de intervenção divina.
Esses processos serão resgatados mais tarde pelos iluministas, que aprofundam ainda mais alguns aspectos e introduzem novos. Além de uma radicalização teórica dos preceitos da revolução científica, a conjuntura do período iluminista faz as consequências políticas dessa filosofia tivessem maior área de impacto. O resultado, portanto, dos vários movimentos iluministas na Europa são reformas nas organizações estatais que alcançam graus de sucesso variados em diferentes territórios e regimes. Porém, antes de abordar as reformas, é importante analisar as proposições teóricas propriamente iluministas.
A filosofia iluminista
O historiador Franco Venturi descreve a Inglaterra como grande irradiadora de ideias iluministas pela Europa. Para o autor, os primeiros iluministas eram um grupo de pensadores ingleses que analisavam a filosofia de forma indissociável da política e da vida cotidiana. Venturi destaca filósofos como Denmark Molesworth, Shaftesbury, John Trenchard e Matthew Tidal. Estes homens produziam conhecimento sem perder de vista o mundo à sua volta. Suas elaborações teóricas respondiam a problemas concretos dos seus contemporâneos. Além disso, eram ativos na política e diplomacia inglesa da época.
A preocupação destes pensadores com a utilidade do seu trabalho intelectual está também associada a um processo de popularização do seu discurso político. Nesse sentido, o espaço em que as informações circulavam passa a ser progressivamente alargado, tanto pelo uso de tecnologias que favorecem a difusão de ideias, como ampliação da imprensa, quanto pela própria ideologia iluminista. Nesta, a erudição que restringe o conhecimento é percebida de forma negativa. John Toland, pensador e difusor de conhecimento associado ao estabelecimento das ideias ilustradas na Inglaterra, define a tradição filosófica puramente retórica e propositalmente inacessível para maior parte da população, feitas pelos “puros eruditos”, como: “tão inúteis e desprezíveis quanto os carunchos que ajudam a consumir os papéis”. Nesse contexto, os espaços de socialização se multiplicam e também alteram seu papel social. As discussões políticas tomam conta das interações rotineira de uma parcela maior e mais diversa da sociedade:
“Pessoas de educação misturada… estão se organizando secretamente em clubes, cabalas, e têm seus emissários em todas as partes, que são sustentados por contribuições, e eu tenho poucas dúvidas de que seus desígnio é finalmente nos mostrar que toda soberania bem como toda religião está fundada na razão”
Portanto, os ideais iluministas já apontados, a valorização da razão e a desconfessionalização da sociedade, circulam não só entre os grandes filósofos de seu tempo, mas também em espaços de sociabilidade da classe média. Uni-se a isso a difusão do pensamento científico fora da área de influência do misticismo. Trata-se de uma ciência utilitária, ou seja, voltada para resolver os problemas do cotidiano e que abandona os postulados de verdades únicas e universais. A natureza não é mais perfeita nem estável, pois também não é considerada como a imagem de Deus. A partir disso, passa por um processo de ruptura com uma intelectualidade do que classificamos como Época Antiga. Isso é percebido na criação e utilização do termo “pagão” para se referir aos gregos e romanos. O termo pejorativo demonstra que aqueles que representavam a base do pensamento Europeu são questionados pelos filósofos do iluminismo.
Outro aspecto central da formação da ciência moderna é o conceito de progresso. Essa concepção da história e do futuro pressupõe também uma outra forma de compreender o tempo e o conhecimento. Paolo Rossi, em Sobre as origens do conceito de progresso, define este conceito como uma crença no: “[...] resultado de contribuições individuais que se colocam uma após a outra no tempo, segundo uma perfeição cada vez maior.” No entanto, essa não é a única, nem foi a primeira forma de pensar a construção de saberes. A partir disso, é possível compreender como a forma como aquela sociedade passa a pensar a progressão do tempo está intimamente relacionada com a realidade vivida pelos indivíduos. O progresso é uma filosofia que parte do princípio de que o presente não é satisfatório. A partir disso, se propõe a crença de um futuro utópico. O progresso, porém, não é uma crença passiva em um futuro melhor e sim a ideia da criação de projetos concretos de mudança a partir da crença de que ações individuais sucessivas se somam em direção a esse futuro, expandindo, assim, as possibilidades do presente. Nesse sentido, é uma proposta de ação diante de um presente que desejam alterar.
Reformas iluministas
Diante da importância da ação no cotidiano para o iluminismo, compreender a forma como estas ideias saíram do papel e foram aplicadas na prática é necessário para a análise do iluminismo como um todo. Como já mencionado, os pensadores esclarecidos estavam tão envolvidos na política quanto na filosofia. As especulações teóricas se traduzem em propostas de reforma que impactam as decisões políticas da época. As reformas são implementadas de formas e graus variados na Europa com destaque para medidas que buscam uma reestruturação social, fiscal e religiosa. Valorizavam, portanto, combater os privilégios das antigas ordens que ainda sobreviviam na sociedade da época, visando uma máquina estatal racional que garantiria o bem estar social.
Dialogam diretamente com a implementação dessas reformas as crises geradas pelos esforços bélicos ligados às guerras. Uma série de conflitos entre os Estados Europeus aumentaram cada vez mais a rivalidade entre as potências ao mesmo tempo que causaram enormes gastos, com destaque para a Guerra dos Sete Anos, levando em conta a magnitude e o fato de se estender inclusive fora do território europeu. A concentração das finanças do Estado no empreendimento da guerra e não na estabilização interna resulta em uma depreciação na condição de vida. Como consequência, o período entre que durou de 1763 até 1789, que tem como marco de início o Acordo de Paris que determina o fim da Guerra dos Sete anos, é definido pelo esforço de reestruturação depois do conflito a partir de intensas e numerosas reformas.
Como consequência o aspecto econômico permeia as reformas de inspiração iluminista, com destaque para aquelas voltadas para a justiça fiscal. O fim dos privilégios era parte central dos movimentos iluministas, propagando a ideia de que todos os cidadãos, independentemente de sua classe ou status social, deveriam contribuir de maneira proporcional à sua riqueza para as finanças do Estado. De forma prática, isso significava eliminar as isenções fiscais para a nobreza e o clero.
Outro exemplo importante para compreender as reformas de inspiração iluminista foram aquelas voltadas para a promoção da tolerância religiosa. A defesa deste princípio estava ligada à ideia do progresso do Estado em direção à uma instância controlada pela razão e não pela fé. Se tratava, portanto, de um mecanismo de manutenção da ordem pública, ou seja, diminuir os conflitos religiosos que marcaram a história da Europa tanto com guerras entre potências, quanto conflitos internos. Anne Robert Jacques Turgot foi um economista francês e grande defensor da promoção da tolerância religiosa. Apresentou a proposta do Edito de Tolerância de 1775 à corte de Luís XVI. De acordo com Turgot a religião é uma questão pessoal e não é direito do Estado ou do rei legislar sobre a fé individual. Isso implica também em uma dissociação da fé do soberano à fé dos seus súditos, o que não ocorria dentro de um sistema absolutista. Ao mesmo tempo, a proposta de Turgot buscava retirar a autoridade da igreja sobre assuntos políticos. Diante disso afirma: “A Igreja só pode dar ordens ao príncipe na condição de homem”. Em suma, defende que os súditos de um Estado podem professar a fé de sua escolha, mesmo que seja diferente do soberano e a instituição religiosa com que o rei se identifica diz respeito apenas à sua vida pessoal e não às suas decisões políticas.
Papel do iluminismo para pensar e construir o Estado
Por meio de uma nova forma de pensar a sociedade é alterado também o que se define como papel do Estado dentro dela. O iluminismo nasce em meio a um movimento antidespótico. Como consequência, se fundamentava na defesa de um governo que existe para atender as necessidades de seus súditos por meio de lideranças qualificadas que pensam suas decisões a partir do método científico. Filosoficamente aqueles que se consideravam esclarecidos se colocavam, portanto, como críticos do autoritarismo e da tirania. John Toland publicou Vindicius Liberiu em 1702, no qual afirma:
“O poder de todos os governantes é originalmente conferido pela sociedade e limitado para sua segurança, riqueza e glória, os quais tornam tais representantes responsáveis por seu cargo, sendo, consequentemente, legal resistir aos - e punir os - tiranos [...]”
No entanto, a implementação das reformas iluministas apresentam uma uma contradição intrínseca quando analisada na prática. As lideranças que recorrem para a retórica e as reformas iluministas com mais intensidade estão nas áreas marginais. São, portanto, aqueles que não tinham poder no contexto dos Estados Modernos europeus. Levando em conta a sua posição desfavorável, enxergaram as reformas ilustradas como uma estratégia para alterar o mecanismo de funcionamento do Estado e alcançar uma posição melhor no cenário internacional. São esses os chamados Déspota Esclarecidos, que empreendem reformas no final do século XVIII voltadas para as problemáticas iluministas, ou seja, a racionalização da administração pública, a promoção da educação, liberdade religiosa e reformas fiscais. No entanto, mantendo aquilo que constitui a maior crítica e, concomitantemente, a maior inspiração para o pensamento iluminista que foi o poder absolutista do monarca.
Conclusão
O resultado da forma como a teoria iluminista foi aplicada foi a desilusão de grande parte de seus apoiadores e tem que ser levada em conta na análise desses movimentos. A ascensão de Déspota Esclarecidos significa que ao mesmo tempo que são implementadas reformas em setores do Estado, permanecem os monarcas com poderes despóticos: “O Estado mudou; permaneceu absolutista, mas tornou-se corrupto. O sistema absolutista, situação inicial do Iluminismo burguês, se manteve até a Revolução.”
Contudo, a ruptura com naturalidade e sacralidade dos reis implicava em um desejo transformado em luta por mudanças profundas em diversas áreas da sociedade. É inegável que as reformas inspiradas por esses ideais influenciam a forma como o papel do Estado é pensado e efetivamente construído. Portanto, mesmo antes de um momento de ruptura revolucionária, Estados que incorporam aspectos como a garantia do bem estar social, da tolerância religiosa, da justiça fiscal e da escuta da opinião pública, mesmo que de forma instrumental, demonstram a penetração de ideais iluministas nesses espaços.
Bibliografia
HAZARD, Paul. A crise da Consciência européia/trad. e notas de Oscar de Freitas. Lisboa: Cosmos, 1948.
HILL, Christopher. Origens Intelectuais da Revolução Inglesa. São Paulo, Martins Fontes, 1992
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês, trad. Luciana Villas-Boas Castelo-Branco. Rio de Janeiro: EDUERJ & Contraponto, 1999.
ROSSI, Paolo. A ideia de progresso In. Naufrágios sem espectador. Unesp, 2001.
VENTURI, Franco. Utopia e reforma no Iluminismo. Edusc, 2003.