Iluminismo
em 11 de Janeiro de 2025
O papel e a função dos museus de história na realidade atual brasileira
Introdução
A base teórica a partir da qual se formam os museus no mundo moderno, de acordo com Bruno Brulon, tem forte influência no pensamento de Descartes. Para este, a razão assume um papel central na criação da realidade à sua volta. Nesse sentido, o pensamento existe separado do mundo material, o que favorece o estabelecimento de uma perspectiva, nesse caso europeia e racional, sobre as demais. Excluindo, assim, aqueles que não se encaixam na visão de mundo construída na da Europa Ocidental que é vista ao mesmo tempo como neutra e universal. Ou seja, a cultura europeia representa para essa perspectiva o ponto de partida para se classificar o que é “normal” e o que é “exótico”. Concomitantemente, é vista a partir de uma ótica evolucionista sob a qual se considera o mundo moderno ocidental como ponto de chegada universal para todas as culturas ditas “primitivas”.
Os museus históricos, por sua vez, são construídos ainda ligados a essa tradição que carrega uma narrativa hegemônica, buscando se impor sobre as demais. No entanto, a museologia brasileira passa por mudanças ao longo do tempo que questionam o papel desses espaços na sociedade e trazem novas formas de pensar a museologia. O presente trabalho busca compreender o cenário atual dos museus históricos brasileiros pensando neles como instituições historicizadas, que sofreram transformações ao longo do tempo, mas carregam heranças da sua formação ainda hoje, tanto naquilo que continua igual quanto nas tentativas de resistência a essas origens. Assim como sua história, o papel que essa instituição assume na realidade brasileira é também múltiplo. Por um lado, a percepção dos museus como espaços da elite persiste ainda hoje e demonstram uma narrativa de dominação e exclusão. Ao mesmo tempo, os museus históricos apresentam, cada vez mais, estratégias para se afastar dessa perspectiva, encontrando assim, novas funções desses espaços na sociedade brasileira atual.
Passado e presente da museologia brasileira
Primeiramente, para compreender a Museologia nacional atual é preciso discutir as bases da sua formação. Quando pensamos em uma museologia brasileira não é possível partir do preceito de uma instituição única e estática. São várias fases e movimentos que integram esse quadro museológico nacional. O fato dessa instituição chegar ao Brasil como parte de um projeto colonial tem que ser levado em conta no estudo a respeito do conteúdo desses espaços. Até o século XIX a ciência no Brasil era feita por viajantes estrangeiros. Esses estudiosos vinham para a América para coletar e catalogar as espécies e os objetos encontrados. O movimento partia de uma ideia de curiosidade sobre aquilo que era estranho a ele, exótico e ainda não estudado. Fica claro, portanto, que a ciência que existia no Brasil era feita apenas por indivíduos que não tinham conexão com o território ou as culturas que habitam esses espaços. Assim, o impulso que os levava ao estudo partia de uma curiosidade científica sobre o “outro”. Porém, para definir algo como “outro” é necessário escolher um ponto de partida do que representa o “eu” ou o “normal”, que para esses estudiosos era a cultura Europeia Moderna e racional.
No entanto, o processo de colonização não é aceito por uma população passiva. A resistência à aculturação e dominação da metrópole é respondida por movimentos de oposição que questionam a narrativa imposta de uma superioridade da cultura europeia. De forma semelhante, o papel dos museus nacionais, enquanto representantes de uma narrativa composta a partir da afirmação de uma elite de herança europeia, não é apenas assimilada pela população. Os museus hoje se afastam da celebração de grandes feitos nacionais e grandes figuras da elite. Cada vez mais surgem museus criados a partir da ideia de representar identidades que foram por muito tempo escondidas e apagadas. Essa dualidade de significados dos museus, dominação e resistência permite que eles tenham mais de um significado na sociedade, significados estes que se encontram em disputa.
Museus históricos, narrativas e nacionalismo
Para Gramsci a formação da nacionalidade é posterior à formação do Estado. Nesse sentido, a identificação com uma cultura nacional prévia ao Estado não é, para o autor, primeiro passo que une a população de um país. Para compreender esse fenômeno basta observar as diversas culturas que compõem o vasto território hoje denominado Brasil. Pensando nisso, o autor destaca que essa unidade nacional é posteriormente implementada a partir de um Estado centralizado. Ou seja, diante da difícil tarefa de justificar a formação de uma unidade a partir de uma população que abriga diferentes etnias, culturas e às vezes até mesmo línguas, os representantes do Estado buscam criar uma hegemonia de uma cultura sobre as demais. Isso não significa que outras parem de existir, porém um único ponto de vista se torna “oficial” enquanto os outros são marginalizados. A isso se relaciona a ideia de identidade apresentada por Ulpiano. O autor questiona uma identidade intrínseca à sociedade e reforça a necessidade de considerar o caráter social da formação de uma identidade. A partir desse pensamento, a identidade individual se liga dialeticamente com aquilo que é socialmente definido como “norma”. Nesse processo, se escondem as diferenças em favor daquilo que é aparentemente universal. Essa discussão é importante para entender o aspecto de dominação associado ao museu histórico enquanto espaço de afirmação de uma identidade nacional que visa se impor como única e “verdadeira”.
Pensando nisso, a partir de 1870 começa a se formar um grupo de intelectuais brasileiros com mais força no cenário nacional. Correntes de pensamento como positivismo, evolucionismo e naturalismo se infiltram progressivamente na sociedade brasileira, com tentativas de uma construção de cultura nacional em oposição à metrópole, substituindo o olhar do colonizador que se impõe sobre o“outro” colonizado. Assume, portanto, um imaginário nacionalista de ruptura e independência. Porém mantendo o mesmo mecanismo de construção uma narrativa que se coloca como universal.
Na discussão a respeito dos museus históricos cabe colocar uma questão pouco difundida para o público a respeito da diferença entre museus históricos e memoriais. Os espaços de afirmação e celebração da narrativa nacional, que exaltam grandes eventos e personagens, são muitas vezes percebidos como espaços históricos, porém exercem de fato a função de memoriais. Por essa diferença não ficar clara ao público cria-se uma confusão na própria ideia do que é história e o que é memória, dois conceitos que apesar de relacionados tem mecanismos e funções sociais extremamente diferentes.
O Museu Paulista é um importante espaço para compreender essas divergências. No momento após a sua fundação em 1893 contava com coleções diversas, desde botânica até pinturas. Quando passou por uma transição para se tornar um museu especializado em história com a direção de Afonso Taunay, funcionava como espaço de celebração nacional. É preciso considerar que esse momento foi marcado pela busca por estabelecer um passado exemplar, que refletisse os valores do novo modelo político da própria elite paulista que buscava se estabelecer, isso se reflete na escolha de quais personagens e eventos são destacados e quais são ocultados, bem como na forma que são apresentados.
Hoje em dia, não só o aspecto do museu mudou com a reforma realizada para o bicentenário da Independência, mas também a proposta como um todo. A ideia de uma história dinâmica e sujeita a transformações, bem como narrativas historiográficas divergentes e em disputa estão presentes no novo Museu Paulista, reaberto em 2022. Pensando nisso, outro aspecto dos museus históricos atuais a ser considerada é a tentativa de ver mais narrativas representadas dentro daquele espaço. Para Ulpiano Meneses, para um museu ser definitivamente histórico deve apresentar o passado enquanto organismo vivo. A partir dessa perspectiva, o museu histórico apresenta importante tarefa de fomentar uma compreensão das constantes transformações da realidade social e se afastar de uma narrativa única.
Essa discussão é importante para compreender os museus históricos atualmente justamente pela popularidade dos memoriais enquanto forma de “resgatar” o passado. A memória, no entanto, não pode resgatar o passado, uma vez que não é nem objetiva nem estática. A memória é um mecanismo de reforço de identidade, tanto individual quanto coletiva. Quando confundida com a história enquanto disciplina científica, se coloca em um patamar de: “forma intelectual do conhecimento, operação cognitiva.” A partir disso é utilizada como base para sustentar narrativas criadas apresentadas como fatos históricos. Portanto, estabelecer as funções dos museus históricos passa pela diferenciação do saber histórico e da memória.
Como quebrar velhos paradigmas?
Para repensar o museu e a museologia é preciso começar a partir da formação dos profissionais para atuar na área. A primeira formação profissional para de um museólogo se deu no Curso de Museus em 1932 no Museu Histórico Nacional, até 1951 como curso técnico e mais adiante como bacharelado, que formou as bases que mesmo no início dos anos 2000 continuaram amplamente reproduzidas. O curso focava nos aspectos técnicos de conservação necessários para o funcionamento de um museu e, como parte do Museu Histórico Nacional e do aparelho estatal, estava atrelada ao propósito de formação nacional presente naquela instituição. De acordo com José Gonçalves, era também frequentado principalmente por mulheres da elite. Nesse sentido, a própria formação dos profissionais que estariam encarregados de repensar aquela instituição carregavam em si a visão da elite e da perpetuação do mito de formação nacional.
Porém, a partir das décadas de 1960, 1970 é possível perceber novas correntes museológicas que demonstram uma sociedade que não se identifica mais com o museu tradicional. Um marco desse movimento foi a Mesa Redonda de Santiago do Chile, que ocorreu em 1972. Nela foi reivindicada uma função social do museu. A discussão girou em torno da ideia de repensar a forma de gestão dos museus, organizar esses espaços para criar um vínculo deles com a sociedade. Esse novo museu deveria estar conectado com a população, apresentando uma responsabilidade política de atuar no sentido de desenvolver aquela sociedade. Se por um lado a Nova Museologia demonstra um processo de afastamento em relação à perspectiva tradicional de museu e uma intenção de inclusão de outras perspectivas na esfera cultural, por outro, ela não quebra com os paradigmas desenvolvimentistas do mundo Moderno Ocidental. Parte-se de uma ideia de inclusão que visa trazer esse “desenvolvimento” para a população mais do que ouvir o que outras vozes têm para contribuir ao cenário museológico.
Feitas as devidas considerações, a Nova Museologia abre um diálogo e tem consequências diretas na prática museológica Brasileira. A partir dos anos 70, o currículo do Curso de Museus ultrapassa as necessidades técnicas da manutenção de um museu e passa a considerar a função social dessa instituição, a partir do estudo da disciplina de Museologia, que de acordo com José Gonçalves:
"Seu objeto é o fato museal, que não se limitaria ao que ocorre no espaço tradicional dos museus, mas pode ocorrer em qualquer outro espaço, ampliando-se assim os limites do que se entende por museu." (GONÇALVES, 2005)
Mesmo assim, os museus são frequentemente associados à ideia de um espaço de elite, onde os saberes e a cultura popular e marginalizada não têm espaço. O processo para romper com essa barreira simbólica que impede grande parte da população de se ver como parte do Museu, não só como público, mas também capaz de construir aquele conhecimento, é um desafio que os museus, históricos ou não, enfrentam atualmente. Uma tentativa de quebrar com essa elitização do museu e, alcançar aquilo que a Nova Museologia dos anos 70 não foi capaz de conquistar, é a curadoria compartilhada. Nesta, o objetivo é que o processo de construção da narrativa a partir da cultura material seja realizada de forma colaborativa e com participação ativa daqueles que estão sendo retratados pelas exposições. Esse movimento reconhece o caráter colonial que formou os museus nacionais e questiona o lugar de “outro” do objeto de estudo. Assim, são cada vez mais comuns as parcerias com povos indígenas para a criação de exposições sobre suas próprias culturas.
Além disso, os museus históricos além de repositórios de artefatos a serem preservados têm cada vez mais se empenhado em ser um espaço educacional. Portanto, rompe-se com a corrente de pensamento que entendia o museu como instituição fundada para o pensamento introspectivo. Neste, a conexão com o mundo interior era considerada mais importante do que o mundo exterior, pois é ela que o cria. A consequência desse pensamento eram museus como locais de introspecção silenciosa e não de diálogo e vivência comunitária. Quando começa a se pensar as instituições de cultura por uma lente de difusão de conhecimento, não só abrindo as portas para escolas e universidades, mas ativamente buscando engajar esse público, o museu se torna um lugar de movimento de pessoas e ideias.
Considerações finais
Em uma sala de um museu todos os objetos que lá se encontram tem uma história, inicialmente ocultada do público que visita a instituição de cultura. Desde sua produção, o papel que assumiu em determinada sociedade, seu valor simbólico etc. Até a forma como é levado ao museu, a posição em que são colocados, seu papel no conjunto de artefatos escolhidos, todos esses aspectos são previamente determinados a partir de uma narrativa que se busca passar ao visitante. Todos esses aspectos têm impacto direto na compreensão simbólica que é feita pelo público a respeito de um conjunto de artefatos. No entanto, essas questões permaneceram por muito tempo como coadjuvantes em razão do protagonismo de uma narrativa que se busca apresentar como “verdade” única.
Percebe-se, assim, que quando algo, ou alguém, é classificado como “bárbaro” em oposição a algo que é visto como “civilizado” é possível compreender as relações sociais a partir das quais foi formado determinado pensamento. Portanto, fica evidente a importância de estudar processo museológico, questionando a universalidade da narrativa exposta. Isso porque, para que os museus históricos possam assumir uma nova função na sociedade é preciso compreender o processo que fez com que ele se tornasse o que é hoje. Tendo isso em mente, surgem uma série de questionamentos sobre os aspectos que historicamente fizeram do museu um lugar de elite e de dominação. Para essas perguntas não se tem respostas definitivas, mas as possíveis soluções só surgem quando determinamos as perguntas. Quem tem acesso a educação que forma os museólogos? O que é priorizado no currículo? Como é pensada a aquisição e a curadoria dos objetos? Para que público esse museu é pensado?
É também importante lembrar que esse processo é marcado tanto pelas transformações quanto pelas permanências. Convivem, portanto, nos museus históricos atuais perspectivas antagonistas em disputa. Não obstante, o papel da resistência aos mecanismos de dominação é uma constante que acompanha a história dessa instituição. Assim, sem negar os problemas encontrados no processo de formação dos museus históricos brasileiros, é preciso reconhecer como a tomada desses espaços por uma perspectiva histórica dinâmica e plural impacta positivamente a realidade social brasileira atual.
Bibliografia
[1] BRULON, Bruno. Descolonizar o pensamento museológico: reintegrando a matéria para re-pensar os museus. Anais do Museu Paulista, São Paulo, Nova Série. Vol.28, 2020- p.1-30.
[2] Guia explicativo da exposição “Para entender o Museu”. Museu do Ipiranga.
Disponível em: https://museudoipiranga.org.br/exposicoes/#para-entender-o-museu
Acesso em: 20 de junho de 2024.
[3] GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Os museus e a representação do Brasil. Revista do IPHAN, número 31, 2005.
[4] MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A História, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (34), 1992.
[5] MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A problemática da identidade cultural nos museus: de objetivo (de ação) a objeto (de conhecimento). Anais do Museu Paulista, Nova Série, número 01, 1993.
[6] MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Para que serve um Museu Histórico?
Museus Históricos: da celebração à consciência histórica. In: Como explorar um museu histórico. Cadernos do Museu Paulista da USP, 1992.
[7] ORTIZ, Renato. Notas sobre Gramsci e as ciências sociais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 21, p. 95-103, 2006.
[8] SCHWARCZ, Lilia K.M. O nascimento dos museus no Brasil. In: MICELI, Sérgio (Org.). História das Ciências Sociais no Brasil. São Paulo: Vértice, 1989, pp. 29-90.
[9] VARINE, Hugues de. A respeito da mesa-redonda de Santiago. ARAÚJO, Marcelo Mattos; BRUNO, Maria Cristina Oliveira. A Memória do pensamento museológico contemporâneo: Documentos e Depoimentos. São Paulo: Comitê Brasileiro do Icom, p. 17-25, 1995.
[10] VIEIRA, Marianne Aparecida do Nascimento. A inserção indígena nos museus. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Número 30, 2018, p.122.
Fontes
[1] A Mesa-Redonda de Santiago do Chile (1972) Documento final do evento- pág. 43 a 51..