ANÁLISE DA PERSONAGEM LORENA, NA OBRA “AS MENINAS” DE LYGIA
Foto de ANDREY A.
Por: ANDREY A.
15 de Janeiro de 2025

ANÁLISE DA PERSONAGEM LORENA, NA OBRA “AS MENINAS” DE LYGIA

Literatura Portuguesa Escolas Literárias Ensino Médio Ensino Fundamental ENEM Literatura Brasileira Modernismo

 

ANÁLISE DA PERSONAGEM LORENA, NA OBRA “AS MENINAS” DE LYGIA FAGUNDES TELLES: A INFLUÊNCIA DA CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIAS NA FORMAÇÃO DA PERSONALIDADE

 

Andrey Adão Kaminski Amazonas[1]

Saulo Semann[2]

 

Resumo: Este artigo contempla um estudo acerca das características psicológicas da personagem Lorena, uma das protagonistas da obra “As Meninas” (1973), de Lygia Fagundes Telles (1923), e suas origens nos traumas e vivências de sua infância. A obra “As Meninas” gerou surpresa para o público, tanto por seu conteúdo, quanto pela sua liberação em pleno Regime Militar, por conter críticas diretas e composto por um roteiro protagonizado por mulheres (jovens) com pensamentos fora dos padrões da época, causando forte reação da crítica especializada. Sobre Lorena, buscamos analisar o perfil, e tecer considerações a respeito de seus relacionamentos, fantasias e decisões contraditórias apresentadas no transcorrer da narrativa. A personagem, inicialmente tomada como a mais inocente e até mesmo simplória, revela-se em relatos de memórias e atitudes pontuais, permitindo a formação de características densas. Ao longo do romance, Lorena reconstrói a história de sua infância, a partir de seus espaços e experiências específicas, numa tentativa de recuperação (ou construção) destas memórias, que todos os seres humanos fazem, geralmente na adolescência.

 

Palavras-Chave: As meninas; Lygia Fagundes Telles; Lorena.

 

 

Considerações Iniciais

 

          A obra “As Meninas” (1973), de Lygia Fagundes Telles (1923), provocou surpresa para o público, tanto por seu conteúdo, quanto pela sua liberação em pleno regime militar, por estar recheado de críticas diretas e composto por um roteiro protagonizado por mulheres (jovens) com pensamentos muito avançados para os padrões da época, causando forte reação da crítica especializada. Lygia Fagundes Telles, também conhecida como “a dama da literatura brasileira”[3], considerada por acadêmicos, críticos e leitores uma das mais importantes e notáveis escritoras brasileiras do século XX e da história da literatura brasileira. Além de advogada, romancista e contista, Lygia teve grande representação no pós-modernismo, e suas obras retratavam temas clássicos e universais como a morte, o amor, o medo e a loucura, além da fantasia.

Este romance, As Meninas, narra a vida de três jovens que vivem em um internato de freiras enquanto cursam os primeiros anos de universidade. O texto se desenvolve a partir de um diálogo contínuo entre cada protagonista em sua “casa/lar” de infância, que de uma forma ou de outra, representa uma ameaça à sua integridade física e mental. O que prevalece é o tempo psicológico, em que a memória, a evocação do passado, as fantasias, os traumas e os desejos inconscientes se cruzam com algumas ações do presente. As coordenadas temporais externas são imprecisas e vagas, mas alguns acontecimentos – agitação social, greves universitárias e perseguições políticas – permitem localizar o livro no final dos anos sessenta, durante a ditadura militar no Brasil.

A estrutura narrativa de “As Meninas” se desenvolve pela alternância das três vozes, que correspondem à narração de Lorena Leme Vaz, Lia de Melo Shultz e Ana Clara Conceição (Ana “Turva”). As três narradoras carecem de famílias solidárias e funcionais e, desde a adolescência até a universidade, moram em um internato de freiras na cidade de São Paulo, onde conseguem estabelecer um espaço de intimidade e amizade entre elas. Cada protagonista representa um sistema familiar com dinâmicas diferentes e origens sociais diversas: aristocracia rural em declínio (Lorena), classe média sem identidade clara (Lia) e classe indigente maltratada (Ana); constituindo um caleidoscópio humano que representa os problemas sociais do mundo contemporâneo: o declínio das elites, a alienação do sujeito, a precariedade das classes populares, a crise da metamorfose económico-social, a falta de comunicação, a quebra dos núcleos de pertencimento e identidade. Esses temas baseiam-se em um texto que é gerado a partir de dois pressupostos: a memória traumática com vazio bíblico[4] e as figuras parentais como origem problemática.

Neste artigo tratamos especificamente da personagem Lorena, suas características, traumas e fantasias, demonstrando uma complexidade psicológica construída a partir de elucidações sobre sua origem familiar.

 

 

A personagem Lorena e seus traumas

 

Lorena Vaz Leme é a aristocrata que vem de uma família que se desintegra após a tragédia desencadeada pelo violento episódio envolvendo seus irmãos, os gêmeos Rômulo e Remo. Remo[5] atira, supostamente por acidente, em seu gêmeo Rômulo, que morre. Após o incidente, claramente inspirado na fundação de Roma, a ordem familiar desmorona irreparavelmente, o pai afunda-se na loucura e perde a memória; a mãe passa por diversas cirurgias estéticas, cai em depressão e desperdiça a fortuna da família com jovens amantes. Lorena tenta preservar a sanidade que sua família perdeu fazendo da ordem seu eixo existencial. No quarto do internato ela cria um espaço seguro e arrumado onde pratica uma série de rituais pueris – tomar banho, fazer chá – e divaga sobre seu interesse por literatura, música e filosofia. Em relação à sua obsessão pela higiene diz: “E eu que sonho com um homem limpíssimo” (Telles, 1973, p. 144), e sobre a ordem, que é uma forma de compensar o caos interno que a afeta, diz: “A desordem me deprime, Irmã. Ah, se eu pudesse me arrumar por dentro, tudo calminho nas gavetas” (Telles, 1973, p. 107).

A inclinação pela ordem soma-se a evasão e a fantasia. Lorena se esforça por um amor platônico, o médico M. N., um homem mais velho, casado e pai de cinco filhos, que tentou em vão salvar a vida do irmão ferido. Ao longo de toda a história ela espera uma ligação dele, que nunca se concretiza. Esse sonho de amor exacerbado serve para se isolar da realidade, do próprio corpo e da violência interna. Seu discurso é articulado racionalmente, cheio de referências à alta cultura, mas suspeitamente ingênuo, superficial e imaturo.

Ela é a única da família capaz de verbalizar a dolorosa lembrança da morte do irmão. Como mencionado, o pai acaba desmemoriado em um hospital psiquiátrico e a mãe se envolve em frivolidades. Seu irmão Remo, o alegado culpado, foge para outro país num posto diplomático e envia-lhe constantemente presentes que podem ser lidos como gestos de reparação. Mas, se Lorena constrói uma história, ela tem diferentes versões do acontecimento como se todas as versões fossem verdadeiras: seu irmão morre ainda bebê de uma doença, ele morre devido a um tiro intencional, ele morre em um jogo aleatório ou é vítima das forças do mal que tomam conta da alma de Remo. Em certa ocasião, quando Lorena pede um lenço a Lia, o incidente é acionado em sua memória em uma de suas diversas versões:

Atiro-lhe o lenço cor-de-rosa que não se abriu como o verde. Por que meu coração também se fecha? Rômulo nos braços de mãezinha, procurei um lenço e não vi nenhum, seria preciso um lenço para enxugar todo aquele sangue borbulhando. Borbulhando. “Mas que foi isso, Lorena?!” Brincadeira, mãezinha, eles estavam brincando e então Remo foi buscar a espingarda, corra senão atiro, ele disse apontando. Está bem, não quero pensar nisso agora, agora quero o sol. Sento na janela e estendo as pernas para o sol. (Telles, 1973, p. 14)

 

Em outra de suas explicações, Deus é peça importante na tragédia entre seus irmãos. Um deus malévolo, que não se importa com os infortúnios sociais, que se ausenta e permite a intervenção do diabo, pois entende o crime do irmão através de uma “mão externa” irresponsável e perversa que toma conta da situação:

“Foi sem querer, como Remo podia adivinhar que o Diabo escondera a bala no cano da espingarda. Uma espingarda quase maior do que ele. Até hoje não sei como conseguiu correr com ela, não sei. Não chora, meu irmãozinho, não chora, ninguém é culpado, ninguém.” (Telles, 1973, p. 40).

 

Essa ambiguidade se acentua quando os narradores são crianças que ainda não sabem escrever nem ler; como é o caso de Lorena, que desde cedo presencia esse fato, assim, o que observamos ou lemos, o que presenciamos, são os pensamentos que esta menina tem sobre o que faz e o que a rodeia. Seu fio condutor é o fingimento: fingir que o namorado vai ligar, fingir que o mundo está restrito ao quarto do internato, fingir que não se sofre quando há motivos.

Ela mesma tem consciência de que sua mente é uma fábrica de sonhos e que isso a ajuda a não se comprometer com a realidade, com o exterior. Porque Lygia Fagundes Telles construiu um personagem que fica a maior parte do dia no quarto estudando latim, escrevendo cartas, ouvindo música. Por exemplo, o amor que ela inventa com o Doutor M. N. é um sentimento enganoso que a ajuda a não enfrentar o medo que o seu próprio corpo produz. Por outro lado, suas atitudes infantis – ela guarda um pato de infância para dormir, faz máscaras, entrevista os amigos, inventa palavras (por exemplo ela diz “oriehnid[6] para se referir a dinheiro) – funcionam como uma forma de sobrevivência, para reprimir e escapar da tragédia em sua vida.

Lygia Fagundes construiu uma personagem que narra versões contraditórias. A memória de coisas traumáticas oscila entre a verdade e a ficção. Essa perspectiva lhe permite negar os fatos ou diminuir sua gravidade, processo que pode ser observado nesta outra interpretação do acidente de seus irmãos:

Rômulo com o furo no peito borbulhando sangue, um furo tão pequeno que se mãezinha tapasse com um dedo, hein, mãezinha? Foi sem querer, como Remo podia adivinhar que o Diabo escondera a bala no cano da espingarda" (Telles, 1973, p. 40).

 

A outra versão é estruturada pela mãe e refere-se à doença dos gêmeos. Em seguida, ele justifica a versão de Lorena por ela ser uma menina, justamente por esse traço de fantasia no imaginário infantil:

— Aquela arvorezinha de retratos, o menino é Rômulo ou Remo?

— Remo. Rômulo não podia estar ali.

— Não?

— Morreu nenenzinho, querida.

— Nenenzinho?

— Não tinha nem um mês, não chegou nem a isso. O médico disse que ele não tinha viabilidade. Um sopro no coração. [.....]

–[Lia interrompe] Um momento. Remo deu um tiro nele enquanto brincavam, não foi isso? Um tiro no peito, teria uns doze anos, não foi isso o que aconteceu? Milhares de vezes Lorena contou essa história com detalhes, ele era alourado. Vestia uma camisa vermelha, vocês ainda moravam na fazenda.

Ela está sorrindo dolorida, olhando o teto.

–[A mãe de Lorena responde] Minha pobre filhinha. Nem conheceu o irmão, é a caçula. Era menininha ainda quando começou a inventar isso, [.....] imaginação infantil rica demais, quem sabe na adolescência? Não passou. (Telles, 1973, 166).

 

O leitor fica ainda mais perplexo e se pergunta em qual versão acreditar; sejam as múltiplas versões de Lorena, seja esta diametralmente oposta da mãe, que se sabe ter estado bêbada e perdida. É interessante que a mãe justifique essas múltiplas versões do acontecimento com uma “imaginação infantil” que invalida sua história pela suposta falta de critérios de realidade das crianças que fantasiam e distorcem tudo. É claro que faz parte desta estratégia narrativa, fazer daquela memória plástica e móvel atribuída às crianças, a ferramenta para apresentar uma fabulação mais dinâmica e polissémica, com significados contraditórios e que, dependendo das circunstâncias, se ajusta à teoria do trauma, em que a lembrança é sempre um vazio em torno do qual se criam versões, construindo diversas interpretações.

Essa tendência de criar versões ou desvalorizar acontecimentos graves também se refletirá quando ela “disfarça” a morte de Ana, que morre no internato vítima de overdose de drogas. Ela dá banho nela e maquia-a antes de abandonar o corpo dela num banco de uma praça. E esse fazer se estabelece como o grande paradigma da burguesia a que pertence:

O mundo do burguês é o mundo das aparências”, Lião repetiu não sei quantas vezes. Eu e M.N. pertencemos à burguesia, logo, estamos condenados a esse mundo. Mas estamos mesmo? Queria ser mas vou estar na engrenagem do faz de conta (Telles, 1973, 135).

 

Ao final do livro, Lorena fica desorientada e diz que deve voltar a morar com a mãe que envelheceu rapidamente. Assombrada pelo passado, impotente diante do futuro, ela diz à Lia: “Tenho que ir, Lião. O analista, Mieux e mais o drama da velhice. Sinistro esse drama, de repente ela ficou com cem anos. Precisa de mim.” (Telles, 1973, p. 175). E Lia a faz reagir dizendo: “Sacudo-a pelos ombros, parece que ficou criança de novo, ô, se voltar com a mãe vai ficar mais criança ainda” (Telles, 1973, p. 176). A personagem de Lorena não evolui; antes, ela sofre uma regressão, retornando à infância; ela não pode emancipar-se e ser alguém. Podemos ler este processo como o destino e o vício da burguesia: não crescer, permanecer estagnado, não ser capaz de fundar uma nova ordem ou identidade.

 

Um “romance familiar”

Lorena já não vive na casa da família, e é do internato para freiras que constrói o seu “romance familiar”[7] revisitando aquela casa que já não habita. Já instalada no lar religioso, em vez de se distanciar do seu passado, estabelece um “diálogo” permanente e obsessivo com o lar de infância, o que dá origem a uma fábula onde se misturam elementos conscientes e inconscientes, reais e ilusórios.

Não é irrelevante que as “meninas” vivam num internato de freiras, em regime de soltura e confinamento (as meninas saem durante o dia, mas devem voltar à noite e cumprir determinados horários), sob a tutela de freiras que, mais do que mães obscuras superiores, são mães substitutas afetuosas que tentam discipliná-las e cuidar delas. Dessa forma, o que a estrutura do internato tenta compensar é a falta de espaços seguros para as três meninas crescerem normalmente. A sociedade, o governo e a família não conseguiram oferecer oportunidades de mudança e esperança a estas jovens em risco social devido às suas origens e infâncias traumáticas. O seu desvio não é simples indisciplina, mas abandono. Terão que ser protegidas e aparentemente não há sucesso. É interessante pensar novamente nesse sentido a cena em que os pais dessas meninas as “delegam”, ou melhor, “as entregam” ao lar religioso, com a responsabilidade de “fazer alguma coisa” com suas filhas.

Na narrativa de Lorena, o orfanato é o patrimônio aristocrático, um espaço de tranquilidade e abundância que desaba após a tragédia dos irmãos, e que lança abruptamente todos os membros da família do paraíso coletivo para o inferno individual. Como mencionado anteriormente, seus pais são vítimas do alcoolismo e da loucura, e a mãe também fica obcecada por cirurgias plásticas para apagar as cicatrizes da idade e da vida agitada.

Um campo de batalha cheio de humilhação, agressão e perigo. Se nos detivermos nos espaços mais específicos deste internato-casa, o “quarto das conchas” de Lorena chama a nossa atenção. Bachelard refere-se precisamente ao “espaço da concha” como um valor essencial do habitat humano, o valor ontológico do refúgio, um sinal essencial da casa natural: a procura de abrigo e proteção, bem como de confinamento e tranquilidade, onde a solidão é aumentada pela configuração completa do espaço envolvente, e onde é permitido encontrar-se em privacidade, isolamento e descanso, e defender-se de um exterior agressivo, evitando todas as ameaças. Todas estas condições fazem todo o sentido no caso de Lorena, que se isola no seu quarto com uma introspecção introspectiva e defensiva. Sua dialética como personagem é oscilar entre fantasia e realidade, entre diversas tentativas de narrar a si mesma e a sua família sem sair da miragem ou sem acessar o centro da verdade.

 

O erotismo, memórias e fábulas

No romance “As Meninas”, a personagem Lorena, especificamente, problematiza a infância com retornos a esse passado que se concebe como espaço fundacional e determinista, como etapa da vida que nos condena a um destino irrevogável. Nesta fase, procura uma forma de reorganizar o que foi “desfeito” nos seus primeiros anos de vida: a ordem familiar e, portanto, também a ordem individual. Uma luta entre a sua identidade de menina e a sua identidade de adulta, num jogo de espelhos que deforma, altera e bloqueia as suas memórias.

Lorena não apenas recria o seu passado, ela também repara, modifica, altera acontecimentos e verdades, e implanta um processo ficcional em que biografia, imaginação, desejos ocultos e manifestos se unem.

Lorena inicia a narrativa deste romance com uma cena bastante sugestiva, que apresenta a descoberta do prazer através da imagem de um homem mastigando um pêssego na rua. E o prazer vai para esta fruta, para a fragrância que ela emana, para o homem que a prova. Aquele pêssego e aquele homem fundem-se como objeto e sujeito na carne – a boca, o fruto –, em gestos e ações – morder, mastigar, acariciar, lamber – numa pintura sensual e erótica. Portanto, a descoberta do prazer para Lorena começa com um objeto – um pêssego – e uma imagem carregada de percepções sensoriais:

Se eu escrevesse começaria uma história com esse nome, “O Homem do Pêssego”. Assisti de uma esquina enquanto tomava um copo de leite: um homem completamente banal com um pêssego na mão. Fiquei olhando o pêssego maduro que ele rodava e apalpava entre os dedos, fechando um pouco os olhos como se quisesse decorar-lhe o contorno. […] Fiquei fascinada. Alisou a penugem da casca com os lábios e com os lábios ainda foi percorrendo toda sua superfície como fizera com as pontas dos dedos. […] . Eu queria que tudo acabasse de uma vez mas ele parecia não ter nenhuma pressa […] Ainda me contraio inteira quando lembro, oh, Lorena Vaz Leme, não tem vergonha? (Telles, 1973, p. 9-10).

 

Ao narrar essa cena, Lorena expressa as reações corporais que essa imagem desperta em si mesma, ela descobre o desejo físico. É um momento de revelação de uma sensação que continua ao longo da vida: a experiência do prazer. Mais tarde, o objeto do prazer mudará. Na idade adulta pode ser um casal, uma atividade. Porém, sem dúvida, aquela sensação que foi descoberta na infância permanece gravada na mente e no corpo, mas no caso dela permanece em um nível mais platônico.

As protagonistas deste romance, principalmente Lorena, são apresentadas como sujeitos literários cujos processos vitais de constituição estão truncados e não podem ser concluídos. A respeito disso, a crítica Peggy Sharpe afirma sobre essa constante na obra da autora:

“ela nos apresentou a uma casta de personagens femininas cujas tentativas de autorreflexão são obstruídas pela incapacidade de seus personagens integram o processo com o contexto externo de suas vidas. Pois os protagonistas são incapazes de fixar nada além de sua posição relativa de construção identitária e de se tornarem personagens em busca de uma identidade”. (Sharpe, 1997).

 

Por exemplo, nesta busca pendente, Lorena se olha em relação aos outros, vivencia um processo de cisão e se pergunta que lugar ela ocupa no mundo e assim o afirma:

 

Ana Clara fazendo amor. Lião fazendo comício. Mãezinha fazendo análise. As freirinhas fazendo doce, sinto daqui o cheiro quente de doce de abóbora. Faço filosofia. Ser ou estar. Não, não é ser ou não ser, essa já existe, não confundir com a minha que acabei de inventar agora. Originalíssima. Se eu sou, não estou porque para que eu seja é preciso que eu não esteja. Mas não esteja onde? Muito boa a pergunta, não esteja onde. Fora de mim, é lógico. Para que eu seja assim inteira (essencial e essência) é preciso que não esteja em outro lugar senão em mim. Não me desintegro na natureza porque ela me toma e me devolve na íntegra: não há competição mas identificação dos elementos. Apenas isso. Na cidade me desintegro porque na cidade eu não sou, eu estou: estou competindo e como dentro das regras do jogo (milhares de regras) preciso competir bem, tenho consequentemente de estar bem para competir o melhor possível. Para competir o melhor possível acabo sacrificando o ser (próprio ou alheio, o que vem a dar no mesmo). (Telles, 1973, p. 132).

 

A alienação é evidente: o “eu” é sacrificado num dilema existencial que não dá sentido e mostra o sujeito fragmentado.

As protagonistas inventam uma história móvel, aberta e falaciosa, porque a ação não ajusta nem se opõe à verdade, mas complica a relação entre os dois campos. Além do mais, entra-se no reino do absurdo, do qual Lorena diz:

“Aquilo que pensamos se reflete em três espelhos do absurdo — leio no poeta que abri ao acaso, consulto poesia como o paizinho consultava o Velho Testamento, sempre ao acaso: — Três espelhos do absurdo. Esse é o meu. E os dois outros?” (Telles, 1973, p. 76).

 

Suas fábulas são forjadas em torno de um vazio que está relacionado ao desequilíbrio familiar, à sua origem, à aniquilação do eu em um universo sem sentido. É com, e contra isso, que constroem suas histórias. Lorena diz:

“Nasci numa época muito violenta. Orfeu chegou a comover as feras com sua lira e eu não consegui comover nem o Astronauta. [gato]. […] mas como gostaria de mandar minha palavra de equilíbrio, de amor ao mundo, mas sem entrar nele, é lógico.” (Telles, 1973, p. 40).

 

Mostra uma geração aniquilada pelas forças do passado e pelas circunstâncias que a impedem de completar seu processo de subjetivação, como sustenta Sharpe (1997): “Apesar de sua força e coragem, esses personagens geralmente são incapazes de completar o processo de metamorfose que poderia libertá-los da sua solidão, decadência e falta de identidade”. É em torno desses “buracos” de sentido e possibilidades que se misturam o real e o alucinatório, o lógico e o incoerente.

 

Conclusão

A densidade psicológica da personagem analisada fica evidenciada ao longo da obra. Inicialmente acreditamos na superficialidade aparente, uma certa futilidade, ou ingenuidade. Porém, Lorena escreve o seu romance familiar negando e fantasiando esse espaço fundador dos pais, que aparecem como figuras arruinadas com as quais é impossível identificar-se. Nas três protagonistas evidenciamos a ausência do pai[8]. O pai de Lorena enlouquece e entra no sanatório após a morte do filho. Carregando o peso de um sobrenome que a coloca na sociedade, no direito, na história, na política, mergulha em devaneios. Os seus “escritos” têm algo de delírio, trazem consigo aquela memória incerta e fantasiosa, uma certa indefinição psicológica, entre a lucidez e a loucura. E a loucura se tece em relação às suas estratégias de desejo, tornando os laços amorosos que estabelecem um tanto platônicos ou francamente impossíveis. Poderíamos até dizer que seus sentimentos estão sujeitos a experiências extremas de perda de si, cultivando um “amor edipiano” e platônico pelo Dr. M. N., um homem casado e bastante idoso que nunca atende suas ligações ou cartas.

Em última análise, o poder das suas ações pessoais não é suficiente para completar o processo que a libertaria da solidão, da decadência e da falta de identidade. Suas ficções se chocam com o vazio que a originou, no início de tudo, em sua infância.

 

Referências

Bíblia. Português. Bíblia Sagrada Ave-Maria, 141.ed. São Paulo: Editora Ave Maria, 1959, (impressão 1994).

 

Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1929-1930/1974.

 

Lacan, Jacques. Os complexos familiares na formação do indivíduo: Ensaio de análise de uma função em psicologia. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.29-90.  

Magnoli, Demétrio (Org.). História das guerras 3.ª ed. São Paulo: Contexto, 2006.

 

Sharpe, Peggy (Org.). Entre resistir e identificar-se: para uma teoria da prática da narrativa brasileira de autoria feminina. Florianópolis: Mulheres; Goiânia: Editora da UFG, 1997. p. 71.

 

Telles, Lygia Fagundes. As Meninas. 5.ª ed. Rio de Janeiro: Olympio, 1974.

 

[1] Estudante do curso Letras Português da Universidade Estadual do Centro-Oeste, campus Irati, e-mail: andrey.amazonas@escola.pr.gov.br

[2] Estudante do curso Letras Português da Universidade Estadual do Centro-Oeste, campus Irati, e-mail:, e-mail: saulo.semann@escola.pr.gov.br

[3] Lygia Fagundes Telles é referenciada como a “dama da literatura brasileira” em incontáveis publicações impressas e digitais, não sendo possível determinar quem foi o autor da primeira homenagem.

[4] Vazio bíblico: a (Gênesis I: 2): “terra autem erat inanis et vacua”3 (Bíblia, 1994, p. 4).

[5] Recordando o mito: Segundo a tradição, os irmãos eram fruto da relação de sua mãe Rhea Silvia com o deus Marte. No momento do seu nascimento, o tio de sua mãe, Amulius (que havia deposto seu pai), a mata e joga os filhos no rio Tibre. Eles são salvos por um lobo, que os cuida e depois são apanhados por um pastor e cuidados por sua esposa. À medida que cresciam, decidiram fundar uma cidade na planície fluvial. Eles traçaram o perímetro com um arado de acordo com o rito etrusco e juraram matar qualquer um que cruzasse as fronteiras sem permissão. Discutindo sobre o nome da cidade, decidiram que aquele que visse mais pássaros a escolheria, teste que Rômulo passou, e que deu à cidade o nome de Roma. Remo, irritado, discutiu com Rômulo e apagou o sulco dos limites da futura cidade. Cumprindo o juramento, Romulo o matou (Magnoli, 2006).

[6] oriehnid- A palavra dinheiro é grafada de trás para frente, para evitar o termo correto, em uma alegoria de que o dinheiro seria algo perverso.

[7] O romance familiar é um mito individual, sendo este um modo de organizar um discurso para suprir a verdade impossível de transmitir (Lacan, 2003, p.29)

[8] Ana é filha de mãe solteira e é abusada pelo dentista, possível figura de autoridade – pai desaparecido; o pai de Lia transmite uma herança à qual ela deseja renunciar - um passado nazista obscuro.

ANDREY A.
ANDREY A.
Irati / PR
Responde em 19 h e 41 min
1ª hora grátis
nota média
0
avaliações
R$ 40
por hora
Graduação: Letras português (Unicentro - Universidade Estadual do Centro-Oeste)
Aulas de português, redação, oratória e inglês com métodos inovadores. Juntos, alcançaremos seus objetivos!

Confira artigos similares

Aprenda sobre qualquer assunto