A Atuação da Defensoria Pública na defesa da Moradia
em 19 de Junho de 2021
O IPTU progressivo no tempo como instrumento auxiliar no direito à cidade
RESUMO: O intuito deste artigo é analisar, dentre os instrumentos propiciados pela Constituição da República Federativa do Brasil e da legislação federal, em especial o Estatuto das Cidades, o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo no tempo como meio de se auxiliar na garantia da justiça social. Para tanto, faz-se necessário entender a concepção atual de direito, diferenciando princípios de regras e entender o atual panorama legislativo constitucional. Após isso, é feito o estudo do princípio republicano com o da capacidade contributiva, com para o IPTU e a sua função fiscal. Por fim, é feita uma análise da função extrafiscal do IPTU, a sua mais relevante para os fins do presente artigo, e estudo do IPTU progressivo no tempo, buscando ver se ele pode auxiliar no ideário do direito à cidade.
Palavras-chave: Imposto Predial Territorial Urbano Progressivo no tempo. Extrafiscalidade. Direito à cidade.
Abstract: The purpose of this article is to analyze, among the instruments provided by the Constitution of the Federative Republic of Brazil and the federal legislation, in particular the Statute of Cities, the Urban Property Tax (IPTU) progressive in time as a means of assisting in the social justice. It is necessary to understand the current conception of law, differentiating principles of rules and understanding the current constitutional legislative landscape. After that, the study of the republican principle with the one of the contributory capacity, with for the IPTU and its fiscal function, is made. Finally, an analysis of the extra-fiscal function of the IPTU, its most relevant for the purposes of the present article, and a study of the progressive IPTU over time, is carried out, trying to see if it can help in the ideology of the right to the city.
Keywords: Urban Territorial Property Tax Progressive in time. Extra-fiscal function. Right to the city.
INTRODUÇÃO:
O Brasil é um Estado Federal por força do pacto federativo. Isso significa que temos um acordo de base territorial pelo meio do qual grupos localizados em diversas partes de um determinado território se organizam em busca de harmonia entre suas demandas próprias e interesses gerais da sociedade que se pretende construir. Ou seja, o pacto federativo é um formato político-institucional cujo o objetivo é preservar a diversidade, unificando e conciliando objetivos, por vezes, opostos (CASTRO, 2014).
Nesse sentido, o sistema jurídico brasileiro é baseado em modelos que possuem normas positivadas em um conjunto de regras dispostas hierarquicamente. Desse modo, existe uma gradação entre as normas inferiores e que podem ser criadas pelos particulares, os contratos, até as normas de cúpula que são as da Constituição da República Federativa do Brasil. Nesse sistema, em que as leis de piso buscam a sua validação na norma hierarquicamente superior, temos aqui o que se convencionou chamar de pirâmide jurídica (FERREIRA FILHO, 2012). Nas palavras de Kelsen “o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma” (KELSEN, 1962, p. 2).
Dessa forma, todas as leis do direito pátrio devem obediência à Constituição da República Federativa do Brasil. Consta no art. 1o da Carta Magna que o país é uma república (BRASIL, 2018). Esse conceito jurídico posto possui inúmeras implicações, mas, para os fins do presente artigo, o entendimento adotado é o de que, nessa forma, o Estado não é o detentor de todos os poderes e direitos do cidadão. Na realidade, a sua função primordial é a de ser um garantidor dos interesses morais e materiais dos seus subordinados.
Então, a concepção que se tem de República é “o tipo de governo, fundado na igualdade formal das pessoas, em que os detentores do poder político exercem-no em caráter eletivo, representativo (de regra), transitório e com responsabilidade” (CARRAZZA, 2004, p. 48).
Aqui, deve-se informar os conceitos relacionados a direito e a sua natureza. Kelsen apresenta diferenciações entre o que se entende pelo “ser” e o “dever-ser”. Inicialmente, temos uma distinção epistemológica, onde há, de fato, distinção entre descrição e avaliação. Para o autor, o direito deveria ser estudado pelo viés positivo, não tratando de como ele se dá no mundo dos fatos, mas um estudo de um ponto de vista objetivo e neutro da norma, sem as influências da moral ou outros fatores externos (KELSEN, 1962).
Kelsen entende que o direito, enquanto conjunto de normas é pertencente ao “dever-ser”, todavia, no estudo do direito orientado pela teoria pura por ele proposta, o estudo a ser feito é com o fático, ou seja, como ele é, e não como deve ser (KELSEN, 1962).
A teoria de Kelsen, ainda que extremamente relevante, não passou incólume a críticas. Bobbio afirma que a corrente positivista jurídica, “nasce do impulso histórico para a legislação, se realiza quando a lei se torna a fonte exclusiva – ou, de qualquer modo, absolutamente prevalente – do direito, e seu resultado último é apresentado pela codificação” (BOBBIO, 1995, p. 119).
Nesse paradigma positivista, o direito deixou o seu papel operacional de qualificar condutas, assumindo um papel técnico instrumental de gestão da sociedade, ou seja, proibindo, permitindo, estimulando e desestimulando comportamentos.
As consequências da primazia da legalidade positivista trouxeram outros aspectos fundamentais para a análise dos limites da racionalidade. Esses aspectos não apresentam erros no positivismo jurídico como ciência, mas erros na sua aplicabilidade, relacionados com a lógica do razoável. São os horrores do positivismo jurídico (LAFER, 1988).
Em que pese a realidade contraditória, a República não deve servir como favorecimento a apenas alguns setores da sociedade, uma vez que a base do poder republicano é a igualdade política entre os homens.
Desse modo, deve-se sempre buscar o bem coletivo no governo republicano, e não a manutenção de privilégios das classes dominantes. Essa lição é especialmente forte para o Poder Legislativo, que possui maior liberdade criativa em relação ao Poder Executivo que, na clássica divisão de poderes, limitar-se-ia a aplicar as regras.
Outro conceito fundamental que deve ser explicado é o de direitos fundamentais, que tem relação com direitos humanos. Apesar de não ser unânime, a classificação mais adotada é a que entende que os conceitos de “direitos fundamentais”, são os direitos humanos, reconhecidos no âmbito interno, reconhecidos e protegidos com status de direito constitucional (SARLET, 2004).
É importante essa distinção pois a dignidade humana é exatamente um dos fundamentos da república (BRASIL, 2018), e esse direito fundamental deve ser observado na análise do princípio republicano. E como o direito não pode se distanciar das premissas básicas da Constituição Federal, dado o seu valor axiológico, algumas premissas acerca desse importante princípio merecem ser apresentadas.
Então, toda a análise do princípio republicano passa pelo entendimento da dignidade humana como fundamento da república. Ambos são importantíssimos não podem ser ignorados em qualquer aplicação hermenêutica.
2 O PRINCÍPIO REPUBLICANO E A CAPACIDADE CONTRIBUTIVA:
Inicialmente, é preciso delimitar conceitualmente princípios, e diferenciá-los das regras. A semelhança é que ambos são normas, uma vez que entram no campo do “dever ser”. Desse modo, a distinção apontada é: as regras podem ser cumpridas ou não, e os princípios ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas (ALEXY, 2011).
Em outras palavras, enquanto às regras ou elas são aplicadas integralmente ou não são aplicadas, aos princípios tem-se uma margem maior para ponderação. A título de exemplo, uma regra pode ser: “é proibido fumar no avião”, ou seja, não existe margem de apreciação. Um exemplo de princípio seria o da igualdade, no qual podem ser feitos questionamentos quanto à igualdade formal, material, econômica, dentre outros parâmetros.
Nesse sentido, por força do princípio republicano, deve-se afastar qualquer interpretação que permita a normas tributárias possam ser editadas com o viés de proveito às classes dominantes, conforme expressa determinação da Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 5o, que trata da igualdade perante a lei (BRASIL, 2018).
Sob a ótica constitucional, os tributos não podem ter outro fim além de instrumentar o Estado a alcançar o interesse público. Juridicamente falando, é necessário delimitar o que se entende por interesse público. Não é simplesmente um conceito antagônico ao de interesse privado. Na verdade, é o “interesse resultante do conjunto de interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da sociedade e pelo simples fato de o serem” (MELLO, 2008, p. 61). Qualquer interpretação que não persiga essa finalidade deve ser dada como inconstitucional.
“Esta assertiva há de ser bem entendida. Significa, não que todos devem ser submetidos a todas as leis tributárias, podendo ser gravados com todos os tributos, mas sim, apenas, que todos os que realizam a situação de fato a que a lei vincula o dever de pagar um dado tributo estão obrigados, sem discriminação arbitrária alguma, a fazê-lo.” (CARRAZZA, 2004, p. 69).
O princípio republicano exige que todos que realizarem determinado fato, chamado pelos teóricos de fato imponível tributário, devem ser tributados igualitariamente (CARRAZZA, 2004).
De todo modo, é inteiramente coerente, além de reforçar o princípio republicano a aplicação da regra da capacidade contributiva, expresso no art. 145, §1o da Constituição da República Federativa do Brasil, como se vê:
“§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.” (BRASIL, 2018, p. 43).
Então, resta inequívoca a interpretação de que há uma correlação entre os impostos e a capacidade contributiva. De maneira coerente com o sistema, é lógico e jurídico interpretar-se que, em termos econômicos, quem possua mais capacidade de pagar, pague mais, proporcionalmente, do que quem possua menos capacidade contributiva.
O princípio da capacidade contributiva guia a tributação por meio de impostos. Existe íntima ligação desse princípio para com o princípio da igualdade, motivo pelo qual é conhecido como um dos mais eficazes mecanismos para se alcançar a justiça fiscal (TIPKE, 1994).
Os impostos, se ajustados à capacidade contributiva, permitem que os cidadãos possam cumprir os seus deveres tributários, em demonstração de solidariedade política, econômica e social. O pagamento dos tributos deve contribuir para o custeio da máquina pública não em razão do que receberam do Estado, mas sim de suas potencialidades econômicas.
Essa é a razão pela qual, no ordenamento jurídico pátrio, todos os impostos devem, sempre que possível, ser progressivos, para fins de se atender ao disposto no princípio da capacidade contributiva, ainda que a Constituição Federal tenha expressamente determinado apenas a progressividade ao Imposto de Renda e ao Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), nos artigos 153, § 2o, I e 156, §1o (BRASIL, 2018).
Isso se dá porque a progressividade tributária é a uma excelente forma de se afastar, no campo dos impostos, as injustiças tributárias, vedadas constitucionalmente. Quando se deixa de aplicar o referido princípio, ceifa-se qualquer tentativa de igualdade tributária (CARRAZZA, 2004).
Por isso, exceto quando a própria norma da Carta Magna assim o fizer, os impostos com alíquota fixa são inconstitucionais, por contrariar o princípio da capacidade contributiva, que exige que a tributação se dê de acordo com as manifestações de riqueza do contribuinte.
A capacidade contributiva elencada pela Constituição da República Federativa do Brasil que obriga o legislativo é do tipo objetiva, pois se refere não às condições econômicas reais de cada contribuinte de maneira individualizada, mas sim às manifestações objetivas de riqueza, como, por exemplo, ter um imóvel, um veículo automotor. Percebe-se, então, que o princípio possui como destinatário o próprio legislador.
Impostos, para que sejam cobrados, precisam seguir regras e, para os fins do artigo, é importante apresentar os conceitos de hipótese de incidência e base de cálculo. Becker, informa que a base de cálculo é como o núcleo da norma tributária. Ela confere o gênero jurídico ao tributo, e os demais elementos da norma tributária lhe são adjetivos (BECKER 2002).
Para melhor o entendimento, tomemos como base na norma positivada do Código Tributário Nacional (CTN), acerca do IPTU:
Art. 32. O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município.
Art. 33. A base do cálculo do imposto é o valor venal do imóvel. (BRASIL, 2018, p. 681)
Nesse exemplo normativo, o fato gerador do imposto territorial urbano é ser proprietário de bem imóvel, ao passo que a sua base de cálculo é o valor venal do referido imóvel, que é definido pelo Fisco.
Fica claro, então, que o IPTU deve obediência ao princípio da capacidade contributiva. Carrazza nos elucida quanto à aplicação prática do princípio com um exemplo:
Quando dizemos “deve ser proporcionalmente mais tributado”, queremos significar que deve ser submetido a uma alíquota maior, Assim, se o imóvel urbano de “A” vale 1.000 e o imóvel urbano de “B” vale 10.000 e o primeiro paga 1 e o outro, 10, ambos estarão pagando proporcionalmente, o mesmo imposto, o que fere o princípio da capacidade contributiva. A Constituição exige, in casu, que “A” pague 1 e “B” pague, por hipótese, 30, já que, só por ser proprietário do imóvel mais caro, revela possuir maior capacidade contributiva que “A” (CARRAZZA 2004, p. 95).
É preciso notar que a capacidade contributiva, no que se refere à tributação do IPTU, é aferida pelo próprio imóvel, e não pelos bens e valores que o proprietário eventualmente tenha.
3 O DIREITO À CIDADE NA SISTEMÁTICA CONSTITUCIONAL:
A cidade é anterior à industrialização, mas a industrialização é responsável por caracterizar a sociedade contemporânea. As cidades, no passado, apoiaram comunidades de camponeses e auxiliaram na libertação desses. Os benefícios dos centros urbanos, locais de vida social e política acumulam não apenas riquezas in natura, mas também conhecimentos, técnicas e obras de arte e monumentos (LEFEBVRE, 2001).
“O ar da cidade liberta”, já se afirmou. E essa ideia ganhou força com a saída dos servos dos campos medievais para a cidade, nas quais podiam reivindicar liberdades pessoais e políticas que eram mais amplas no ambiente urbano. Dessa associação da vida citadina e as liberdades pessoais, que incluem explorar, criar, e definir novos modos de vida, tem longas histórias, uma vez que diversos migrantes tem buscado as cidades como ambiente seguro das repressões rurais (HARVEY, 2013). “A cidade aparece, então, como uma semente de liberdade; gera produções históricas e sociais que contribuem para o desmantelamento do feudalismo” (SANTOS, 2014, p. 59).
Nessa transição do sistema feudal para o capitalista, com o enrijecimento dos burgos (cidades), a burguesia era a classe revolucionária, ao se opor à Aristocracia. Muitos consideram que em seus primórdios, o capitalismo é revolucionário na história humana pois, dentre outros fatores, aumentou o número de pessoas a habitar a cidade, dando caráter transformador e crescendo o livre trabalho (SANTOS 2014).
Muito dessas migrações se deram de forma maciças do velho mundo para o novo mundo, onde se instalaram centenas de milhares de europeus. Um fenômeno que pode ser visto de maneira sensível nos Estados Unidos, Canadá, Uruguai, Argentina, Brasil, Chile, Austrália, Nova Zelândia, mas também nos países da África e Ásia recém-colonizados (SANTOS, 2014).
A urbanização, contudo, não se deu de maneira uniforme em todo o mundo. No caso da América do Sul, houve ampliação expressiva da cidade e da urbanização. Entretanto, como houve pouca industrialização, as cidades que surgiram constituídas por enormes áreas de favelas. As antigas estruturas agrárias se extinguiram-se, resultando em camponeses sem posses migrando para as cidades buscando trabalho e condições mínimas de vida (LEFEBVRE, 2001).
E internamente, a repartição geográfica possui diversas mudanças. Regiões perdem população e outras crescem, tornam-se mais dinâmicas. Mas o ponto fulcral desse movimento se deve à urbanização. E, analisando o fenômeno, a difusão de grandes cidades se deu de maneira surpreendente nos países pobres (SANTOS, 2014).
É claro que a urbanização cria diversas novas dinâmicas, o que ocasionam novos problemas a serem lidados. Isso tudo se soma ao fato de, atualmente, vivermos em tempos em que os ideais de direitos humanos tem primazia do ponto de vista político e ético (HARVEY, 2014).
A cidade é:
(…) a tentativa mais coerente e, em termos gerais, mais bem-sucedida de refazer o mundo em que vive, e de fazê-lo de acordo com seus mais profundos desejos. Porém, se a cidade é o mundo ciado pelo homem, segue-se que também é o mundo em que ele está condenado a viver. Assim, indiretamente e sem nenhuma consciência bem definida da natureza, ao criar a cidade o homem recriou a si mesmo. (PARK, 1967, apud HARVEY, 2014, p. 28).
Nesse sentido, pode-se entender que o tipo de cidade que queremos depende do tipo de pessoa, relações sociais e com a natureza que buscamos. O direito à cidade é muito mais que o simples direito a acessos individuais ou coletivos incorporados à cidade, é um direito de mudar e reinventar a cidade conforme nossos desejos (HARVEY, 2014).
O direito à cidade, que
“se manifesta como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade.” (LEFEBVRE, 2001, p. 134).
O direito à cidade significa o direito de todos de criar cidades que satisfaçam as necessidades humanas. Não se trata de um direito de ter o que sobra dos detentores dos meios de produção. É um direito inerente a todos de construir diferentes tipos de cidade, valorizando as subjetividades. Não é simplesmente o direito a utilizar o que já existe na cidade (HARVEY, 2009).
Um elemento essencial ao direito à cidade de Lefebvre é o direito à participação. O que significa o direito de todos os habitantes de participarem plenamente das muitas oportunidades que a cidade oferece. É uma preocupação com a exclusão de camadas populacionais dessas oportunidades (PURCELL, 2009).
A demanda por participação se apresenta por mais de um aspecto. De um lado, busca-se uma cidade mais inclusiva, na qual oportunidades sejam apresentadas amplamente à população. Por outro lado, a participação deve ter necessariamente um componente político. Envolve a inclusão nos processos decisórios, com direito à voz significativa em todas as decisões relacionadas com o espaço urbano. A consequência dessa falta de poder decisório é a criação de situações nas qual a camada mais abastada da sociedade exerce o domínio sobre a cidade, como forma de utilizar o seu excedente de capital. Desse modo, a luta pelo direito à cidade é também uma luta contra o capital (HARVEY, 2009).
É inegável que os habitantes exercem um papel considerável na produção da cidade como um produto coletivo, por meio de suas rotinas no convívio com a cidade. Mas a participação, no sentido buscado, reivindica o direito de participar das decisões de cúpula que moldam a cidade. Essas decisões, sem dúvidas, abrangem o planejamento urbano, opções de investimentos, escolhas de atores sociais que impactarão no dia a dia de todos. E os habitantes devem ocupar um lugar central dessas decisões. (LEFEBVRE, 2001).
No atual sistema, as elites do capital e do governo controlam a produção do espaço urbano, e aos cidadãos possuem um distante papel marginal nas nessas decisões. Esse modo de produção põe em xeque o direito à cidade e o próprio estado democrático de direito.
No sistema jurídico brasileiro, apesar de não constar expressamente no Título II da CF (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), o direito à cidade, encontra referências no texto constitucional em um capítulo próprio da carta magna, o Capítulo II do Título VII, que trata da política urbana (BRASIL, 2018). E ainda que não houvesse expressado previsão no texto, conforme o atual paradigma de hermenêutica constitucional, não se pode negar a fundamentalidade dos direitos apenas por não constarem formalmente na CRFB, podendo-se fazer uso do seu aspecto material, que no caso do direito à cidade, é inegavelmente materialmente constitucional.
Todavia, os direitos fundamentais não constituem a realidade para grande parte dos cidadãos, e a situação é mais patente no ponto de vista do morador das metrópoles. Ainda que possa se fundamentar em um aspecto amplo o direito à cidade como constitucional, encontrar mecanismos práticos no sistema é uma ferramenta que pode dar bons frutos e, dentre esses mecanismos, está o IPTU progressivo no tempo. Que será tratado.
4 IPTU PROGRESSIVO NO TEMPO COM INSTRUMENTO AUXILIAR NO DIREITO À CIDADE:
Conforme falado alhures, o IPTU, ele deve obedecer ao princípio da capacidade contributiva, nos termos do art. 145, §1o da Constituição Federal. E, por isso, deve ser progressivo. Trata-se de uma progressividade fiscal obrigatória (CARVALHO, 2009).
Não obstante, existe outra progressividade no IPTU, chamada de extrafiscal. Em relação ao planejamento e gestão urbanas, é importante o estudo dessa segunda finalidade, ou seja, a capacidade de permitir que outros objetivos além da arrecadação pura e simplesmente sejam alcançados. Essas outras finalidades podem ser o desestímulo de práticas nocivas ao interesse coletivo, que possui proteção constitucional por meio do princípio da função social da propriedade, ou mesmo na promoção e distribuição indireta de renda (SOUZA, 2010).
Nesse sentido, pode-se, sem embargo, afirmar que o ideário de direito à cidade pode ser buscado pela extrafiscalidade, sendo coerente com o interesse público por meio desses instrumentos.
Assim, o art. 156, §1o da Carta Magna estabelece que o IPTU, além de dever obediência ao princípio da capacidade contributiva, terá alíquotas diferentes conforme a localização e o uso do imóvel. Importante a ressalva, essas disposições extrafiscais do imposto nada tem a ver com o princípio da capacidade contributiva. Ambos os princípios devem ser observados por convivência harmônica entre os artigos 145, §1o e o art. 156, §1o da Constituição da República Federativa do Brasil.
Uma diferença crucial entre os dois institutos é, utilizando-se da classificação de Silva, a norma referente à progressividade fiscal do IPTU é norma constitucional de eficácia plena, ou seja, independe de regulamentação para ser aplicada. Ela deve ser aplicada por disposição expressa da lei magna (SILVA, 2002). Em relação ao caráter extrafiscal, trata-se de norma com aplicabilidade limitada, em outros termos, depende da edição do plano diretor que definirá o que é função social naquele município específico.
Feitas essas considerações, percebe-se que poucos instrumentos são tão necessários ao desenvolvimento urbano quanto o IPTU progressivo no tempo. Sua aplicação pode colaborar de maneira eficaz para imprimir maior justiça social às cidades.
Conforme o art. 182, §4o da Constituição Federal, é facultado ao poder público municipal, por meio de lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, de acordo com lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova o seu adequado aproveitamento. Caso o particular não atenda à exigência do poder publico, o dispositivo legal prevê providências a serem adotadas e, dentre elas, temos o IPTU progressivo no tempo.
A lei federal que regula o IPTU progressivo no tempo é o Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001, a qual prevê como consequência para o descumprimento das condições e prazos para o parcelamento, edificação ou utilização compulsória a aplicação do IPTU progressivo no tempo pelo prazo de cinco anos consecutivos (BRASIL, 2018).
Lei municipal determinará a alíquota do IPTU aplicável a cada ano. É necessário certa atenção à norma. A alíquota não pode exceder duas vezes o valor referente ao ano anterior e deve-se respeitar a alíquota máxima de 15%, conforme o art. 7o, §1o do Estatuto da Cidade. Por fim, para evitar a frustração de objetivos constitucionais por benefícios fiscais, o §3o do artigo em questão veda que se conceda isenções e anistias relativas ao IPTU progressivo no tempo. Além disso, caso não haja o pagamento do IPTU progressivo no tempo, pode-se adotar medidas mais drásticas, como a desapropriação do imóvel (CARRAZZA, 204)
Então, o IPTU terá alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel, para assegurar o cumprimento da função social da propriedade. Função social é um termo que deve ser definido nos planos diretores de cada município. No caso do plano diretor do município de Belém, a função social é assim delimitada:
Art. 3º São princípios fundamentais para a execução da política urbana do Município de Belém:
I - função social da cidade, que compreende os direitos à terra urbanizada, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura e serviços públicos, ao transporte coletivo, à mobilidade e acessibilidade, ao emprego, trabalho e renda, à assistência social, bem como aos espaços públicos e ao patrimônio ambiental e cultural do Município;
II - função social da propriedade urbana, abrangendo:
III - sustentabilidade, que consiste no desenvolvimento local socialmente justo, ambientalmente equilibrado, economicamente viável, culturalmente diversificado, e política e institucionalmente democrática;
IV - gestão democrática, garantindo a participação da população em todas as decisões de interesse público por meio dos instrumentos de gestão democrática previstos na Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade).
Parágrafo único. Para garantir a função social da propriedade urbana, o uso e a ocupação do solo deverão ser compatíveis com a oferta de infra-estrutura, saneamento e serviços públicos e comunitários, e levar em conta o respeito ao direito de vizinhança, a segurança do patrimônio público e privado, a preservação e recuperação do ambiente natural e construído (BELÉM, 2008).
Podemos perceber que, no caso do município de Belém, existem delimitações teóricas do que seria a função social da cidade. A definição é ampla, abrangendo habitação, patrimônio público e ambiental. Em certos pontos, entretanto, ela é vaga, proporcionando, mesmo assim, parâmetros mínimos para a aplicação do IPTU progressivo no tempo, de acordo com o seu art. 150. No art. 153, caso não o proprietário não respeite os parâmetros estatais exigidos, ficará sujeito à desapropriação do imóvel.
De todo modo, alguns cuidados precisam ser observados para que não se cometam injustiças com o fim de se buscar justiça social. Inicialmente, o instrumento deve se prestar à adequada coibição da especulação imobiliária.
Ou seja, deve-se estabelecer parâmetros inteligentes e definir os valores apropriados para que seja possível caracterizar as condições de ociosidade e subutilização associados à especulação imobiliária. Além disso, deve-se considerar que um terreno não precisa estar inteiramente desocupado para que esteja em desacordo com a função social da propriedade. Dependendo do caso, pode-se ter hipótese de subutilização.
Contudo, a legislação belemense não possui uma aplicabilidade direta na prática. Tratam-se de definições vagas e amplas sem uma característica de norma jurídica para que possa ser aplicada no dia a dia, e combater as desigualdades urbanas. Não obstante o texto legal tratar de “sustentabilidade”, ‘gestão democrática” e “participação”, ficou a cargo de normas específicas definir o que se entende por esses conceitos jurídicos que podem ter diversas interpretações.
Marcelo Neves entende que essas leis são denominadas de legislações simbólicas, típicas dos países periféricos. Uma consequência é o surgimento de leis sem a devida consideração de duas consequências no campo prático. Entende-se que essas leis surgem no intuito de dar uma resposta às fluidas aspirações da sociedade num determinado momento (NEVES, 2011).
O objetivo dessa legislação simbólica é, dentre outros, fortalecer a confiança dos cidadãos no governo. Com essa atitude, denominada de legislação-álibi, o legislador procurar reduzir pressões políticas ou apresentar-se como sensível a exigências e expectativas populares. Então, esse instituto decorre de uma tentativa de dar uma solução a problemas sociais ou, ao menos, apresentar as boas intenções do Estado, mas sem um viés prático efetivo (NEVES, 2011).
Trata-se de uma crença instrumentalista de que a legislação por si própria pode solucionar os problemas da sociedade. Contudo, a resolução de problemas complexos depende da interferência de variáveis não normativo-jurídicas (NEVES, 2011). Na verdade, essas políticas sociais ilusórias podem obstruir caminhos para a real melhoria das condições das populações urbanas pauperizadas.
Conforme Neves, “pode-se afirmar que a legislação-álibi constitui uma forma de manipulação ou de ilusão que imuniza o sistema político contra outras alternativas, desempenhando uma função ‘ideológica’” (NEVES, 2011, p. 40).
O legislador, como representante dos interesses do povo, deve tratar de assuntos de suma importância, com o devido comprometimento e com ênfase no real impacto das leis. Contudo, uma legislação aos moldes de como foi feita, sob o suposto pretexto de garantir dignidade a uma parcela excluída da população não possui reais reflexos na ocupação do solo urbano, servindo apenas para adiar problemas reais da sociedade.
5 CONCLUSÕES:
Por força do princípio republicano, os entes federativos devem observar a capacidade contributiva no momento de fixação de suas alíquotas e base de cálculo dos impostos. Especificamente no que se refere ao IPTU, a sua aplicabilidade é obrigatória por imposição constitucional geral e também por tratamento específico ao imposto territorial urbano, por disposição específica. A capacidade contributiva deve ser aferida pelo critério objetivo do valor venal do município, independente da fortuna pessoal de que possui o proprietário.
O direito à cidade é um fundamento que deve ser aplicado necessariamente na evolução da sociedade urbana, buscando-se a igualdade, ele nos permite alcançar evolução. Sob a tutela visionária de Lefebvre, a problemática da cidade deve ser posta no centro da reflexão das sociedades contemporâneas, mesmo, ou talvez principalmente, nos espaços subutilizados (CONTES, 2010).
Não se imagina, entretanto, que a solução dos problemas do homem serão encontradas nos frios códigos e legislações feitas por elites políticas. É contraproducente imaginar que a pobreza poderia ser eliminada sem modificações significativas na estrutura de produção, dos investimentos e do consumo (SANTOS, 2012).
Mas alguns instrumentos já postos na esfera legislativa sob o viés do direito à cidade podem ser encontrados no texto constitucional, e devem ser aplicados, pois se trata de um direito fundamenta coletivo. Dentre eles, temos o IPTU progressivo no tempo, em especial no seu caráter extrafiscal. Desse modo, em tese, é possível punir proprietários que não respeitem o que se entende por função social da propriedade, delimitado no plano diretor do município. Com isso, pode-se evitar especulações imobiliárias e subutilização de determinadas áreas urbanas, o que é importantíssimo para a justa distribuição de terras urbanas, e corrobora totalmente com o ideal de direito à cidade
Sob esse aspecto, efetiva aplicação do IPTU progressivo no tempo pelos municípios pode ser uma valiosa ferramente na tentativa de garantir-se maior justiça social na distribuição espacial da cidade, evitando-se vazios urbanos e auxiliando na luta contra a especulação imobiliária.
Não obstante, entendemos que da maneira como é posta na legislação municipal, o IPTU progressivo no tempo não passa de legislação simbólica, sem capacidade prática de contribuir para com a dignidade humana. Ou seja, trata-se de uma legislação que serve para adiar a solução de conflitos sociais, com compromissos dilatórios (NEVES, 2011). Pretende-se reduzir os conflitos políticos internos através de leis que supostamente são progressistas, mas que na realidade não possuem o efetivo caráter de mudança social.
A legislação municipal que trata do tema deveria se empenhar em produzir resultados práticos para efetivamente garantirem os direitos fundamentais, e não serem apenas ser uma legislação-álibi, ou seja, uma aparente solução para um anseio social, mas que na realidade pouco ou nenhum impacto tem na vida das pessoas e na produção social do espaço urbano na cidade de Belém.
REFERÊNCIAS:
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2011.
BELÉM, Prefeitura Municipal. Lei municipal 8.655/2008, de 30 de julho de 2008. Dispõe sobre o Plano Diretor do Município de Belém, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.belem.pa.gov.br/planodiretor/Plano_diretor_atual/Lei_N8655-08_plano_diretor.pdf>. Acesso em: 16 set. 2018.
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995.
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria feral do direito tributário. 3a ed. São Paulo: Lejus 2002.
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Artigo Publicado nos Anais do Congresso Internacional de Direitos Humanos 2019