
Do sublime ao espetáculo

em 17 de Julho de 2025
Ao longo da história da arte, o silêncio sempre ocupou um lugar ambíguo: ora como ausência, ora como potência. Com a chegada da modernidade, especialmente a partir do século XIX, e seu consequente rompimento com os modelos clássicos e narrativos, o silêncio passou a ser reconhecido como um elemento expressivo por si só. Já não era necessário que a arte “dissesse algo” de forma direta — ela poderia sugerir, insinuar, deixar espaços em branco que exigissem do espectador uma nova postura interpretativa. Neste contexto, o silêncio deixa de ser mera lacuna e passa a ser forma.
No campo da literatura, autores como Stéphane Mallarmé e Samuel Beckett exploraram as fronteiras do dizer, aproximando-se do silêncio como estratégia estética. Em O inominável, Beckett escreve: “Não posso continuar. Vou continuar.” A escrita que hesita, que falha, que trava, faz do silêncio um componente essencial da obra. O que não é dito carrega um peso tão grande quanto aquilo que se formula linguisticamente. Em Mallarmé, o uso de brancos na página e o espaço gráfico se tornam também silêncio visual, sugerindo sentidos por meio da ausência.
Na música, o exemplo mais icônico é talvez 4’33’’, de John Cage, em que o músico se senta ao piano e nada toca por quatro minutos e trinta e três segundos. O silêncio não é aqui vazio, mas sim preenchido pelos ruídos do ambiente: tosses, passos, respirações — sons que habitualmente ignoramos. A obra redefine o que é música e transfere o foco da produção à escuta. Cage, nesse gesto radical, torna o silêncio matéria estética e filosófica.
Nas artes visuais, o minimalismo e o expressionismo abstrato também dialogam com o silêncio. Artistas como Mark Rothko criaram pinturas que não apresentam uma narrativa óbvia, mas sim grandes campos de cor que demandam contemplação silenciosa. Suas telas, quase monocromáticas, sugerem o transcendente, o espiritual — algo que só pode ser “ouvido” internamente. Donald Judd, com suas formas geométricas repetitivas e desprovidas de ornamento, desafia o espectador a encontrar sentido não no que é dito, mas no que é deixado em aberto.
No cinema, cineastas como Andrei Tarkovsky, Yasujirō Ozu e Abbas Kiarostami fizeram do silêncio um recurso dramático central. Tarkovsky, por exemplo, entendia o cinema como "esculpir o tempo", e é precisamente no tempo dilatado, nas pausas, nos momentos sem diálogo, que a densidade da existência humana se revela. O silêncio permite que o espectador ouça a si mesmo, preenchendo com sua própria sensibilidade os espaços deixados pelo filme.
A estética do silêncio também está relacionada a um certo esgotamento da linguagem e a uma recusa da saturação informacional característica da pós-modernidade. Em um mundo marcado pela hipercomunicação, pela velocidade e pelo excesso, o silêncio adquire uma dimensão ética e política. Ao calar, a arte convida à pausa, à escuta, à contemplação. O silêncio resiste ao ruído, e nesta resistência encontra sua força expressiva.
Por fim, cabe destacar que o silêncio na arte não é sinônimo de passividade ou de ausência de sentido. Ao contrário, ele pode ser grito contido, recusa a uma linguagem desgastada, abertura para o sagrado, ou mesmo convite à introspecção. Como ensina Maurice Blanchot, “o silêncio é a linguagem daquilo que não pode ser dito”. A arte moderna e contemporânea, ao incorporar o silêncio como forma, nos oferece novas possibilidades de sentir, pensar e existir.
Blanchot, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
Beckett, Samuel. O inominável. São Paulo: Globo, 2004.
Cage, John. Silence: Lectures and Writings. Middletown: Wesleyan University Press, 1961.
Eco, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 2004.
Mallarmé, Stéphane. Poemas. São Paulo: Iluminuras, 1993.
Tarkovsky, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
Yoshimoto, Mitsuhiro. Ozu: sua vida e obra. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
Judd, Donald. Complete Writings 1959–1975. Nova York: The Press of the Nova Scotia College of Art and Design, 1975.
Foster, Hal (org.). O retorno do real: a arte e a teoria na cultura pós-moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
Adorno, Theodor W. Teoria estética. São Paulo: Martins Fontes, 2004.