A função da memória na construção da identidade

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A função da memória na construção da identidade

A literatura é, entre outras coisas, uma tentativa contínua de compreender a experiência humana. E poucas experiências são tão definidoras quanto a memória. A maneira como o passado é reconstruído, lembrado ou mesmo esquecido nas narrativas ficcionais revela aspectos profundos da construção da identidade — tanto das personagens quanto dos sujeitos históricos e sociais que os autores procuram representar. A memória, nesse contexto, torna-se mais do que um recurso narrativo: ela é uma lente pela qual a subjetividade se constitui, se fragmenta ou se reconcilia.

As narrativas literárias modernas e contemporâneas frequentemente exploram essa intersecção entre memória e identidade. Desde os fluxos de consciência de Virginia Woolf e James Joyce até as estratégias de rememoração em romances latino-americanos, percebe-se um esforço em retratar a memória não como algo estático, mas como um processo dinâmico, em constante reconstrução. A memória, nesse caso, não é sinônimo de história ou de verdade factual, mas uma forma subjetiva de dar sentido ao mundo e a si mesmo.

Em Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, talvez um dos exemplos mais paradigmáticos dessa abordagem, a identidade do narrador é construída a partir da evocação sensorial da memória involuntária. A célebre cena da madeleine mergulhada no chá é mais do que um momento nostálgico: é um dispositivo de resgate do eu, uma ponte entre presente e passado que, ao ser reconstruída literariamente, permite a reelaboração do sujeito. Como observa Paul Ricoeur, em A memória, a história, o esquecimento, a memória tem uma função narrativa essencial na constituição da identidade: contar-se é construir-se.

No romance O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez, o tempo vivido pelas personagens é reconstruído através das suas memórias amorosas, repletas de lapsos, idealizações e esquecimentos seletivos. O tempo subjetivo, marcado pela memória, é mais importante que o tempo cronológico. A identidade das personagens não se dá apenas por aquilo que viveram, mas por aquilo que decidem lembrar — ou esquecer — sobre essas vivências.

A literatura brasileira também explora a memória como eixo formador da subjetividade. Em Dois irmãos, de Milton Hatoum, a disputa entre os gêmeos Omar e Yaqub é mediada pela memória de um narrador que tenta compreender os acontecimentos da família por meio dos fragmentos do passado. A identidade das personagens, ali, é marcada por silêncios, ressentimentos e lacunas — tudo isso atravessado pela maneira como a memória é acionada, reprimida ou reinterpretada.

Além da dimensão individual, a memória nas narrativas literárias assume também um papel coletivo e político. Ao lembrar, a literatura muitas vezes reescreve a história sob outra perspectiva, desafiando versões oficiais e instituídas. Em Terra sonâmbula, de Mia Couto, os relatos de guerra e de infância misturam-se, mostrando como a memória — ainda que fragmentária — é ferramenta de resistência e reconstrução identitária em contextos de trauma. A escrita da memória torna-se, assim, um modo de existir e afirmar-se diante da perda.

Nesse sentido, a memória opera na literatura como uma “poética da identidade”. Ao evocar o passado, os autores e narradores não apenas constroem mundos ficcionais, mas também erguem subjetividades complexas, ambíguas, marcadas pelo tempo e pelas escolhas narrativas. A identidade não se revela como um dado, mas como um processo — sempre em disputa, sempre em formação.

Por fim, podemos afirmar que, nas narrativas literárias, lembrar é também inventar. A memória literária não busca fidelidade ao real, mas autenticidade subjetiva. E é nesse espaço entre a lembrança e a invenção que a literatura encontra um de seus maiores poderes: dar voz ao que foi vivido, ao que foi perdido, ao que ainda pode ser imaginado — e, assim, construir identidades que resistem ao apagamento e ao esquecimento.


Bibliografia

  • COUTO, Mia. Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

  • HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

  • GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. O amor nos tempos do cólera. Rio de Janeiro: Record, 2005.

  • PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Rio de Janeiro: Globo, 2003.

  • RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.

  • WOOLF, Virginia. Ao farol. São Paulo: Nova Fronteira, 2018.

  • JOYCE, James. Ulisses. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

  • HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

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