A linguagem tem múltiplas funções: comunica, registra, convence, expressa. Mas há situações em que ela se eleva além de sua funcionalidade imediata, tornando-se símbolo, rito, invocação. No âmbito do sagrado, a linguagem adquire um estatuto especial: torna-se veículo de transcendência. E esse estatuto não se limita às religiões institucionalizadas; a literatura, muitas vezes, assume também a tarefa de evocar o sagrado, mesmo quando já não se acredita em nenhuma forma religiosa.
Nas religiões tradicionais, a palavra é um instrumento de criação e de mediação. “No princípio era o Verbo”, diz o Evangelho de João, conferindo ao Logos um papel central no surgimento de tudo o que existe. A Torá judaica é reverenciada como Palavra divina. O Alcorão é, para os muçulmanos, a fala direta de Deus a Maomé. Em todas essas tradições, a palavra sagrada não é meramente descritiva; ela é performativa. Ela faz o que diz. Ela invoca, consagra, transforma.
Essa dimensão performativa da linguagem religiosa encontra ecos na linguagem literária. Como observa o pensador Mircea Eliade, o mito — forma narrativa fundamental nas tradições religiosas — estrutura o real e permite que os indivíduos encontrem um sentido existencial profundo. A literatura, ao manter viva a força simbólica dos mitos, participa dessa construção de sentido. Mesmo escritores que não professam nenhuma fé recorrem a estruturas, temas ou atmosferas do sagrado para tratar de questões fundamentais da existência.
O sagrado, na literatura, aparece muitas vezes sob o signo da ausência. É o que vemos em autores como Clarice Lispector, Franz Kafka ou Fernando Pessoa, cujos textos são marcados por uma busca ininterrupta por um absoluto que parece sempre escapar. Em Clarice, por exemplo, a linguagem se dobra sobre si mesma em tentativas de nomear o inominável — aquilo que está além da palavra e do pensamento, mas que se intui com uma intensidade quase mística. O silêncio, as pausas, a repetição: tudo aponta para uma tentativa de tocar o sagrado por meio da linguagem.
A poesia moderna também recorre a esse registro. Em poetas como Rainer Maria Rilke, T. S. Eliot e Bruno Tolentino, encontramos uma linguagem que não apenas representa o mundo, mas o consagra. O poema é, nesse sentido, um altar: um espaço simbólico em que o tempo se suspende e o sagrado pode ser entrevisto. Mesmo em contextos seculares, a arte literária guarda resquícios da função sacerdotal da palavra.
Portanto, a linguagem do sagrado — seja em contextos religiosos formais ou na literatura moderna — continua exercendo um papel crucial na tentativa humana de lidar com o mistério, a morte, o amor, o tempo. Ela nos lembra que, para além da informação e da comunicação, existe uma linguagem que deseja mais: deseja tocar o que está além da linguagem.
Referências bibliográficas:
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
RICOEUR, Paul. A simbólica do mal. Petrópolis: Vozes, 2002.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
ELIOT, T. S. Quatro quartetos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
TOLENTINO, Bruno. Imitação do amanhecer. São Paulo: Topbooks, 1996.