A linguagem cotidiana estrutura o mundo em formas previsíveis. Seu objetivo é comunicar com clareza, informar, ordenar o caos da experiência em signos partilháveis. No entanto, há aspectos da existência humana — como o sagrado, o abismo interior, a dor radical ou o êxtase — que não se deixam capturar por essa lógica da transparência. É nesse vazio que a palavra poética se inscreve: não para dizer o que já é sabido, mas para abrir espaço ao que escapa, ao que não tem nome. A poesia, nesse sentido, não é ornamento da linguagem, mas sua radicalização, sua ferida, sua fissura.
A tradição filosófica e estética já apontava para essa função do poético. Hölderlin afirmava que “o que permanece os poetas o fundam”, sugerindo que há algo no mundo que só pode ser instaurado pela palavra poética. Heidegger, em diálogo com o poeta alemão, via na poesia uma forma privilegiada de linguagem originária, capaz de reconduzir o ser à sua morada — não por meio da explicação, mas da evocação. A poesia, segundo ele, “diz o ser”, enquanto a linguagem técnica apenas o manipula.
A revelação poética não se dá, portanto, pela via do conceito, mas da imagem, da sonoridade, da ambiguidade. O “indizível” a que o poeta recorre não é aquilo que se cala, mas aquilo que resiste ao fechamento semântico. É o que Barthes chamaria de “significado em suspensão”, que convoca o leitor não a compreender, mas a experimentar o texto. A poesia, assim, não é decifrável — ela é habitável.
Poetas como Cecília Meireles, Murilo Mendes, Sophia de Mello Breyner Andresen ou Paul Celan nos colocam diante dessa dimensão da palavra que toca o silêncio, que diz por aproximação, que revela por meio do véu. Em Cecília, por exemplo, a linguagem poética é frequentemente um instrumento de recolhimento e de escuta do mundo interior: “tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo”. O verso, aqui, é mais do que construção estética: é tentativa de dizer o que se sente quando já não há palavras.
Mesmo no ambiente contemporâneo, dominado pela linguagem da objetividade e do consumo rápido, a poesia resiste como espaço do mistério, do intervalo, do tempo desacelerado. E essa resistência é reveladora: mostra que o humano ainda pulsa onde não se pode controlar, onde a linguagem falha, onde o sentido se entreabre.
A palavra poética, portanto, não compete com a linguagem ordinária — ela a ultrapassa. Sua força está justamente em não tentar explicar o indizível, mas em se tornar canal para sua presença. E talvez seja por isso que, mesmo em tempos de excesso de discurso, a poesia ainda seja necessária: para nos lembrar de que há coisas que só podem ser ditas se forem ditas com o cuidado de quem sabe que, ao nomear, também se corre o risco de perder.
Referências bibliográficas:
BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. São Paulo: Nacional, 2004.
HEIDEGGER, Martin. Poetic dwelling. In: Poetry, language, thought. New York: Harper & Row, 1971.
MEIRELES, Cecília. Poemas escolhidos. São Paulo: Global, 2009.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
STEINER, George. A poesia do pensamento. São Paulo: Unesp, 2013.